Conferência Nacional

Conferência – Leia a íntegra do discurso de abretura

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30 de agosto de 1999, 0h00

O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Reginaldo de Castro, criticou a constante edição e reedição de Medidas Provisórias promovida pelo governo. Castro disse que, “no período de 1995 a 1998, apenas uma legislatura, o Congresso Nacional aprovou 642 leis, enquanto o Executivo editou ou reeditou o triplo de Medidas Provisórias. Exatas 1.971”.

Em seu discurso de abertura da XVII Conferência Nacional dos Advogados, que está sendo realizada até 2 de setembro no Rio de Janeiro, o presidente da OAB afirmou que o Brasil não tem segurança jurídica: “Nos sete anos que vão de março de 1992 a igual mês deste ano, a Constituição Federal foi emendada em 28 ocasiões! A média de quatro por ano, uma a cada três meses”.

Leia a íntegra do discurso de Reginaldo de Castro

Senhoras e Senhores,

Dou as boas vindas aos ilustres participantes desta Conferência, saudando a memória de seu Patrono Nacional, Antonio Evaristo de Moraes Filho, bem como de seu Patrono Local, Eugênio Roberto Haddock Lôbo, advogados que, ainda em vida, foram paradigmas de dignidade pessoal e de exemplar e irrepreensível conduta profissional, de que todos nos orgulhamos.

Eles são símbolos para o exercício da profissão que escolhemos e de dedicação aos ideais que abraçamos. Evoco por isso, a feliz circunstância de celebrarmos este encontro no ano do sesquicentenário de nascimento de duas das maiores expressões do Direito em nosso país, as figuras tutelares de Rui Barbosa e Joaquim Nabuco, vidas pautadas, e nunca esquecidas, em defesa dos postulados imperecíveis da liberdade, da igualdade, da justiça, e da lei. Eles representam para nós a inspiração que motivou a carreira e a vida pública dos grandes vultos da advocacia brasileira; orientam e enobrecem a nossa missão e os deveres cívicos de defesa da ordem jurídica.

Devemos a todos uma explicação sobre o tema da Conferência, JUSTIÇA: REALIDADE E UTOPIA. Sua deliberada abrangência e amplitude traduzem o propósito de rompermos o estreito limite das questões emergentes que a cada três anos nos preocupam, para nos determos no horizonte, mais largo e por isso mais promissor, daquelas que, sendo permanentes, angustiam e inquietam toda a sociedade brasileira.

A utopia que vamos discutir não é a quimera ou a simples esperança de um dia vermos realizados sonhos inatingíveis e expectativas irrealizáveis. Ao contrário, é o caminho necessário e inadiável, dos passos a serem dados, para a superação da realidade que tornam duros, árduos e até adversos os dias que estamos vivendo. Esta, pelo menos, é a lição do poeta Eduardo Galeano, a quem recorro, para definir o sentido com que sua eloqüência a definiu:

“Ela está no horizonte

Me aproximo dois passos: ela se distância outros dois

Caminho dez passos e o horizonte se afasta mais dez.

Por mais que caminhe, nunca poderei alcançá-la.

Para que serve a utopia?

Para isto serve: para caminhar”.

Já houve os que decretaram o fim das ideologias. Os que se aventuraram a prever o fim da história. Nós não pretendemos aceitar a morte dos conceitos que impulsionam e estimulam o caminhar da humanidade. Queremos, ao contrário, contemporâneos que somos de nosso próprio futuro, reafirmar, através do debate e da diversidade, da controvérsia e da contradição, o dever de lutarmos pelo mundo a que aspiramos.

A utopia dos nossos sonhos, como ensinou o poeta, é que vai nos ajudar nesta luta insana, algumas vezes perversa, mas promissora e provocante, como todos os embates da vida que constituem o cotidiano dos desafios dos que têm que empreender, como nós, o combate sem tréguas pela justiça e pelo direito.

Muitos hão de nos perguntar o que queremos, o que pretendemos, a que aspiramos. Vivemos num Estado Democrático de Direito. Desfrutamos da liberdade de forma ampla e irrestrita. Temos instituições democráticas. Os tribunais estão abertos e os juízes proferem suas decisões, sem condicionamentos ou coação. Vivemos sob o governo e o império da lei. Executivo e Legislativo têm sua fonte de poder na manifestação de eleições livres, pluralistas e competitivas.

Mas não é o bastante. Em uma nação, como a nossa, com desigualdades sociais tão aviltantes, esses princípios formais adotados por todos os regimes democráticos, são transformados pelos que detêm o poder político, em mecanismos de dominação com os quais eternizam seus históricos privilégios.

Percebemos que o organismo e, mais que o organismo, o próprio sistema político, e não apenas este ou aquele governo, dão sinais evidentes de desvios que, em alguns casos, não podem deixar de ser configurados como patologias do regime, bem concebido porém mal exercido. E nosso dever não é só identificá-las, mas também prescrever a terapia restauradora das instituições de que depende o exercício legítimo da democracia. Não será necessário sairmos deste recinto para conferirmos as insatisfações que ameaçam engolfar o país. Se não é a prova, é a evidência desse estado de inconformismo que grassa em toda a nação.

À mera configuração democrática das instituições do Estado, é preciso contrapor a insatisfação da maior parte da sociedade que delas descrê. Há insegurança, além de insatisfação, espalhada por toda parte. Há expectativa em alguns, desânimo em muitos e desesperança em quase todos. Promessas que se renovam, projetos que não se consumam e o simples aceno de um futuro melhor já não são suficientes para aplacar o desencanto nem para amenizar as agruras crescentes da labuta diária pela sobrevivência de grande parte da população brasileira.

Vencemos a crueldade da escravidão no século passado, e convém lembrar que fomos o último país civilizado a fazê-lo. Mas chegamos ao limiar do próximo século sem conseguir superar a iniqüidade da servidão. Ela é representada hoje pela sobrevivência odiosa do trabalho indigno, onde não chega o império das leis, sobretudo as de proteção social. A este se soma o trabalho dos menores, crianças e adolescentes, em condições penosas, insalubres e inadequadas que nos envergonham.

Ao lado dele, se generaliza, quase se universaliza, o trabalho informal e precário, representado pelo desemprego e o subemprego que se alastram, sem que os mecanismos de proteção da dignidade humana sejam capazes de prover a subsistência dos desassistidos e desamparados, aquilo que a Constituição declara direito de todos, o direito ao trabalho.

Nunca foi tão visível a constatação de que a expressiva maioria de nossa população está cada vez mais pobre, enquanto uma minoria privilegiada e protegida concentra cada vez mais a renda nacional.

À sociedade, não interessa qual a natureza da crise do emprego. Chamá-la de estrutural, ocasional ou transacional como fazem os especialistas, os técnicos e os tecnocratas do Estado, não ameniza o sofrimento dos que dela padecem.

É isto que no Brasil está confrontando a sociedade ao Estado. A sociedade não tem o domínio das decisões de política econômica, reservado à esfera discricionária de “imperium” do Estado, subjugado nas suas mais relevantes decisões ao poder de poucos, geralmente mais sensíveis ao FMI, do que às prioridades nacionais. Mas somos sempre nós que pagamos a conta.

Por isso, é indispensável que o sistema político adote mecanismos que impeçam os sucessivos governos de reincidir em experiências frustradas que, de tão freqüentes nos últimos anos, tornaram-se rotineiras.

Vivemos, é verdade, num Estado Democrático de Direito, mas não temos segurança jurídica. Nos sete anos que vão de março de 1992 a igual mês deste ano, a Constituição Federal foi emendada em 28 ocasiões! A média de quatro por ano, uma a cada três meses.

Em apenas dez anos de vigência, foram propostas cerca de 2.000 ações diretas de inconstitucionalidade, número que dá idéia da conflitividade gerada pelo instável, precário e em grande parte provisório ordenamento jurídico do país.

O Legislativo se demitiu de seus deveres e prerrogativas, incapaz até hoje de regular o uso abusivo, indiscriminado e generalizado de medidas provisórias que se eternizam e se transformam em permanentes, não obstante sofram inúmeras alterações ao longo de sua vigência, desnorteando todos os que se submetem a seus efeitos. No período de 1995 a 1998, apenas uma legislatura, o Congresso Nacional aprovou 642 leis, enquanto o Executivo editou ou reeditou o triplo de Medidas Provisórias. Exatas 1.971.

Estamos nos conformando e aceitando passivamente a violação sistemática de todos os limites imagináveis e admissíveis dos procedimentos éticos compatíveis com o exercício democrático do poder e da vida pública do país.

Os que transgridem a lei e dispõem dos bens públicos como se fossem propriedade particular alegam invariavelmente não terem cometido nenhuma ilegalidade ou não terem praticado atos que a lei proíbe.

Parecem esquecidos do preceito fundamental segundo o qual, se na esfera privada é permitido tudo o que não é proibido, no âmbito do poder público é proibido tudo o que não é expressamente permitido e mais, legitimo. São condutas e atitudes que se generalizam em todo o país. A leniência com essas práticas antijurídicas termina por estimular outras mais graves e perniciosas. É revoltante a facilidade com que tudo se falsifica, tudo se frauda, a começar pelas alterações do conteúdo de medidas provisórias, aplicação de recursos públicos, mandados judiciais, concursos públicos, medicamentos, combustíveis, aposentadorias, diplomas, obras e concessões de toda natureza ante a omissão complacente dos Poderes do Estado.

Continua em Comunidade Jurídica

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