Chico Lopes pode calar-se

STF garante direito ao silêncio de Chico Lopes

Autor

26 de abril de 1999, 0h00

Diante do pedido para anular a ordem de prisão a Chico Lopes, do presidente da CPI dos bancos, senador Bello Parga, o ministro do STF, Sepúlveda Pertence atendeu parcialmente a solicitação dos advogados do ex-presidente do BC.

No entanto, Pertence reconheceu o direito de Chico Lopes de não revelar nada que possa prejudicá-lo, quando voltar à CPI. Pertence não contestou que Lopes tenha cometido os crimes de desobediência e desacato no Senado. Mas também não excluiu a hipótese de fiança (o que foi concedido) ou de liberdade provisória, desde que atendidas pela autoridade competente.

Isso significa que, embora válida como estratégia, a negativa de Lopes em depor na qualidade de testemunha, acabou se configurando em desacato aos senadores. Embora tenha dito que concordaria falar como réu, o que lhe permitiria proteger-se no silêncio, o advogado de Lopes, José Gerardo Grossi disse hoje pela manhã à rádio CBN que seu cliente não falaria em hipótese alguma.

O pedido de habeas corpus (79.244-8/DF) foi apresentado às 18h34 de ontem. O despacho de Pertence foi concluído em torno das 3h30 de hoje.

Leia a íntegra da decisão do juíz:

Habeas Corpus nº 79.244-8 Distrito Federal

Relator: Min. Sepúlveda Pertence

Paciente: Francisco Lafaiete de Pádua Lopes

Impetrantes: José Gerardo Grossi e Outro

Coator: Presidente da comissão Parlamentar de Inquérito

Coator: Relator da Comissão Parlamentar de Inquérito

Despacho: às 17 hs e 35 min. os advogados José Gerardo Grossi e Luiz Guilherme Martins Vieira impetratam habea corpus preventivo em favor de Francisco Lafaiete de Pádua Lopes, ameaçado de prisão pelo Senhor Presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito criada no Senado Federal pelo Requerimento 127/99 9 (a chamada CPI do Sistema Financeiro). É que, tendo atendido à convocação e comparecido à reuniào da CPI, o paciente entregara ao seu Presidente comunicação escrita de que, com base no art. 5º, LXIII, da Constituição, pelas razões nela expostas, exercia o seu direito de “permanecer calado”, negando-se a repsonder às perguntas que acaso lhe fossem feitas (f. 6/12).

Pouco depois, às 18 hs e 34 min, os impetrantes ajuizaram nova petição, informando que a prisão fora efetivamente decretada e requerendo a concessão liminar de salvo conduto. É fato amplamente divulgado que a prisão se efetuou.

No texto que encaminhou ao Presidente da CPI, o nobre Senador Bello Parga, o paciente começa por afirmar a legitimidade da Comissão “para apurar os fatos que motivaram sua criação e, dentre eles as operações entre o Banco Central do Brasil e os Bancos Marka e Fonte Cidam, em janeiro último, as quais (…) foram regulares e legais”.

Alega, a propósito, o paciente que, de início, “vinha colaborando, plenamente, com as investigações em como entendia ser seu dever”.

E prossegue:

“8. Apresentou-se, em Brasília, à comissào de sindicância do BACEN, na Sexta-feira do dia 16 do corrente. A ela prestou depoimento. Prestou-o concomitantemente, à Polícia Fedral, que mandou um delegado e um escrivão ao local. Respondeu, de coração aberto, sem nada objetar, todas as perguntas. Inclusive às perguntas de dois Procuradores da República que lá se encontravam e, conquanto não devessem, inquiriram diretamente o signatário.

9. Qual não foi a sua surpresa, entretanto, quando tomou conhecimento de que, enquanto depunha, desnecessariamente, pelas suas costas, à sorrelfa, sua casa no Rio de janeiro estava sendo revirada de alto a baixo, numa busca ao melhor estilo da ditadura, da qual, por certo, todos nos lembramos. Eram dez homens fortemente armados – tropa certamente julgada indispensável para enfrentar a chorosa mulher do signatário, única pessoa que ali se encontrava no momento do início da arbitrária diligência.”

Depois, entre críticas severas e indignadas à legalidade da própria diligência e ao modo como realizada, aduz, de interesse para o caso:

“13. O centro da discussão sobre a ilegalidade é que, uma medida cautelar, de busca e apreensão, no processo penal brasileiro, não pode existir sozinha e autonomamente. Ela há de estar vinculada a um inquérito policial ou a uma ação penal. No caso, a ordem de busca foi requerida à Juíza com base num “procedimento investigatório” instaurado no Âmbito do Ministério Público Federal no Rio de Janeiro, por ato conjunto datado de 7 de abril de 1999, dos Procuradores Bruno Acioli, Davy Lincoln, Artur Gueiros e Raquel Branquinho.”

(…)

O signatário não comparece a esta CPI como testemunha. Está acusado. Publicamente. Em inquérito policial. Em “procedimento” do MP. E nesta CPI, onde, inclusive, já se pediu – e espera ele que se defira – a quebra de seu sigilo bancário e outros possíveis, com óbvia observação dos princípios legais.


Por todas essas razões, reiterando o respeito que devota a essa d. Comissão Parlametar de Inquérito, mas seguindo a orientação de seus patronos, o signatário, invocando a norma insculpida no art. 5º, LXIII da Constituição Federal, exercita o seu direito “de permanecer calado”, negando-se com escusas, a responder as perguntas que acaso lhe forem feitas.”

Decido.

A Constituição explicitou dispor a comissão parlamentar de inquérito dos “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”, entre os quais avulta de importância o de intimar fazer comparecer, se for o caso, e tomar o depoimento de qualquer pessoa sobre o fato determinado a cuja apuração se destinar: “the power to send for persons”.

Mas se o poder que detém a CPI é o das autoridades judiciais – e não maior que o dessas – segue a ela se poderão opor os mesmos limites formais e substanciais oponíveis ao poder instrutório dos juízes.

Entre tais restrições, duas geram delicados pontos de tensão com a obrigação de faltar a verdade: o dever do sigilo, a que esteja sujeita por lei a testemunha, e a garantia constitucional contra a auto-incriminação – nemo tenetur se detegere – que tem sua manifestação mais eloqüente no direito ao silêncio, invocado no caso pelo paciente.

“Trata-se” – assinalou o Presidente do Tribunal, o em. Ministro Celso de Mello (HC 77.704, 31.7.98, desp. liminar, DJ 19.8.98) – “de direito público subjetivo, revestido de expressiva significação político-jurídica, que impõe limites bem definidos à própria atividade persecutória exercida pelo Estado. Essa prerrogativa jurídica, na realidade, institui um círculo de imunidade que confere, tanto ao indiciado quanto ao próprio acusado, proteção efetiva contra a ação eventualmente arbitrária do poder estatal e de seus agentes oficiais.

O interrogatório judicial, para ser validamente efetivado, deve ser precedido da regular cientificação dirigida ao réu de que este tem o direito de permanecer em silêncio, não estando obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas e nem podendo resultar-lhe, do exercício legítimo dessa prerrogativa, qualquer restrição de ordem jurídica no plano da persecução penal contra ele instaurada.

O privilégio contra a auto-incriminação traduz direito público subjetivo, de estatura constitucional, assegurado a qualquer indiciado ou imputado pelo art. 5º, inciso LXIII, da nossa Carta Política. Convém enfatizar, neste ponto, que “Embora aludindo ao preso, a interpretação da regra constitucional deve ser no sentido de que a garantia abrange toda e qualquer pessoa, pois, diante da presunção de inocência, que também constitui garantia fundamental do cidadão (…), a prova da culpabilidade incumbe exclusivamente à acusação” (Antônio Magalhães Gomes Filho, “Direito à Prova no Processo Penal”, p. 113, ítem n. 7, 1997, RT…)

Nos processoa judiciais, o Supremo Tribunal tem sido particularmente rigoroso na salvaguarda do direito do réu ou do indiciada permanecer calado ou recursar-se a fornececer, de qualquer modo, prova que o possa incriminar (v.g., HC 77.135, Galvão, 8.9.98; HC 75.527, Moreira, 17.6.97; HC 68.929, Celso, 22.10.91, RTJ 149/494; RE 199.570, M. Aurélio; HC 78.708, 9.3.99).

A incidência da garantia contra a auto-incriminação nas investigações de CPI, em linha de princípio, é irrecusável (v.g., Nelson S. Sampaio, Inquérito Parlamentar, FGV, 1964, p. 47 e 58).

Afirmou-o a Suprema Corte americana em diversas decisões tomadas ao tempo da histeria “macartista” (v.g., Quinn v. USA, 349 U.S. 155 (1955); Emspak v. USA, 349 U.S. 190 (1955).

No Brasil, de sua vez, o Supremo Tribunal, já enfrentou o problema e igualmente assentou a pertinência ao inquérito parlamentar de um corolário da garantia contra a auto-incriminação, qual seja, a impunibilidade da declaração mendaz do acusado.

Então Presidente da Casa, deferi limiar para relaxar a prisão em flagrante por falso testemunho de um depoente perante a CPI da ECAD e ponderei:

“Plausível a fundamentação do pedido, em particular, a alegação de que embora depondo como testemunha, após prestar juramento – não comete falso testemunho quem teria faltado à verdade sobre fato que o poderia incriminar, como parece ser a hipótese: inclusive aí o princípio nemo tenetur se detegere, explicitamente consagrado na Constituição (art. 5º LXIII) e corolário de resto, de garantia do devido processo legal.”

O plenário confirmou a liminar e concedeu definitivamente a ordem – HC 73.035, Pl., 13.11.96, Carlos Velloso, RTJ 163/626, consignando-se na ementa:

“I – Não configura o crime de falso testemunho, quando a pessoa, depondo como testemunha, ainda que compromissada, deixa de revelar fatos que possam incriminá-la.”

Da pretensão de furtar-se à intimação para prestar depoimento cuidara, ao contrário, o Tribunal no HC 71.231, onde a impetração se fundava no dever de sigilo profissional a que jungido o paciente, advogado de terceiro a quem se atribuía a prática de fatos criminosos.


Por unanimidade, o Plenário indeferiu a ordem, entendendo que do segredo profissional do advogado, lhe advinha o direito de recusar-se a responder a perguntas sobre o fato por ele coberto, mas não de, intimado, recusar-se a comparecimento à comissão e prestar-lhe depoimento sobre tudo o mais. Na ementa se lê – RHC 71.231, 5.5.94, Velloso, DJ 31.10.96:

“III. – A intimação do paciente, que é advogado, para prestar depoimento à CPI, não representa violência ao dispostp no art. 133 da Constituição nem às normas dos artigos 87 e 89 da Lei 4.215, de que 1963, 406, CPC, 154, Cód. Penal, e 207, CPP. O paciente, se for o caso, invocará, perante a CPI, sempre com possibilidade de ser requerido o controle judicial, os direitos decorrentes do seu “Status” profissional, sujeitos, os que se excederem ao crime de abuso de autoridade.

Na complementação do seu voto, relator, o em. Ministro Carlos Velloso informou ao Tribunal de que, na mesma data, concedera liminar a outro pedido (HC 71.461) e expedira salvo conduto ao paciente para que não fosse preso ao calar sobre o que disesse respeito ao exercício da sua profissão.

Esse, o precedente mais adequado à espécie.

A dificuldade na aplicação à CPI das normas regentes da instrução processual é a identificação de quem, na investigação parlamentar, há de ser tratado como acusado, com as garantias daí decorrentes.

O paciente – na comunicação escrita de suas razões para silenciar – demonstrou satisfatoriamente – à luz de fatos que, de resto, são notórios – as razões pelas quais se considera na condição de acusado à vista dos procedimentos de investigação criminal em curso na Polícia Federal e no Ministério Público.

Não importa que, na CPI – que tem poderes de instrução mas nenhum poder de processar nem de julgar – a rigor, não haja acusados. A garantia contra a auto-incriminação não tem limites especiais nem procedimentais: estende-se a qualquer indagação por autoridade pública de cuja resposta possam advir subsídios à imputação ao declarante da prática de crime.

De outro lado, contudo, o objeto da CPI não se adstringe, à primeira vista, aos fatos por ele próprio referidos – “as operações entre o Banco Central do Brasil e os Bancos Marka e Fonte Cindam” – que, como noticiado, seriam o alvo de tais procedimentos investigatórios: a teor da intimação (f. 5), destina-se a CPI “a apurar fatos” “apurar fatos do conhecimento do Senado Federal, veiculados pela imprensa nacional, envolvendo instituições financeiras, sociedades de crédito, financiamento e investimento que constituem o Sistema Financeiro Nacional”

E o paciente, ninguém o desconhece, ocupou, no último qüinqüênio, importantes diretorias do Banco Central, antes da sua interinidade e abortada confirmação na sua presidência: não é desarrazoado supor, assim, que – além dos fatos referidos, em relação aos quais, tem sido objeto de suspeitas – tenha o que declarar à comissão parlamentar de inquérito.

No entanto, sua recusa – nos termos em que explicitado na comunicação escrita que instrui a inicial – é indiscriminada: comprende, sem ressalva, “as perguntas que acaso lhe forem feitas”. Ou seja, todas.

Nesses termos, não lhe posso deferir a ordem liminar, individual e unilateralmente, contrapondo-me à orientação unânime do plenário do Tribunal no caso assimilável.

O que – é óbvio – não impede nem prejudica (se acaso ocorrida) a concessão de fiança pela autoridade policial ou, se negada essa, a da liberdade provisória, nos termos do art. 310, parág. Único, do C. Pr. Penal, pelo Juiz competente.

Mas, na trilha dos mesmos precedentes (HC 71.231 e HC 71.461, liminar, DJ, 9.5.94) é possível de logo – para a eventualidade de nova convocação de comparecimento à CPI – assegurar-lhe o exercício do direito ao silêncio, a respeito de tudo quanto entende que o possa incriminar.

Por isso, defiro em parte a liminar para

que, retornando à CPI e prestando-lhe depoimento sobre os fatos compreendidos no objeto de sua criação, não seja o paciente preso ou ameaçado de prisão pela recusa de reponder a perguntas cujas respostas entenda possam incriminá-lo.

No ponto, não cabe traçar fronteiras rígidas à invocação do direito ao silêncio, mas sim recordar o acórdão lavrado por Warren em Emspack vs. Estados Unidos (in A D. Weinberger, Liberdade e Garantias, trad., Forense, 1965, p. 62), quando se assentou que o direito ao silêncio “seria de pouca valia se a testemunha que o invocasse ficasse obrigada a desvendar com precisão ou riscos que tem”.

Nesses termos, defiro em parte a liminar, que se comunicará ao nobre e ilustre Senador Bello Parga, Presidente da CPI, solicitando informações.

Brasília, 26 de abril de 1999

Ministro Sepúlveda Pertence – Relator

Revista Consultor Jurídico.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!