Sem verdade, sem reconciliação.
8 de setembro de 1998, 0h00
Na década de 80, durante o regime militar argentino, as forças de segurança jogaram ao mar presos políticos ainda vivos e fizeram “desaparecer” milhares de pessoas, inclusive recém-nascidos. O destino de muitas delas ainda é desconhecido. Alguém deu as ordens.
Em 1988, as forças de segurança do Iraque mataram cerca de cinco mil homens, mulheres e crianças curdos na localidade de Halabja, com armas químicas. Alguém chefiou o ataque.
Ao tempo do regime do Khmer Vermelho, no Camboja, centenas de milhares de pessoas foram escravizadas, torturadas e assassinadas de forma sistemática. Apenas no centro de detenção de Tuol Sleng, vinte mil jovens foram mortos. Alguém autorizou esses homicídios.
Quase todas as crianças de Ruanda perderam o pai, a mãe, um irmão ou algum outro familiar no genocídio que consumiu um milhão de vidas em 1994. Suas infâncias foram destroçadas. Muitos viram seus parentes serem objeto de crimes inimagináveis. Meninos e meninas assistiram seus pais sendo torturados ou violados antes de serem mortos. Alguém comandou as missões assassinas.
“Limpeza étnica” e massacres na Bósnia-Herzegovina. O mundo ficou estupefato diante do estupro planejado de mulheres, dos campos de concentração, da mutilação de populações inteiras. Alguém planejou esses crimes.
De acordo com a Unicef, mais de 400.000 crianças já morreram na guerra civil que devasta o Afeganistão. Não existe uma autoridade central e a lei perdeu todo o seu significado. Alguém é responsável por isso.
Cada um desses crimes é de jurisdição universal. Todos os Estados estão obrigados, pelo Direito Internacional, a processar seus autores, quando eles forem encontrados em seu território, ou a entregá-los a um Estado disposto a fazê-lo. Contudo, governos do mundo inteiro têm se mostrado resistentes em cumprir essa obrigação. Infelizmente, com demasiada freqüência, ninguém é investigado e castigado. Muitas vezes os criminosos estão no poder.
Em 1945, ao fim da Segunda Guerra Mundial, a humanidade disse “nunca mais”. Os tribunais internacionais de crimes de guerra de Nuremberg e Tóquio foram instituídos para demonstrar que ninguém estava acima da lei e para garantir que as vítimas fossem testemunhas do julgamento dos seus algozes. Já nesta década, as Nações Unidas criaram tribunais internacionais para julgar os culpados pelos genocídios cometidos em Ruanda e na ex-Iugoslávia. Mas todos foram provisórios e específicos, e os abusos contra os direitos humanos continuaram.
Nada pode ser feito para que os relógios voltem no tempo, nem para impedir a dor e o sofrimento das vítimas. Mas os fatos precisam ser sempre esclarecidos e os criminosos punidos. A forma de garantir que esses atos abomináveis nunca mais serão praticados, é mostrar que a impunidade não prevalecerá e que a paz e a reconciliação só podem ser edificadas sobre os alicerces da justiça.
Como as crianças da ex-Iugoslávia, de Ruanda e de tantos outros lugares poderiam construir um futuro para si, se a justiça não faz parte das suas vidas? Qual a esperança para a paz e para a estabilidade política se os criminosos ficassem impunes? Será inútil a reconstrução de pontes e escolas. Sem justiça e sem verdade não há reconciliação, mas medo e silêncio. Sem justiça, só há respeito pela força bruta. A herança é a mentira e o engano.
Necessitamos, para isso, de um sistema de justiça internacional, capaz de complementar ou substituir os sistemas de justiça nacionais quando os Estados não possam ou não queiram julgar os responsáveis por crimes de guerra e de lesa humanidade. Precisamos de um tribunal capaz de dar um basta à impunidade, de determinar quem são os culpados e os inocentes. Não se pode acusar nações ou grupos étnicos inteiros; isso só faz aumentar o racismo e incrementar a violência.
Ainda em 1948, os expertos em Direito da ONU começaram a estudar a viabilidade da criação de um Tribunal Penal Internacional permanente. As conclusões do estudo foram divulgadas em 1950, mas a proposta foi boicotada durante os anos da chamada Guerra Fria. Em 1990, as Nações Unidas retomaram a idéia e, em 1994, foi apresentado um projeto definitivo à Assembléia Geral.
Os técnicos das Nações Unidas propuseram as medidas que seriam necessárias. Analisaram toda a legislação internacional pertinente, os procedimentos e as responsabilidades de juízes, promotores e advogados. Também definiram os tipos de crimes que deveriam ser apreciados pelo tribunal – casos de genocídio, outros crimes de lesa-humanidade e crimes de guerra.
Cinqüenta anos depois, entre meados de junho e julho de 1998, em uma conferência realizada em Roma, a comunidade mundial finalmente aprovou a criação do Tribunal Penal Internacional. Apenas 7 países votaram contra (EUA, China, Israel, Índia, Turquia, Filipinas e Sri Lanka) e 21 se abstiveram. Apesar do estatuto dessa corte precisar ser melhorado, para garantir que ela será realmente justa e eficaz, o primeiro passo foi dado.
O TPI processará os criminosos individuais, independentemente da sua nacionalidade ou do país onde forem encontrados. Poderá evitar que novos crimes contra a humanidade voltem a ser praticados. Possibilitará que, quando o sistema judicial de um país desmoronar – como aconteceu em Ruanda e no Afeganistão -, a ONU possa pôr os criminosos à disposição da justiça internacional. Fará com que as vítimas e seus familiares saibam que os responsáveis foram castigados, fazendo cessar o ciclo da violência e da impunidade.
Os anos recentes demonstraram a insuficiência dos sistemas nacionais de justiça para reparação das violações massivas e sistemáticas dos direitos humanos. A persistência da impunidade produz o desprezo pela lei e corresponde a uma autorização para a prática de condutas inomináveis. A Anistia Internacional nos lembra que não deve haver abrigo no mundo para os responsáveis por crimes contra a humanidade, que genocídios, massacres, “limpezas étnicas” não podem ser crimes passíveis de prescrição.
O tribunal internacional não será uma panacéia, nem isentará os governos nacionais da sua obrigação primária de processar e julgar os criminosos. O Tribunal Penal Internacional deverá ser uma nova instância de justiça, um modelo para os tribunais nacionais e uma mensagem da comunidade internacional de que atrocidades contra o ser humano nunca mais serão toleradas, não importando em que país aconteçam.
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