A liberdade de imprensa

Liberdade de imprensa e dignidade do cidadão

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11 de agosto de 1999, 0h00

“Caso, algum dia, venha a ocorrer um aperfeiçoamento do gênero humano, os filósofos, teólogos, legisladores e moralistas descobrirão que a regulamentação da imprensa é o problema mais importante, difícil e perigoso que eles terão de resolver.” (John Adams, presidente dos Estados Unidos de 1797 a 1801).

O mundo vê agigantar-se o desafio previsto por John Adams há dois séculos. O desenvolvimento das comunicações no globo terrestre e sua instantaneidade, expressos de maneira mais contundente e indiscutível através da virtualidade da Internet, a rede mundial de computadores, fizeram ressaltar a necessidade de se discutir, aperfeiçoar e ampliar mecanismos que possam, ao mesmo tempo, garantir o mais universal direito à informação e, por outro lado, evitar abusos no direito de se produzir e transportar essa informação. É preciso entender que a não observância deste segundo apontamento significa a destruição do primeiro, configurando-se inconcebível violência à pessoa, seja quem recebe a informação deturpada, seja a vítima direta desta.

Nas últimas décadas, principalmente, as informações publicadas pela imprensa têm ocasionado muitas mudanças ideológicas, estruturais e conjunturais nas sociedades. Governos sobem e apeiam do poder conforme versem as notícias sobre suas intenções ou atuações. Modelos econômicos são exultados ou execrados através da mídia, dando aso a freqüentes mudanças no cenário político/econômico/social/cultural das nações. Sob outro enfoque, observa-se muitas vezes celebridades e mesmo pessoas comuns tendo suas vidas abertas e escancaradas a milhares, milhões de outras pessoas. Em algumas ocasiões isso é mesmo necessário e até imprescindível, mas não raro se cometem arbitrariedades de conseqüências avassaladoras.

No Brasil também a imprensa tem exercido um papel preponderante desde o restabelecimento da democracia, ao final dos anos 70 e início dos 80, isso após ter sido um dos principais agentes da referida restauração. Escândalos nacionais têm sido levados constantemente ao público, permitindo uma purificação, ainda tímida e por vezes incipiente, da sociedade brasileira. Não obstante, as mudanças econômicas e políticas não se fizeram acompanhar de avanços sociais mais agressivos, e em nome de uma “paz interna, e para o exterior”, observa-se que neste ponto não há massificação midiática dos problemas, mas sim um generoso compadrio com os governos. Talvez um efeito da globalização capitalista, reduzida na verdade a uma internacionalização de capitais e informações.

Em nosso país, da mesma forma que na maior parte do globo, verificam-se muitas injustiças ocasionadas pela divulgação maldosa, apressada ou encomendada de notícias pelos meios de comunicação de massa. O “furo” não tem escrúpulos, pode-se dizer. Muitas vezes vidas são devassadas, a honra é enlameada, a moral é destruída. Em nome da liberdade de imprensa chega-se a exterminar a liberdade de um ser humano, ou de um grupo que seja objeto da reportagem, ou de toda uma sociedade que esteja assistindo impassível a inverdades ou deturpações.

É razoável, portanto, haver algum controle sobre a divulgação de reportagens pela imprensa, entendida em sentido amplo. Há que haver ética, dignidade, humanidade. Mas como fazer, se a hedionda censura é absolutamente incompatível com os ideais democráticos? Como coibir jornalistas e empresas inescrupulosos sem atingir os profissionais e veículos honrados, que tão grande contribuição dão, ou tentam dar, para o desenvolvimento social da nação? Não se pode exagerar, cortando os dedos pelo defeito de algum anel.

A responsabilização civil e criminal pelos danos cometidos através dos meios de comunicação é um imperativo da sociedade moderna. Essa responsabilização deve ter o intuito de punir o mau profissional ou empresa, coibindo intenções de novas violências e fazendo cuidar-se mais em averiguar o que é divulgado. Ao mesmo tempo, deve ressarcir, no que couber e puder, a vítima. Mas, especificamente no caso do Brasil, cabem outras perguntas: é necessária uma lei de imprensa ou os códigos já existentes são suficientes para regular a liberdade de manifestação através da mídia? As sanções para os jornalistas que cometerem crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação) devem ser mais brandas, mais rigorosas ou iguais às das pessoas ditas comuns?

Tramita no Congresso Nacional há longuíssimos anos o projeto (nº 3.232/92) de uma nova lei de imprensa, que deverá substituir a antiga (Lei 5.250/67), também chamada “lei da ditadura”, por ter sido elaborada nos porões do regime militar que comandava o país naquela época. Juristas e jornalistas batem-se defendendo e atacando determinados pontos do projeto. Esse momento de discussões no Congresso e nos meios jurídico e jornalístico é extremamente oportuno para se refletir sobre a questão da responsabilidade civil e penal pelos delitos cometidos através da mídia. É pertinente dizer que o filosófico desafio antevisto pelo presidente americano converte-se, de fato, em uma das maiores questões lançadas à civilização nessa virada de milênio.

A primeira questão que se coloca pode ser considerada o Tendão de Aquiles da maioria dos debates em torno da liberdade de expressão protagonizados por juristas e jornalistas brasileiros. A elaboração de uma lei específica para regular a liberdade de imprensa é mesmo condição sine qua non para a garantia da informação com respeito a outros direitos individuais e coletivos, especialmente a honra? Há muitos órgãos, muitos veículos de comunicação, muitos jornalistas ilustres e até professores de direito que entendem que não deve haver uma lei especial para a imprensa. Partem do princípio de que a maioria das infrações que se cometem através dos veículos de comunicação de massa são as mesmas descritas na lei penal comum, como, por exemplo a calúnia, a difamação e a injúria, para ficar nas três figuras (tidas como principais) dos delitos que se cometem através dos meios de comunicação. Dizem, a propósito, talvez maltratados pelos precedentes, que toda vez que se fala na elaboração de Lei de Imprensa, deve-se esperar alguma forma nova de cerceamento da liberdade de expressão. Não pode ser assim.

Trata-se de questão antiga. Relata-nos o professor Anis José Leão , que em 1954 o também mestre Lydio Machado Bandeira de Melo, filósofo e pensador, ironicamente, dizia que não se justificava a existência de lei especial para a imprensa, “porque não é o instrumento utilizado no cometimento do delito que pode ter o condão de criar uma regência legal particular; porque a vingar esta idéia, o homicídio com veneno devia ter uma lei especial; o homicídio mediante o uso de explosivo devia ter outra lei especial; o homicídio mediante facadas – ou, como dizem os maus jornalistas, “a golpe de facas” – também deveria ser regido por uma lei especial”.

O próprio professor Anis entende o problema de forma diferente: “Achamos que deve existir uma lei especial cuidando da imprensa no sentido largo do termo. Primeiro, porque o sistema de responsabilidade existente na imprensa, seja ele de responsabilidade sucessiva ou solidária, é especial. E o direito de resposta, por sua vez, é um instituto que, junto com o sistema de responsabilidade típico da imprensa, tem caráter sui generis; não ficariam bem colocados dentro de um Código Penal, ainda que se pensasse na idéia de abrir-se um vastíssimo capítulo no Código, para cuidar da matéria.”

Leis de imprensa devem ter um único e exclusivo objetivo: regular as relações da sociedade com os veiculadores de notícias, ou seja, assegurar os direitos constitucionais dos cidadãos e das instituições no campo da informação pública. Esses direitos estão no mesmo campo e têm a mesma estatura democrática da liberdade de imprensa. A lei deve garantir irrestrita liberdade de imprensa, e, para que essa liberdade seja de fato efetiva, garantir simultaneamente a reação pronta e eficaz contra o mau jornalismo. O jornalismo investigativo e a denúncia fundamentada têm a garantia da seriedade e da verdade. Se o meio de comunicação apurou e investigou antes de publicar, nada conseguirá quem quiser processá-lo. Se mentiu, distorceu, inventou, caluniou, difamou ou injuriou, causou danos morais e/ou materiais a alguém, aí sim, deve temer o embate no tribunal. Não se perca de vista: numa democracia não existe “delito de opinião”. Existe calúnia, difamação, injúria e outras práticas delituosas, puníveis muito antes de surgir o primeiro jornal.

Diuturnamente, deparamo-nos com os paparazzi tupiniquins. Trabalham muitos deles nas delegacias de polícia, especialistas que são na vendagem de jornais desqualificados ou na obtenção de audiência à custa da privacidade alheia. Embora desprovidos de alta tecnologia, são potencialmente mais perniciosos, vez que os seus ataques não se limitam às personalidades famosas ou integrantes da “nobreza” nacional. A Constituição da República, repudiando qualquer forma de censura, tutela a liberdade de expressão, de comunicação e de informação jornalística, como corolário da democracia. Mas, paralelamente, busca assegurar a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas (e não é necessário que sejam importantes para terem este direito), cuja dignidade está consignada no primeiro artigo da Carta Magna como um dos princípios fundamentais do Estado brasileiro.

Se a liberdade de imprensa colide com os direitos individuais, urge alcançar o equilíbrio, de modo que nenhuma das garantias seja obrigada a suportar, sozinha, as conseqüências da indevida expansão da outra.

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