A Teoria do Abuso de Direito

A Teoria do Abuso de Direito

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2 de abril de 1999, 10h31

A utilização corriqueira do direito causa, na maioria da vezes, ao lado da satisfação de uma parte, um prejuízo para outrem. O credor que cobra seu crédito, se logra êxito, produz uma diminuição no patrimônio de seu devedor; o prédio serviente, ao ter parte de seu imóvel usado como servidão, sofre uma desvalorização econômica. Ditos prejuízos ou inconvenientes são normais na vida em sociedade; o ordenamento jurídico não os proíbe, pelo contrário. De outro lado, sem embargo, existem prejuízos anormais, apoiados no uso abusivo do direito e que são – ao contrário daqueles – vedados pelo direito.

Nos ordenamentos jurídicos da família romano-germânica, dita vedação, traduzida pela cláusula geral do abuso de direito, aparece ora de maneira mais objetiva, ora de maneira menos objetiva. No código civil alemão, o seu parágrafo 226, dispõe que “o exercício de um direito é vedado quando tem por escopo único causar dano a outrem”. Já o código civil suíço, em seu artigo 2, parágrafo II, apresenta-se ainda mais vago: ” O abuso manifesto de um direito não é protegido pela lei”. De outra banda, o artigo 281 do código civil helênico diz que o exercício do direito é proibido se ultrapassar manifestamente os limites impostos pela boa-fé, ou pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico para que foi criado. No código civil brasileiro não há um artigo que disponha, de forma direta, sobre o abuso de direito. Entretanto, extrai-se a noção de abuso de direito a contrario sensu do artigo 160, I do CC, pois dispõe ele que: “não constituem atos ilícitos: I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de uma direito reconhecido”. Portanto, se o exercício de um direito reconhecido não for regular, constituir-se-á ato ilícito.

Se no campo legal há dificuldade de se encontrar um dispositivo unívoco sobre o abuso de direito, não menor é a dificuldade dos doutrinadores acordarem sobre um conceito, existindo, portanto, inúmeras definições para abuso de direito: Desserteaux (1) acredita, por exemplo, que o abuso de direito origina-se de um conflito de direitos; para Savatier (2) , trata-se de um conflito entre o direito e a moral, Bosch (3) acredita ser um turbamento do equilíbrio de interesses; para Capitant, De Ruggiero, Porcherot e Noto-Sardegna (4) , é o exercício do direito com intenção de causar dano a outrem (espírito do parágrafo 226 do código germânico); Saleilles (5) dizia que: há abuso do direito, no exercício de um direito, cujo efeito não pode ser senão o de prejudicar a outrem, sem interesse legítimo para aquele que o realiza; para Josserand, (6) é o uso do direito como móvel ilegítimo por ser contrário aos fins determinados de sua instituição; para Groppali (7) é o exercício putativo do direito causador do dano; e Rotondi (8) conceitua-o como o exercício do direito condenado pela consciência social, mas não vedado pelo direito positivo.

As divergências existentes, tanto as do campo legal, como as do campo doutrinário, parecem perfeitamente compreensíveis, uma vez que a origem dessa noção é relativamente recente (meados do século XIX), entre a promulgação do Code Napoléon (1806) e do Código Civil Alemão (Bürgerliches Gesetzbuch,1900). O caso paradigma parece ser o vindo da cidade francesa de Colmar, capital do departamento do Haut-Rhin. Lá, em 1855, a despeito da amplitude com que o Código Civil Francês define o direito

de propriedade em seu artigo 544, (9) um cidadão foi processado e condenado após haver construído uma enorme e desnecessária chaminé em seu telhado, com intuito de obstaculizar a chegado dos raios solares à janela de seu vizinho . (10) Ainda no século passado, em sentença oriunda da Espanha (1866), condenou-se um vendedor que, ao ver que seu vizinho não aceitava comprar sua casa pelo preço estipulado, começou a produzir sons estridentes destinados a, assim, “persuadir” seu vizinho a aceitar o preço exigido.(11) Entretanto, foi somente neste século, com o caso Clement Bayard, que a teoria ganhou celebridade. Nesse caso, o proprietário de um terreno vizinho a um campo de pouso de dirigíveis construiu, sem qualquer justificativa razoável, enormes torres que punham em iminente perigo os dirigíveis que ali aterrizavam.(12)

Outro fato perfeitamente compreensível, é o nascimento “tardio” da teoria do abuso de direito. Parece-nos evidente que, tanto no período subseqüente ao da revolução francesa, bem como no corolário de suas conquistas (Code Napoléon), não havia espaço para tais elucubrações sobre a relatividade do direito (abuso de direito). O liberalismo acentuava o individual; e os direitos, vistos do ponto de vista individual, são, via de regra, absolutos. Portanto, era necessário o decorrer de um determinado tempo para que os direitos fossem, de certa forma, relativisados por uma visão mais social, dando, assim, margem a essa construção jurídica. Prova disto, é o fato de que a teoria de abuso do direito foi encorporada pelo direito francês através de construções jurisprudenciais e não pelo Código de 1806, fato que ocorreu mais tarde com seu homólogo alemão de 1900 ( parágrafo 226), ainda que de forma vaga.

Como se observa, há várias divergências quanto à conceituação de abuso de direito; como dizia Georges Ripert:

“En réalité, rien n’est plus mal fixé que le sens profond de la portée de l’application de cette théorie. Cette incertitude se révèle par sa propre dénomination même. Faut-il parler d’abus du droit ou d’abus d’un droit? S’agit-il de certains droits déterminés et définis ou de toutes les facultés? Quelle différence faut-il faire entre l’usage et l’abus? Ce sont des question auxquelles on ne donne pas de réponse bien nette.” (13)

À guisa de conclusão, deve-se advertir que, embora a expressão abuso de direito, a rigor, não seja própria para designar o que pretende – uma vez que há um axioma jurídico segundo o qual o direito cessa quando o abuso começa; (14) não há direito onde há abuso; o direito não respalda o abuso, indo somente até o ponto onde é exercido regularmente e, portanto, não acompanhando este trasbordamento de direito – a expressão serve para seus fins e, ainda que certas vezes cause confusão, está consagrada no direito brasileiro, assim como no direito continental.

1) DESSERTEAUX apud GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito.14.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. Página 323.

2) SAVATIER apud GUSMÃO, Paulo Dourado de. Idem. Página 323.

3) BOSCH apud GUSMÃO, Paulo Dourado de. Idem. Página 323.

4) NOTO-SARDEGNA apud GUSMÃO, Paulo Dourado de. Idem. Página 323.

5) SALLEILES apud CARVALHO SANTOS, J.M.. Código Civil Brasileiro Interpretado. 4.ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1950. Página 349.

6) JOSSERAND, Louis. Derecho Civil. Buenos Aires: Bosh y cia., 1950 (tomo I, vol I). Página 155.

7) GROPPALI apud GUSMÃO, Paulo Dourado de. Opus Citatum. Página 323.

8) ROTONDI apud GUSMÃO, Paulo Dourado de. Idem Página 323.

9) Código Civil Francês, artigo 544: “La propriété est le droit de jouir et disposer des choses de la manière la plus absolue, pourvu qu’on n’en fasse pas un usage prohibé par les lois ou par les règlements.”Grifo nosso.

10) ENCYCLOPÆDIA BRITANNICA, volume 26, página 197. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 1993. Volume 4. Página 48. Acordão do caso supracitado, Colmar, 2 de maio de 1855 ( D.P. 1856.2.9): “La jurisprudence allait bientôt reconnaître que le propriétaire qui en fait usage sans intérêt serieux et legitime et dans un dessin malicieux par exemple en élevant sur son toit une fausse cheminée pour enlever presque la totalité du jour qui restait à la fenêtre de son voisin abusait de son droit et encourrait une responsabilité”.

11) MUÑIZ ARGUELLES, Luis. El abuso del derecho en la legislación y en la jurisprudencia puertorriqueña. AJURIS 53. Pag 59.

12) GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1974. Página 153

13) RIPERT, Georges. La Règle Morale Dans Les Obligation Civiles. 4 ed. Paris: L.G.D.J. 1949. Página 158. “Na verdade, nada é mais mal fixado que o sentido profundo e a abrangência da aplicação desta teoria. Esta incerteza se revela pela própria denominação. Há de se falar em abuso do direito ou abuso de um direito? Trata-se de certos direitos determinados e definidos ou de todas as faculdades? Que diferença há de se fazer entre uso e abuso? Essas são as questões as quais não se dá repostas bem claras.”

14) Planiol apud Silvio Rodrigues. Opus Citatum. página 51: “Il ne faut donc pas être dupe des mots: le droit cesse où l’abus commence, et il ne peut pas y avoir usage abusif d’un droit quelconque, par la raison irréfutable qu’un seul et même acte ne peut pas être tout à la fois conforme au droit et contraire au droit”. Grifo nosso.

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