Emenda nº 08

Qual o limite da separação dos poderes?

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1 de junho de 1999, 0h00

Artigo: “A Emenda nº 08 à Constituição do Estado de São Paulo”

Por André H. M. Fiorotto*

Foi promulgada em 24.05.1999 a Emenda nº 08 à Constituição do Estado de São Paulo, para surpresa de muitos que não esperavam que pudesse ser aprovada. Essa emenda trata da unificação dos Tribunais de Alçada ao Tribunal de Justiça do Estado, e, como veremos, tem várias implicações práticas e teóricas para os profissionais do Direito.

As alterações práticas

A segunda instância estadual sempre apresentou particularidades que a serem observadas pelos profissionais do Direito.

As competências originárias e recursais dos Tribunais de Alçada, bem como as do Tribunal de Justiça, por exemplo, geravam dúvidas até mesmo para os mais experientes, no momento em que se tornava imperativo utilizar-se de um recurso de agravo de instrumento, ou de uma apelação. A que Tribunal dirigir-se?

A unificação teria o condão de tornar esses conflitos de competência um problema interno do Tribunal de Justiça, que os resolveria mediante um simples despacho, e não através de um demorado processo de remessa dos autos, sem falar em uma eventual economia de recursos decorrente da fusão das estruturas administrativas.

Parece claro que essa simplificação vem de encontro ao interesse público, mas que não obstante deve observar o princípio da legalidade.

Sem discutir o mérito, entretanto, as questões que se apresentam são: após a promulgação da Emenda nº 08, onde devem ser interpostos os recursos? Quais os julgadores competentes?

Da norma e sua eficácia

A Emenda nº 08 altera a Constituição Estadual de modo a suprimir qualquer menção aos Tribunais de Alçada, observadas as seguintes características:

O artigo 1º exclui os Tribunais de Alçada da lista de órgãos do Poder Judiciário do Estado, disposta no artigo 54 da Constituição Estadual.

O artigo 6º modifica o “caput” do artigo 69, que trata da competência privativa do Tribunal de Justiça, anteriormente conjunta com os Tribunais de Alçada.

Finalmente, os artigos 7º e 8º alteram os artigos 78 e 79 da Constituição Estadual, que passam a ter a seguinte redação, “in verbis”:

“Artigo 78 – Os Tribunais de Alçada são transformados em seções do Tribunal de Justiça, podendo ser preservada, a critério do Tribunal de Justiça, a sua atual estrutura administrativa.”

“Artigo 79 – Os atuais Juízes de Alçada são alçados a Desembargador do Tribunal de Justiça, observada a ordem de antigüidade.”

A primeira vista, não podemos deixar de observar que não ocorreu propriamente uma extinção dos Tribunais de Alçada, mais sim sua transformação, ou ainda, sua unificação.

O escopo principal da emenda, por outro lado, não parece ter sido esse, mas sim a unificação das competências dos Tribunais. Esse fato, destarte, interessa sobremaneira a esse estudo e já seria suficiente para propiciar eficácia plena à nova norma constitucional.

Como é cediço, grande parte da doutrina substituiu a classificação da eficácia das normas constitucionais, antigamente entre normas auto-executáveis e não auto-executáveis, pelos conceitos de normas com eficácia plena, contida e limitada. Essa evolução, poderíamos até dizer, realmente parece acertada, na medida que toda norma tem alguma eficácia, ainda que pouca; é o caso das limitadas institutivas ou das limitadas programáticas, que não conferem direitos propriamente ditos, mas sim estabelecem uma espécie de obrigação para o legislador.

Já as normas de eficácia plena possuem efeitos imediatos e não admitem redução pelo legislador infraconstitucional. O exemplo mais claro desse tipo de norma são aquelas que definem competências: alguns autores chegam até a afirmar que a Constituição, enquanto expressão criadora e organizadora do poder e do Estado, é precipuamente uma divisão de competências.

Ainda que se argumente que os efeitos da emenda não se restringem à unificação de competências, este inegavelmente surge de qualquer interpretação razoável de seu texto, tornando inevitável o conflito de competência caso os Tribunais de Alçada continuem a operar normalmente, contra o disposto na emenda. E essa parece ser a tendência atual, tanto por parte do Tribunal de Justiça como por parte dos Tribunais de Alçada.

Da questão da iniciativa do projeto

O Presidente do Tribunal de Justiça, Des. Dirceu de Mello, considera a emenda um ato nulo justamente porque, em seu entendimento, a iniciativa do projeto de unificação deveria ter partido do próprio Judiciário. Esse entendimento é compartilhado por parte dos membros dos Tribunais, que aparentemente decidiram pela continuidade da prática das atribuições jurisdicionais que lhes competiam antes da promulgação da emenda.

A norma, entretanto, foi formalmente posta e ainda não teve sua inconstitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal, de sorte que deveria ser obedecida.

Mas vejamos o que se pode depreender de uma boa hermenêutica:

A Constituição do Estado de São Paulo, em seu artigo 24, trata da iniciativa das leis; em seu parágrafo 4º, dispõe que compete privativamente ao Tribunal de Justiça projetos de lei que objetivem a criação e a extinção de cargos, a fixação dos vencimentos de seus membros e a organização e divisão judiciárias.

O supracitado dispositivo é complementado pelo artigo 70, que estabelece a competência privativa do Tribunal de Justiça para propor à Assembléia a criação e extinção dos demais Tribunais e a alteração da organização e da divisão judiciária.

E realmente, a Lei de Organização Judiciária é elencada no artigo 23 como lei complementar, dentro do processo legislativo estadual, e claramente eventual projeto que trate do referido assunto só pode ser proposto pelo Tribunal de Justiça.

Mas o caso em tela é ainda mais sutil: o instrumento utilizado pela Assembléia para a unificação foi a emenda constitucional, prevista no artigo 22. Esta pode ser proposta, por exemplo, por 1/3 dos membros da Assembléia, mas não pelo Tribunal de Justiça.

Logo, temos agora caracterizado o conflito existente: qual o limite da atuação do legislador constituinte decorrente, que expressa sua vontade por meio de emenda à Constituição Estadual? Pois se parece claro que a unificação, como colocada, não poderia ser considerada constitucional se feita por meio de lei, o que podemos dizer da unificação por meio de emenda constitucional?

A Constituição Federal

A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu artigo 25, que “os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição”.

Mais ainda, em seu artigo 96, a Constituição Federal define as competências privativas dos Tribunais, e em especial, em seu inciso II, que cabe ao Tribunal de Justiça propor ao Poder Legislativo respectivo – a Assembléia – a criação ou extinção dos tribunais inferiores, bem como a alteração da organização e da divisão judiciárias.

Assim, temos agora dois novos instrumentos para auxiliar em nossa análise:

O primeiro é a constatação de que o poder constituinte decorrente é derivado, e portanto, é secundário, subordinado e condicionado, devendo ater-se aos limites impostos explicita e implicitamente pelo constituinte originário, daí dizer-se que a Constituição do Estado de São Paulo não pode confrontar-se com a Constituição Federal.

O segundo é que devemos utilizar o princípio da simetria em qualquer análise comparativa entre as Constituições Federal e Estadual, isto é, dada a limitação da expressão do constituinte decorrente, é imperativa a aplicação simétrica dos princípios e normas da Constituição Federal na Constituição Estadual.

Ora, diante disso, temos que a Constituição Federal, ao abrigar a competência disposta no artigo 96, não admite sua modificação por emenda à Constituição Estadual.

A conclusão lógica é que ou a unificação, tal como feita, só poderia ser feita por lei, já que o Tribunal de Justiça não poderia propor emenda constitucional (artigo 22 da Constituição Estadual, e simetricamente, artigo 60 da Constituição Federal), ou a emenda não se submeteria a essa restrição, já que a distribuição de competências, em si, não é cláusula pétrea, podendo ser modificada pelo constituinte derivado, e observado o artigo 25 da Constituição Federal no caso do constituinte decorrente.

É importante não argumentar que, podendo o mais, que é emendar a Constituição, os deputados poderiam o menos – unificar os Tribunais sem utilizar-se de lei -, pois trata-se de claro sofisma: não podendo o menos, que é apresentar o projeto de lei, não poderiam o mais – unificar os Tribunais por meio de emenda.

Conclusão

O problema apresentado ataca a essência da separação dos poderes. Diante do exposto, parece claro que a controvérsia levantada pela Emenda nº 08 só poderá ser dirimida pelo Supremo Tribunal Federal, ao julgar sua constitucionalidade.

Ambas as hipóteses são possíveis de serem acolhidas, pois ao mesmo tempo pode-se argumentar pela invasão ou não das competências dos Poderes Legislativo Judiciário.

Essa decisão acabará definindo, em suma, a aplicação nesse caso concreto dos limites da separação dos poderes, um dos princípios máximos de nossa Lei Maior, mas que entretanto não pode ser absoluto: certamente deve ser observado em total harmonia com o interesse social suscitado pela questão, já que a finalidade última do princípio é impedir o abuso do poder pelo Estado, em detrimento da sociedade.

Enquanto isso, temos que a competência já foi alterada e é plenamente eficaz, ressalvada uma eventual posterior declaração de inconstitucionalidade pelo STF, de sorte que o conflito dará margem a inúmeras pretensões nos Tribunais Superiores de nulidade, por incompetência absoluta, dos atos praticados pelos Tribunais de Alçada, criando uma insegurança dispensável na situação atual do Poder Judiciário.

* Bacharel em Administração pela FGV e acadêmico de Direito pela PUC-SP.

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