Ilustrativa é a lembrança, de Geraldo Ataliba, de esquema desenhado por Ruy Cirne Lima, sob o nome “relação de administração”:
“Diz ele que em todas as situações jurídicas duas posições podem ser ocupadas por uma pessoa: ou a posição de senhor (dono, aquele que dispõe da coisa, usa-a e dela faz o que quiser), ou a posição de administrador, que é a posição de terceiro, quem cuida de uma coisa, desenvolve-a, preserva-a, mas não é dono. Ao geri-la, ao administrá-la, há de obedecer à vontade do dono, conduzindo esta coisa à finalidade que o dono determinou. O administrador é, então, aquela pessoa que, tendo a aparência de dominar, exercendo alguns atos de domínio sobre a coisa, entretanto dela não é dono e dela não pode dispor. Este o esquema que Cirne Lima apresenta, como explicativo do Direito Administrativo. E explicativo é, em todas as instituições republicanas, do próprio Direito Constitucional Republicano, que vivemos, porque de acordo com a concepção dominante, república é um regime jurídico no qual a coisa pública pertence ao povo, a todos nós, sendo a aparelhagem, os órgãos do governo, meros instrumentos de administração da coisa pública. Os eventuais e transitórios exercentes de função pública não são os donos da coisa pública: dono é o povo. Os exercentes de funções públicas simplesmente administram a coisa pública de acordo com a vontade do dono, traduzida, estampada solenemente na lei, que é a mais alta manifestação da vontade do povo, por seu órgão, por sua criatura, o Estado” (RDP76/111)
Esse pressuposto metodológico, decorrente dos princípios fundamentais do Estado Democrático Brasileiro “cidadania” e “dignidade da pessoa humana” é determinante na interpretação constitucional desse remédio. Não poderá o intérprete, especialmente o “intérprete autêntico” de Kelsen, amarrar o instituto, restringir seu alcance fiscalizatório pois seria atentar contra o sentido da Carta Magna que constituiu o nosso Estado, que determinou como nosso Estado “deve ser”.
Ora, se tem a coletividade o direito a uma administração honesta, os “atos lesivos” que ensejariam o exercício da ação popular devem ser estendidos de uma forma ampla, a fim de que nenhuma atividade administrativa lesiva possa ficar à margem desse controle popular. Em 1934 quase esse remédio foi excluído do texto constitucional que então se preparava. Sua inclusão naquela efêmera Carta à defesa de um deputado baiano que via no instituto a essência da democracia:
“Se efetivamente, estamos aqui organizando um regime democrático; se não somos daqueles que acreditam que esse regime já faliu, e o inscrevemos no preâmbulo da Constituição, não é possível, de modo algum, deixar de dar ingresso a essa possibilidade, a essa franquia, por meio da qual todo cidadão brasileiro será parte legítima para promover a declaração de nulidade ou anulação de um ato lesivo ao patrimônio público” (dep. Marques dos Reis, apud Nelson Carneiro, “Das Ações Populares Civis no Direito Brasileiro”, RDA 25/469).
Sendo a ação popular uma garantia constitucional, em sua interpretação não se pode deixar de “dar eficácia à Constituição”, nas palavras de Geraldo Ataliba, que continua, em brilhante conferência – já citada acima – de título “A Ação Popular na Constituição Brasileira” (de 1969):
“É o cidadão provocando o Poder Judiciário, para a mais nobre de suas funções. É essa nobreza que impõe uma largueza de visão que não se compadece com os tecnicismos miúdos que muitas vezes frustram a solução de grandes questões, e sobretudo prejudicam os mecanismos de eficácia do Texto Constitucional, jogando-os por água abaixo”. (RDP 76/114
Assim opina, ou melhor, assim ensina Geraldo Ataliba sobre o significado de “atos lesivos”, na linha aqui defendida:
Terceira questão: atos lesivos. São atos que causam lesão, prejuízo, dano, detrimento – já que a Constituição não distingue – direto ou indireto. Não seria defesa para a autoridade pública alegar, por exemplo: “O dano aqui foi indireto, não foi causado imediatamente pelo ato, não foi diretamente provocado pelo ato”.
A lesão, ou dano, podem ser diretos ou indiretos. Aqui também reforça-se essa consideração; aqui também se vê, sublinhada, a necessidade de se pôr ênfase na circunstância de que não se trata só de direito administrativo, de ato jurídico praticado por agentes diretos do Estado. Qualquer comportamento de todo e qualquer agente público que tenha como conseqüência causar lesão, prejuízo, dano ao patrimônio público, é evidente que pode ser alvo de Ação Popular, sob pena de ser esvaziado – senão total, pelo menos parcialmente – o instituto, com uma diminuição que amesquinhe o próprio preceito constitucional.
A meu ver, é evidente que, embora a Constituição fale em atos lesivos, também as omissões, também as gritantes, as terríveis, as reiteradas omissões das autoridades competentes para coibirem coisas que se façam, seja na esfera pública, seja na esfera privada, sujeita a controle e fiscalização, etc, do Poder Público, também as omissões estão nas categorias de atos lesivos que podem ser praticados pelas autoridades públicas e, portanto, alvo da Ação Popular”.(grifei, art.cit.pág.115).
Neste sentido a Lei 4717/65, que prevê como sujeitos passivos da Ação Popular, em seu art. 6º “as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado ou que, por omissas, tiverem dado oportunidade à lesão, e contra os beneficiários diretos do mesmo’. Afinal, qualquer restrição legal à garantia em nível constitucional seria inválida, pois em desacordo com o “princípio republicano” – como se refere Ataliba – que informa todo o sistema normativo posto. Mesmo porque, o art. 5º, LXXIII é obviamente auto aplicável (cf. Nelson Carneiro, art. cit. págs. 472/473).
Sobre esse artigo manifestou-se José Carlos Barbosa Moreira: “O dispositivo é rigoroso e sua redação chega a ser redundante, no afã de não deixar de lado quem quer que tenha contribuído para a realização do ato cuja nulidade ou anulação se demanda”. (“Problemas da Ação Popular”, RDA 85/397).
Assim, todos estes agentes descritos na lei devem ser réus em Ação Popular. Continua Geraldo Ataliba: “Depois, no período probatório, é que se vai ver. Esse é o ônus com que qualquer pessoa que exerce função pública deve arcar. Está sujeito a esta fiscalização, inclusive popular”. (grifei, art. cit.,pág. 120; no mesmo sentido, sobre a legitimação passiva desse remédio constitucional, Wagner Brússulo Pacheco, em artigo “Condições da Ação Popular”, RDP72/120-121).
Neste ponto conclui-se que o réu Paulo Maluf faz parte legitimamente do pólo passivo desta demanda, pois, em tese, poderia ter contribuído para uma, por ora também em tese (pois ainda estamos analisando as preliminares processuais), ação danosa ao erário municipal.
Cumpre, agora, o mérito, a verificação dessa omissão abstrata que justificou a permanência do então Prefeito da Cidade de São Paulo como demandado nestes autos, pois se esta ocorreu em concreto implicaria na procedência da ação em relação a ele.
Novamente, algumas considerações doutrinárias, a respeito do desvio de finalidade e do abuso de poder administrativo, se fazem necessárias para um adequado exame da questão.
Ressalve-se que a teoria do desvio de finalidade não se aplica somente ao ato administrativo em sentido estrito. Nas palavras de Caio Tácito, “a abstenção do poder público é uma das formas mais nocivas de violação da lei (…) A inércia da autoridade administrativa, deixando de executar determinada prestação de serviço a que por lei está obrigada, lesa o patrimônio jurídico individual. É forma omissiva de abuso de poder, quer o ato seja doloso ou culposo”. (“O abuso do Poder Administrativo no Brasil – conceitos e remédios, RDA 56/2).
Dessa forma, através do exame dessa teoria, também chamada de abuso de poder administrativo, será possível analisar melhor a atividade do então Prefeito em relação às operações financeiras coordenadas por seu Secretário de Finanças, afinal, se houve omissão (atividade negativa) é porque, logicamente, havia antes um dever jurídico de agir (atividade positiva).
Ora, entre o Prefeito – eleito democraticamente pela população paulistana – e o Secretário de Finanças – cargo ocupado por alguém de confiança, escolhido pelo primeiro – há uma relação de hierarquia.
“A existência de hierarquia nas relações entre órgãos e nas relações funcionais entre servidores ou autoridades leva ao exercício de poderes e faculdades do superior sobre o subordinado, vistos como desdobramentos ou decorrências do poder hierárquico. Dentre tais poderes salientam-se os seguintes: a) poder de dar ordens – o superior hierárquico detém a faculdade de emitir ordens funcionais aos subordinados, inclusive fixando diretrizes de atuação. O subordinado deve atender, em princípio, às ordens e instruções funcionais expendidas pelo superior hierárquico. A ressalva ao atendimento se justifica, de regra, no tocante a ordens manifestamente ilegais, desde que o subordinado assim se explique por escrito, o que é raro no dia a dia da Administração. b) poder de controle – o superior hierárquico exerce controle sobre os atos e a atividade dos órgãos e autoridades subordinadas. Trata-se do controle hierárquico que pode se realizar de ofício, sem provocação, como resultado do próprio modo de funcionamento de uma estrutura hierarquizada. O controle hierárquico se exerce também por provocação, em virtude de interposição de recurso hierárquico de decisão do subordinado ou requerimento de outro tipo. c) poder rever atos dos subordinados – é faculdade que permite ao superior hierárquico alterar total ou parcialmente decisões dos subordinados, de modo espontâneo ou mediante provocação (recurso ou requerimento). Tais alterações podem levar à anulação ou à revogação do ato emitido pelo subordinado, se for o caso. d) poder de coordenação – é a faculdade de exercer atividades tendentes a harmonizar a atuação dos diversos órgãos que lhe são subordinados, sobretudo para assegurar integração no cumprimento dos encargos e para evitar dispersão e desperdícios. A coordenação figura entre os preceitos fundamentais que regem as atividades da Administração Federal no Brasil (artgs. 6º, II, e 8º do Dec-Lei 200/67). (Odete Medauar, pág. 58/59, Direito Administrativo Moderno, 2ª ed. TR, 1998, grifei).
Continua em Comunidade Jurídica.