“Em 1981 viajaram para Melbourne, onde se apresentaram diante do médico Carl Wood, para se submeter a um programa de ‘bebê de proveta’. A tentativa inicial fracassou logo nas primeiras duas semanas, mas o médico comunicou a Elsa que havia oportunidade para outras operações, graças à preservação de dois embriões congelados. A mulher preferiu esperar um pouco mais: queria readquirir estabilidade emocional.
Viajando para o Chile no fim do ano de 1983, o casal morreu em um acidente de aviação. Os embriões continuavam vivos na Austrália, herdeiros de uma fortuna estimada em US$ 1,7 milhão de dólares. Todavia, para recebê-la deveriam, primeiro, nascer”.
Como a genitora havia falecido, o nascimento só se tornaria possível com auxílio de uma mãe “hospedeira”.
As questões suscitadas giraram em torno da possibilidade da mãe hospedeira adquirir algum direito sobre parte do espólio como indenização ou pagamento pelo serviço prestado.
Além disto, outra pergunta surgiu: as crianças nascidas do ventre da mãe não biológica continuariam sendo filhos do casal morto ou deveriam ser registradas pela mulher que os gerou?
No primeiro caso, em tese, não surgiriam problemas de ordem sucessória, ainda que não se tivesse na legislação nenhuma previsão para o registro de filhos nascidos após ter passado muito tempo da morte dos pais. Contudo, na segunda hipótese não se teria como explicar a transferência da herança a crianças que não estavam na ordem sucessória do casal. De qualquer modo, não se conseguiu chegar a conclusão alguma e o destino daqueles embriões é hoje desconhecido.
Outra situação que ocupou as páginas sensacionalistas da imprensa é a da viúva francesa Corinne Parpalaix, de 23 anos, que lutou nos tribunais de Paris pelo direito de ser fecundada com o sêmen que seu marido, morto de câncer, depositou num banco especializado ao adoecer em 1981.
A criança gerada pela viúva já nasceria órfã e inúmeros especialistas se manifestaram contrariamente à prática da fecundação justamente pelos problemas psicológicos que, com certeza, atingiriam o bebê.
Vencedora nos Tribunais, a viúva não conseguiu a gravidez esperada, pois todas as tentativas de Inseminação Artificial falharam.
Semelhante ao caso de Corinne foi o da viúva italiana A.C., de 62 anos, fertilizada com o sêmen de seu marido, morto há 10 anos, e um óvulo de uma doadora.
A viúva teve um bebê que não é biologicamente seu filho e não tem pai, provocando inúmeras críticas na comunidade médica.
“Engravidar artificialmente uma viúva de 62 anos é o mesmo que fabricar órfãos, disse Elio Sgreccia, Diretor do Centro de Bioética da Universidade Católica de Roma” (Revista Veja, São Paulo, 09.12.92, pág. 83).
No Brasil, não se tem notícias de casos tão radicais, muito embora se utilize as técnicas de IA e FIV em mulheres de idade avançada, solteiras e inférteis.
Colocação do Tema na Sistemática Jurídica Atual
A biologia parece-nos vir alterar por completo as noções tradicionais de procriação e de filiação. Contudo, as instituições fundamentais, a reunião de um homem, uma mulher e seus filhos no seio de uma família, subsistem apesar das transformações por que passam atualmente.
Estas instituições são produtos da sociedade e a biologia não conseguiu, ainda, a sua fabricação.
Em princípio, uma criança pertence à mulher que a trouxe ao mundo e ao homem que a gerou. Entretanto, isto não é o essencial ou o fato primordial a ser contemplado.
A criança, sob o ponto de vista jurídico, é, antes de mais nada, um elemento do contexto social. Pouco importa se no interior da família em que se encontra haja laços biológicos ou afetivos.
Quando o Direito ocupa-se de um ser humano de forma primordial, isto é, quanto a sua existência, não o faz para estabelecer relações com outros seres humanos.
O Direito objetivo brasileiro contempla de forma primeira os direitos individuais de cada um, colocando-os a salvo desde a concepção (art. 4º in fine do CCB). Da mesma forma age quando prescreve curador aos concebidos e ainda não-nascidos (art. 462 do CCB) e quando coloca o aborto entre os crimes praticados contra a vida (arts. 124 a 126 do CP).
A personalidade civil começa com o nascimento com vida, mas o nascituro já é um ser individual desde a sua concepção, pois de outra forma o Direito não teria a preocupação em considerá-lo objeto da tutela do Estado. Já há muito tempo não se discute a relevância do ser humano para o Direito, tanto que o Código Penal reconheceu a inviolabilidade da vida fetal ao tipificar o aborto.
Não obstante a posição da legislação brasileira, a RA traz hoje a “necessidade do inevitável sacrifício” de seres humanos a par do progresso científico que surgiu através da FIV, da IA, da transferência e do congelamento de embriões, etc. Talvez se pudesse dizer que a lei faz distinção entre os nascituros concebidos pelo método ortodoxo e aqueles “produzidos” pelas técnicas de RA. Esta, contudo, não nos parece a conclusão mais justa.
O intuito da lei é proteger o nascituro, uma vida já existente, independentemente do seu grau de desenvolvimento e do meio em que se encontra.
Entretanto, com o surgimento das técnicas científicas que possibilitam filhos aos casais inférteis, este objetivo legal demonstra a necessidade de sistematização e complementação.
Desta forma, é fundamental que se fale em contemplar, proibir ou permitir a “produção” de vidas pelos métodos da RA. Neste caso, não se estaria disciplinando o “direito à vida” atribuível ao embrião, mas um pretenso “direito a criar a vida” atribuível a médicos, cientistas, pesquisadores, etc.
O que se deve avaliar não é somente a “direito à vida” que a lei já reconhece ao nascituro, mas, principalmente, o valor da vida humana frente ao avanço científico, independente de estágios evolutivos.
Reconhecendo a vida como um bem jurídico, tutelado constitucionalmente, deve-se disciplinar o sistema legal que vai protegê-la.
É sob este prisma que o tema deve ser analisado na tentativa de solucionar os problemas oriundos das seguintes reflexões:
a) Diante do valor da vida humana e frente as técnicas da RA, existe algum outro valor – liberdade, direito, etc. – que se possa sobressair?
b) É juridicamente sustentável o “direito a ter filhos“, mesmo que este direito se oponha ao “direito à vida“?
c) Permitir a experimentação científica que supõe a destruição de vidas humanas em seus mais variáveis graus de desenvolvimento, está de acordo com as normas do Direito Brasileiro no que tange à liberdade individual?
d) O Direito deve contemplar, expressa e positivamente, as técnicas de RA fazendo com que as normas legais proíbam sua utilização, na medida em que suponham a destruição de vidas humanas ou deve permitir a experimentação, uma vez que esta destruição se faz necessária para que haja progresso científico?
Neste momento todos os caminhos nos parecem perigosos, pois poderão nos levar a toda série de manipulações com os mais diversos fins. É fundamental que se estabeleça uma discussão séria em torno do assunto para que não se obstaculize o progresso de uma ciência que realmente esteja vinculada a fins positivos e para que não se propicie a modificação substancial de regimes legais (o hereditário, p.ex.) e a substituição de conceitos elementares (como a paternidade, a maternidade, a filiação, etc.).
É fundamental, portanto, que se tenha em mente que o desenvolvimento científico nem sempre é humanamente um progresso.
Todo o ser humano é sujeito de direitos mesmo que não esteja exercendo suas faculdades superiores (o que não ocorre só com embriões, mas também com crianças, dementes, etc). O direito à vida é direito fundamental.
Contudo, este direito é gravemente desrespeitado pelas técnicas de RA, uma vez que para cada experiência exitosa, inúmeros abortamentos ocorrem.
A perda destes embriões faz parte não somente das “falhas previstas“, mas, também, da eliminação provocada daqueles que apresentam anomalias, como uma “linha de montagem possui seu controle de qualidade”.
Além disto, prescindindo da dignidade do ser humano, muitas equipes médicas executoras das técnicas de RA, defendem a necessidade de experiências maiores. Para tanto, embriões são congelados e conservados para, mais tarde, caso seja conveniente, serem utilizados em pesquisas ou destruídos.
Como se isto não bastasse, o avanço científico já permite a fecundação de gametas humanos com os de primatas, a utilização de embriões na indústria cosmética, etc.
Não nos deve surpreender que numa sociedade utilitarista encontremos este tipo de aberrações defendendo o progresso científico ainda que com sacrifício de seres humanos. Tendo como exemplo o aborto eugênico que livra a mãe de uma vida de má-qualidade ou a eutanásia que liberta o velho ou subnormal se sua doença for uma carga social, a ciência tem justificado sua atuação.
Deve existir, em algum momento, um limite além do qual a ciência não possa ultrapassar em respeito à ética e à moral. Que limites serão esses não se pode prever, mas é certo que não devem se fundar nos atributos de desenvolvimento, tamanho, forma ou idade dos seres, pois isto significaria conceder aos adultos “status” mais elevado do que às crianças e a estas mais vantagens em relação aos embriões.
O fato é que não se pode justificar estas situações esdrúxulas nem com o fim tão louvável e bem-intencionado de dar filhos a um casal estéril, pois, por mais legítimo que seja, torna-se eticamente irracional quando representa perigo para a vida de um terceiro.
Com freqüência, se utiliza como argumento para defesa da RA, o “direito” do casal estéril de ter um filho. Entretanto, o contrato matrimonial ou a união estável não atribuem este direito, pois não têm por objeto o filho; nenhuma vida humana é devida a nenhum homem ou mulher.
De tudo o que foi dito, não se deve inferir, de maneira alguma, a existência de qualquer atitude negativa para com a ciência, mas uma atitude positiva com vistas a algo mais importante: o homem e sua dignidade.
Uma ciência que não presta serviço à humanidade por estar desvinculada dos valores morais e éticos, principalmente dos éticos, é uma falsa ciência.
No decorrer do presente trabalho nos deparamos com situações que nos fazem crer que a RA, por trazer consigo inúmeras conseqüências que extrapolam a campo científico, não pode ser pacificamente aceita.
Se, por um lado, pelas razões já aduzidas, há interesse em prosseguir nas investigações científicas, por outro lado, o fruto destes estudos pode sugerir inúmeros inconvenientes que nos levam à indagação sobre a licitude da utilização destas técnicas.
Ao conferir artificialmente capacidade procriadora a um ato distinto do ortodoxo, o homem apropriou-se de uma faculdade que não lhe pertence: a de decidir a existência de uma pessoa. É certo que os filhos são um bem de valor inestimável, mas não poder tê-los por problemas de esterilidade não constitui, efetivamente, uma desgraça. Um casal sem filhos não é, necessariamente, um casal infeliz.
Convém lembrar, ainda, que a RA não é exatamente, um tratamento para sanar a esterilidade. Ela não cura, apenas suplanta, pois substitui o ato natural da origem da vida pelo ato técnico; ao final do processo a esterilidade persistirá.
Desta forma, podemos dizer que submeter-se a quaisquer processos de RA nem sempre será a melhor solução, pois, sem dúvida nenhuma, há respostas mais humanas que se contrapõem à esterilidade, como por exemplo a adoção.
Não deixa de ser uma ironia de nosso tempo, com milhares de abortamentos espontâneos voluntários a cada ano, o fato de que se produzam tantos gastos e esforços inaturais para procriar uma vida humana.
As novas técnicas de RA que pretendem conseguir “um filho a qualquer preço” e a mentalidade anticonceptiva que leva a não querer “nenhum filho de nenhuma maneira” encarnam os dois extremos do mesmo fato social que repercute na transmissão da vida. A avaliação desta dicotomia pode, indubitavelmente, abrir novos horizontes em nossas reflexões.
Sob este prisma, a revolução biológica tem a característica peculiar de surgir num mundo e num sistema jurídico despreparado para enfrentar suas conseqüências.
Os progressos científicos reduziram princípios morais e legais que julgávamos parte de nossa cultura. A biologia avança com terrível rapidez, enquanto nossas leis permanecem inertes a disciplinar relações que não mais existem, v.g., o regime dotal.
Os inúmeros riscos e vidas que se perdem durante o processo, as implicações no seio dos relacionamentos familiares e, até mesmo, as conseqüências que o Direito ainda não vislumbrou, nos fazem refletir sobre o valor da vida humana.
A alteração no desenvolvimento natural dos processos implicados na origem da vida pode trazer consigo uma perigosa conseqüência: a de que a vida possa ser considerada como mais um “produto da técnica“. O ser humano, desta forma, deixará de ser um sujeito resultante de um ato natural, com valor intrínseco e direitos legalmente instituídos, para tornar-se um “objeto produzido pelo trabalho humano“.
Em que pese todas as argumentações daqueles que defendem a utilização das técnicas de RA, não podemos nos filiar irresponsavelmente a eles, sob pena de estarmos ignorando princípios legais, inclusive constitucionais.
Todavia, não é nosso objetivo obstruir ou frear o progresso científico. Nos unimos àqueles que buscam reencaminhar as investigações para um campo mais amplo e justo de “cura” da esterilidade. Buscamos, tão somente, a sistematização jurídica, o Direito objetivo que protege o direito individual e impede que a sociedade fique mergulhada em completa desigualdade gerada pelo caos da inércia da ordem jurídica.
Neste momento, com todo o respeito que merecem as posições contrárias, entendemos que o melhor caminho é a reflexão e a (pré)visão do futuro, onde as conseqüências hoje imagináveis serão nada mais do que uma realidade.
Este artigo constitui-se uma síntese do Trabalho de Conclusão da subscritora, exigido para colação do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade do Rio dos Sinos – Unisinos (São Leopoldo – RS). A bibliografia está contida na íntegra do trabalho, eis que, pela extensão da mesma, deixou de ser transcrita, podendo ser fornecida a qualquer interessado.