Liquidação

Considerações sobre o tema

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25 de novembro de 1998, 17h12

O Código de Processo Civil que passou a vigorar em 1939 fazia expressa previsão no que pertine às hipóteses em que se apura, na fase de liquidação de sentença, que a extensão do dano sofrido pelo autor-exequente é zero, como se infere dos termos do seguinte dispositivo:

“Art. 915. Se as provas não oferecerem elementos suficientes para que o juiz determine o valor da condenação, o liquidante será condenado nas custas, procedendo-se a nova liquidação.”

Não obstante, o legislador houve por bem, ao longo das sucessivas reformas sofridas pelo diploma citado, revogar aquele artigo, sem, contudo, abarcar a matéria, ainda que sob outro prisma, em imperdoável omissão.

Hodiernamente, é assente na doutrina que, na liquidação da sentença, é defeso rediscutir-se o mérito da demanda, é dizer, a existência ou não de dano deve ser apurada ao longo do processo de conhecimento, relegando-se a determinação da extensão deste dano para a fase de liquidação de sentença. De modo que o processo de liquidação de sentença só merece vez ao se apurar, na fase cognitiva, que, efetivamente, houve dano.

Esta mesma doutrina a que se fez menção alhures vem abarcando a possibilidade de a liquidação da sentença culminar com decisão que declare inexistente o quantum debeatur:

“Liquidação zero. O juiz pode condenar na ação de conhecimento, declarando a obrigação de pagar, mas relegar a apuração do quantum para a liquidação da sentença. Na verdade a sentença de conhecimento não é condenatória, mas meramente declaratória (Moniz de Aragão, RP 44/29). Dada a natureza constitutivo-integrativo da sentença de liquidação, é possível que se encontre valor zero para a obrigação de pagar fixada na sentença dita condenatória, porém, declaratória. Não existe mais a regra do CPC/39 915, que, no caso de liquidação zero, mandava fazer quantas liquidações fossem necessárias até encontrar-se um quantum. Hoje, só há possibilidade do ajuizamento de uma ação de liquidação. A sentença que declara ser zero o quantum debeatur não ofende a coisa julgada do processo de conhecimento.” (Nélson Nery Jr., Comentários ao Código de Processo Civil, RT, 2ª ed., p.1036)

De se ressaltar, igualmente, os magistérios de Araken de Assis:

“Tal questão, celebrizada por Calamandrei, e tradicional no direito pátrio, comporta resposta positiva na ampla exposição de Moniz de Aragão. ‘Se a existência e o valor do dano’, diz ele, ‘não houverem sido demonstrados no processo de conhecimento, a tentativa de sua apuração na fase de liquidação de sentença poderá revelar que não há dano a ressarcir, o quantum é igual a zero.'” (Manual do Processo de Execução, 4ªed., 1997, RT, p. 268)

O juiz Arthur Ribeiro proferiu célebre frase com relação ao problema, que foi encampada pelo STF (Arquivo Judiciário, v. 78/25, 2ªcol., in fine), e da qual se valem todos os escritores que compartilham desta corrente, frise-se, absolutamente majoritária, que é digna de transcrição:

“Entre deixar a sentença sem execução e condenar sem provas, é preferível a primeira solução” (apud. Revista de Processo 44/21)

Em que pese a proficiência dos que propugnam pela possibilidade da chamada ‘liquidação zero’, verdadeiros baluartes do discurso jurídico e, modernamente, repise-se, incontestável maioria da doutrina, o tema em exame, ao que parece, põe-se de maneira mais intrincada e merecedor de aprofundado estudo, principalmente nos casos de pedido genérico (art. 286 do CPC).

De um lado, a verificação da extensão zero do dano suportado pelo liquidante e, consequentemente, a possibilidade de enriquecimento sem causa por parte deste.

De outro, a iminência de ofensa à coisa julgada da fase cognitiva, o que é repelido pelo direito, violando-se, inclusive, a previsão normativa do artigo 610 da Lei Processual Civil, pois, dizer que a extensão do dano é zero equivale a dizer que não houve dano, o que iria de encontro ao quanto declarado na sentença do processo de conhecimento e que já passou em julgado (supõe-se).

Os princípios do contraditório e da ampla defesa devem sempre informar o processo. Daí, decorre que, teoricamente, ao réu, foram assegurados os mais amplos direitos de defesa, inclusive dilação probatória, momento em que teve oportunidade de provar que o autor não experimentou qualquer dano, eximindo-se, dessarte de eventual condenação. Em não o fazendo no momento processual adequado, salvo raríssimas exceções, opera-se a preclusão.

Se a ação foi julgada procedente, deduz-se que o magistrado, dentro do princípio do livre convencimento do juiz e valendo-se das provas constantes dos autos, estava convicto de que houve dano.

Não estando convencido da existência de dano, deveria afastar a pretensão do autor. Como aquela decisão transitou em julgado, restou indubitável, aos olhos do Poder Judiciário, a ocorrência de dano. Então, é de se proceder à liquidação da sentença de modo a proporcionar condições para que se delimite a extensão do dano, sem que se possa rediscutir o mérito da ação.

Os doutrinadores de outrora já defenderam esta posição – à qual, humildemente, filiamo-nos, pelas razões já aduzidas – como se percebe do seguinte ensinamento de Leite Velho:

“Qualquer que seja a dificuldade das provas, por muito deficientes que elas sejam, o juiz não pode sob tal pretexto julgar extinta e execução, mas deve empregar, para chegar a um resultado, todos os recursos que lhe sugerir o seu prudente arbítrio, decidindo ainda por presunções leves e conjecturas” (Revista de Processo 44/21)

Traga-se à baila, ainda, a lição do Barão de Ramalho:

“Não provando o liquidante seus artigos, deve o juiz mandar proceder à liquidação por outro modo, para que não fique a sentença sem execução.” (Idem)

Em suma, o magistrado deve, na hipótese em voga, fulcrado nas mesmas razões que o fizeram julgar procedente a lide, dimensionar, com seu prudente arbítrio e utilizando-se de apurado bom-senso, a extensão do aparente dano experimentado pelo vencedor.

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