Consultor Jurídico

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5 de janeiro de 1999, 16h41

Por Redação ConJur

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Ilustrativa é a lembrança, de Geraldo Ataliba, de esquema desenhado por Ruy Cirne Lima, sob o nome “relação de administração”:

“Diz ele que em todas as situações jurídicas duas posições podem ser ocupadas por uma pessoa: ou a posição de senhor (dono, aquele que dispõe da coisa, usa-a e dela faz o que quiser), ou a posição de administrador, que é a posição de terceiro, quem cuida de uma coisa, desenvolve-a, preserva-a, mas não é dono. Ao geri-la, ao administrá-la, há de obedecer à vontade do dono, conduzindo esta coisa à finalidade que o dono determinou. O administrador é, então, aquela pessoa que, tendo a aparência de dominar, exercendo alguns atos de domínio sobre a coisa, entretanto dela não é dono e dela não pode dispor. Este o esquema que Cirne Lima apresenta, como explicativo do Direito Administrativo. E explicativo é, em todas as instituições republicanas, do próprio Direito Constitucional Republicano, que vivemos, porque de acordo com a concepção dominante, república é um regime jurídico no qual a coisa pública pertence ao povo, a todos nós, sendo a aparelhagem, os órgãos do governo, meros instrumentos de administração da coisa pública. Os eventuais e transitórios exercentes de função pública não são os donos da coisa pública: dono é o povo. Os exercentes de funções públicas simplesmente administram a coisa pública de acordo com a vontade do dono, traduzida, estampada solenemente na lei, que é a mais alta manifestação da vontade do povo, por seu órgão, por sua criatura, o Estado” (RDP76/111)

Esse pressuposto metodológico, decorrente dos princípios fundamentais do Estado Democrático Brasileiro “cidadania” e “dignidade da pessoa humana” é determinante na interpretação constitucional desse remédio. Não poderá o intérprete, especialmente o “intérprete autêntico” de Kelsen, amarrar o instituto, restringir seu alcance fiscalizatório pois seria atentar contra o sentido da Carta Magna que constituiu o nosso Estado, que determinou como nosso Estado “deve ser”.

Ora, se tem a coletividade o direito a uma administração honesta, os “atos lesivos” que ensejariam o exercício da ação popular devem ser estendidos de uma forma ampla, a fim de que nenhuma atividade administrativa lesiva possa ficar à margem desse controle popular. Em 1934 quase esse remédio foi excluído do texto constitucional que então se preparava. Sua inclusão naquela efêmera Carta à defesa de um deputado baiano que via no instituto a essência da democracia:

“Se efetivamente, estamos aqui organizando um regime democrático; se não somos daqueles que acreditam que esse regime já faliu, e o inscrevemos no preâmbulo da Constituição, não é possível, de modo algum, deixar de dar ingresso a essa possibilidade, a essa franquia, por meio da qual todo cidadão brasileiro será parte legítima para promover a declaração de nulidade ou anulação de um ato lesivo ao patrimônio público” (dep. Marques dos Reis, apud Nelson Carneiro, “Das Ações Populares Civis no Direito Brasileiro”, RDA 25/469).

Sendo a ação popular uma garantia constitucional, em sua interpretação não se pode deixar de “dar eficácia à Constituição”, nas palavras de Geraldo Ataliba, que continua, em brilhante conferência – já citada acima – de título “A Ação Popular na Constituição Brasileira” (de 1969):

“É o cidadão provocando o Poder Judiciário, para a mais nobre de suas funções. É essa nobreza que impõe uma largueza de visão que não se compadece com os tecnicismos miúdos que muitas vezes frustram a solução de grandes questões, e sobretudo prejudicam os mecanismos de eficácia do Texto Constitucional, jogando-os por água abaixo”. (RDP 76/114

Assim opina, ou melhor, assim ensina Geraldo Ataliba sobre o significado de “atos lesivos”, na linha aqui defendida:

Terceira questão: atos lesivos. São atos que causam lesão, prejuízo, dano, detrimento – já que a Constituição não distingue – direto ou indireto. Não seria defesa para a autoridade pública alegar, por exemplo: “O dano aqui foi indireto, não foi causado imediatamente pelo ato, não foi diretamente provocado pelo ato”.

A lesão, ou dano, podem ser diretos ou indiretos. Aqui também reforça-se essa consideração; aqui também se vê, sublinhada, a necessidade de se pôr ênfase na circunstância de que não se trata só de direito administrativo, de ato jurídico praticado por agentes diretos do Estado. Qualquer comportamento de todo e qualquer agente público que tenha como conseqüência causar lesão, prejuízo, dano ao patrimônio público, é evidente que pode ser alvo de Ação Popular, sob pena de ser esvaziado – senão total, pelo menos parcialmente – o instituto, com uma diminuição que amesquinhe o próprio preceito constitucional.

A meu ver, é evidente que, embora a Constituição fale em atos lesivos, também as omissões, também as gritantes, as terríveis, as reiteradas omissões das autoridades competentes para coibirem coisas que se façam, seja na esfera pública, seja na esfera privada, sujeita a controle e fiscalização, etc, do Poder Público, também as omissões estão nas categorias de atos lesivos que podem ser praticados pelas autoridades públicas e, portanto, alvo da Ação Popular”.(grifei, art.cit.pág.115).

Neste sentido a Lei 4717/65, que prevê como sujeitos passivos da Ação Popular, em seu art. 6º “as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado ou que, por omissas, tiverem dado oportunidade à lesão, e contra os beneficiários diretos do mesmo’. Afinal, qualquer restrição legal à garantia em nível constitucional seria inválida, pois em desacordo com o “princípio republicano” – como se refere Ataliba – que informa todo o sistema normativo posto. Mesmo porque, o art. 5º, LXXIII é obviamente auto aplicável (cf. Nelson Carneiro, art. cit. págs. 472/473).

Sobre esse artigo manifestou-se José Carlos Barbosa Moreira: “O dispositivo é rigoroso e sua redação chega a ser redundante, no afã de não deixar de lado quem quer que tenha contribuído para a realização do ato cuja nulidade ou anulação se demanda”. (“Problemas da Ação Popular”, RDA 85/397).

Assim, todos estes agentes descritos na lei devem ser réus em Ação Popular. Continua Geraldo Ataliba: “Depois, no período probatório, é que se vai ver. Esse é o ônus com que qualquer pessoa que exerce função pública deve arcar. Está sujeito a esta fiscalização, inclusive popular”. (grifei, art. cit.,pág. 120; no mesmo sentido, sobre a legitimação passiva desse remédio constitucional, Wagner Brússulo Pacheco, em artigo “Condições da Ação Popular”, RDP72/120-121).

Neste ponto conclui-se que o réu Paulo Maluf faz parte legitimamente do pólo passivo desta demanda, pois, em tese, poderia ter contribuído para uma, por ora também em tese (pois ainda estamos analisando as preliminares processuais), ação danosa ao erário municipal.

Cumpre, agora, o mérito, a verificação dessa omissão abstrata que justificou a permanência do então Prefeito da Cidade de São Paulo como demandado nestes autos, pois se esta ocorreu em concreto implicaria na procedência da ação em relação a ele.

Novamente, algumas considerações doutrinárias, a respeito do desvio de finalidade e do abuso de poder administrativo, se fazem necessárias para um adequado exame da questão.

Ressalve-se que a teoria do desvio de finalidade não se aplica somente ao ato administrativo em sentido estrito. Nas palavras de Caio Tácito, “a abstenção do poder público é uma das formas mais nocivas de violação da lei (…) A inércia da autoridade administrativa, deixando de executar determinada prestação de serviço a que por lei está obrigada, lesa o patrimônio jurídico individual. É forma omissiva de abuso de poder, quer o ato seja doloso ou culposo”. (“O abuso do Poder Administrativo no Brasil – conceitos e remédios, RDA 56/2).

Dessa forma, através do exame dessa teoria, também chamada de abuso de poder administrativo, será possível analisar melhor a atividade do então Prefeito em relação às operações financeiras coordenadas por seu Secretário de Finanças, afinal, se houve omissão (atividade negativa) é porque, logicamente, havia antes um dever jurídico de agir (atividade positiva).

Ora, entre o Prefeito – eleito democraticamente pela população paulistana – e o Secretário de Finanças – cargo ocupado por alguém de confiança, escolhido pelo primeiro – há uma relação de hierarquia.

“A existência de hierarquia nas relações entre órgãos e nas relações funcionais entre servidores ou autoridades leva ao exercício de poderes e faculdades do superior sobre o subordinado, vistos como desdobramentos ou decorrências do poder hierárquico. Dentre tais poderes salientam-se os seguintes: a) poder de dar ordens – o superior hierárquico detém a faculdade de emitir ordens funcionais aos subordinados, inclusive fixando diretrizes de atuação. O subordinado deve atender, em princípio, às ordens e instruções funcionais expendidas pelo superior hierárquico. A ressalva ao atendimento se justifica, de regra, no tocante a ordens manifestamente ilegais, desde que o subordinado assim se explique por escrito, o que é raro no dia a dia da Administração. b) poder de controle – o superior hierárquico exerce controle sobre os atos e a atividade dos órgãos e autoridades subordinadas. Trata-se do controle hierárquico que pode se realizar de ofício, sem provocação, como resultado do próprio modo de funcionamento de uma estrutura hierarquizada. O controle hierárquico se exerce também por provocação, em virtude de interposição de recurso hierárquico de decisão do subordinado ou requerimento de outro tipo. c) poder rever atos dos subordinados – é faculdade que permite ao superior hierárquico alterar total ou parcialmente decisões dos subordinados, de modo espontâneo ou mediante provocação (recurso ou requerimento). Tais alterações podem levar à anulação ou à revogação do ato emitido pelo subordinado, se for o caso. d) poder de coordenação – é a faculdade de exercer atividades tendentes a harmonizar a atuação dos diversos órgãos que lhe são subordinados, sobretudo para assegurar integração no cumprimento dos encargos e para evitar dispersão e desperdícios. A coordenação figura entre os preceitos fundamentais que regem as atividades da Administração Federal no Brasil (artgs. 6º, II, e 8º do Dec-Lei 200/67). (Odete Medauar, pág. 58/59, Direito Administrativo Moderno, 2ª ed. TR, 1998, grifei).

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24 de novembro de 1998, 23h00

Por Daniel Roberto Fink

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VI. A legitimidade do Ministério Público em face dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos

Vimos acima que a base teleológica de intervenção do Ministério Público nos processos judiciais é a ocorrência de um interesse público representado por certas situações que a norma jurídica – a lei – julga de relevância social sua defesa. Por isso, entrega ao um órgão do Estado – o Ministério Público – a tarefa de zelar pela correta aplicação da lei nesses casos.

Isso, além de atender à uma vontade social expressa na norma, dá a exata dimensão da função institucional do Ministério Público: a defesa de certos interesses da sociedade, chamados públicos, os quais foram eleitos para que fossem especialmente tutelados. Mas, é sempre bom frisar que esses interesses, às vezes exteriorizados em uma única pessoa (por exemplo, o incapaz), dizem respeito – interessam – a toda a sociedade.

Dessa forma, a função do Ministério Público está umbilicalmente – e até mesmo legalmente – vinculada à vontade geral da sociedade, expressa nas leis.

Sob essa ótica é que devemos analisar a atuação do Ministério Público em matéria de poluição sonora e defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Já vimos, também acima, que é marca distintiva dos interesses difusos a indeterminação dos sujeitos titulares do bem jurídico protegido pela norma, de forma que esses interesses dizem respeito a coletividade como um todo, não comportando divisão em parcelas.

Quanto aos interesses difusos, pois, não resta dúvida que o Ministério Público goza de legitimidade para sua tutela, não só porque decorre de expressa disposição constitucional (inciso III, art. 129) e legal (art. 5º, da Lei nº 7.347/85), mas porque, pela sua amplitude, diz respeito ao interesse de toda sociedade.

Porém, quanto aos interesses coletivos e individuais homogêneos, a legitimidade do Ministério Público não é tão pacífica quanto possa parecer.

Nelson Nery Júnior, defende que a Instituição goza de plena legitimidade para tutela desses interesses. Funda-se no fato de ser incontroverso que a norma jurídica constitucional ou infra-constitucional (por exemplo, o Código de Defesa do Consumidor) atribuem-na ao Ministério Público. E, se assim o é, é o que basta para afirmar a legitimidade ad causam.

Ada Pellegrini Grinover, a nosso ver adotando semelhante posição, introduz o conceito de relevância social para temperar a ação Institucional do Ministério Público. Vale a pena citar passagem onde trata do tema: “… a doutrina, internacional e nacional, já deixou claro que a tutela de direitos transindividuais não significa propriamente a defesa de interesse público, nem de interesses privados, pois os interesses privados são vistos e tratados em sua dimensão social e coletiva, sendo de grande importância política a solução jurisdicional de conflitos de massa.

Assim, foi exatamente a relevância social da tutela coletiva dos interesses ou direitos individuais homogêneos que levou o legislador ordinário a conferir ao MP e a outros entes públicos a legitimação para agir nessa modalidade de demanda, mesmo em se tratando de interesses ou direitos disponíveis. …”

E prossegue a ilustre professora: “Quando muito, poder-se-ia exigir, caso a caso, que se aferisse a relevância social do objeto da demanda coletiva em defesa de interesses individuais homogêneos, para o reconhecimento da legitimação do MP”. (sem grifo no original)

Pode-se perceber que a professora Ada afirma a legitimidade do Ministério Público, mas admite que em alguns casos, que deverão ser analisados um a um, faz-se necessária a presença da relevância social para legitimar ad causam a Instituição.

O ilustre Desembargador Kazuo Watanabe, por seu turno, não deixa margem a dúvidas sobre a necessária presença de um interesse social relevante para legitimar o Ministério Público a agir:

“… A indivisibilidade do bem jurídico tutelando, nota mais marcante dos interesses ou direitos difusos ou coletivos, deve dizer respeito a toda a coletividade (difusos) ou a todo o grupo, categoria ou classe de pessoas (coletivos), o que significa que entidades privadas ou públicas, inclusive o Ministério Público, não estão legitimados para a tutela de interesses individuais agrupados (exclusão feita à hipótese prevista no inc. III do mesmo dispositivo – art. 81, da Lei nº 8.078/90 -), mormente em se tratando de interesses contrapostos de membros de um mesmo grupo, classe ou categoria de pessoas.

Essa mesma interpretação deve prevalecer em relação ao inc. III do art. 129, CF, sob pena de se transformar o Ministério Público em defensor de interesses individuais disponíveis, quando a sua atribuição institucional é mais relevante, ao que se extrai do texto dos arts. 127 e seguintes da Constituição Federal. Em linha de princípio, somente os interesses individuais indisponíveis estão sob a proteção do parquet. Foi a relevância social da tutela a título coletivo dos interesses ou direitos individuais homogêneos que levou o legislador a atribuir ao Ministério Público e a outros entes públicos a legitimação para agir nessa modalidade de demanda molecular.” (sem grifo no original)


Por fim, é sempre conveniente lembrar a lição de Hugo Nigro Mazzilli, que dedicou-se a estudar a natureza jurídica das funções institucionais do Ministério Público. Mazzilli é peremptório ao exigir a presença de um interesse social relevante para legitimar o Ministério Público a tutelar os interesses coletivos e individuais homogêneos:

“Está o Ministério Público destinado à defesa de interesses individuais do indivíduo e da sociedade, bem como ao zelo dos interesses sociais, coletivos ou difusos, vedada sua atuação fora da vocação institucional. Quanto à defesa dos interesses individuais homogêneos, ainda que disponíveis, sua defesa pelo Ministério Público é possível (CDC, arts. 81/2; Lei nº 8.625/93, art. 25, IV, a), mas desde que tenha suficiente abrangência ou repercussão social“.

Mais adiante, arremata com firmeza: “… Já em matéria de interesses coletivos e de interesses individuais homogêneos, o Ministério Público atuará sempre que: a) haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou pelas características do dano (mesmo o potencial); b) seja acentuada a relevância do bem jurídico a ser defendido; c) esteja em questão a estabilidade de um sistema social, jurídico ou econômico.

E, arremata Mazzilli: “… Quando, porém, se tratar da defesa de interesses coletivos ou individuais homogêneos, de pequenos grupos, sem características de indisponibilidade nem suficiente abrangência social, pode não se justificar a iniciativa do Ministério Público.” (sem grifo no original)

Nota-se, assim, pelas lições acima citadas, com evidentes exceções, que há uma preocupação da doutrina em qualificar a legitimidade do Ministério Público pela relevância social, sob pena de amesquinhar a atuação institucional, ou transformá-la em exercício de advocacia privada.

Essa preocupação, a nosso ver, é absolutamente razoável, já que a vocação do Ministério Público é a defesa de interesses sociais ou individuais, estes quando indisponíveis.

VII. A legitimidade do Ministério Público em matéria de poluição sonora

O assunto da legitimidade do Ministério Público em matéria de poluição sonora não é novo na Instituição, apesar de não termos encontrado a sistematização que ora pretendemos realizar. O E. Conselho Superior do Ministério Público viu-se, por expressa disposição legal, na condição de reexaminar diversos inquéritos civis ou procedimentos, com promoção de arquivamento, que abordam o tema. Em razão de reiterado entendimento, aquele Conselho entendeu por bem uniformizá-lo, indicando aos membros do Ministério Público o pensamento majoritário. Editou, então, a súmula nº 14, cujo texto citamos abaixo: Súmula n. 14. Em caso de poluição sonora praticada em detrimento de número indeterminado de moradores de uma região da cidade, mais do que meros interesses individuais, há, no caso, interesses difusos a zelar, em virtude da indeterminação dos titulares e da indivisibilidade do bem jurídico protegido.

Fundamento: Se os ruídos urbanos importam lesões que não são restritas ao direito de vizinhança, mas atingem a qualidade de vida dos moradores da região ou de toda a coletividade, o Ministério Público estará legitimado à ação civil pública (Pt. n. 35.137/93).

Vê-se claramente, que a preocupação do colegiado encarregado do reexame de promoções de arquivamento coaduna-se com a preocupação doutrinária. Nas expressões “… em detrimento de número indeterminado de moradores de uma região da cidade…” são eleitos dois critérios para afastar o amesquinhamento da atuação institucional: o número indeterminado de sujeitos de direito ou ao menos de difícil determinação; e o critério geográfico, ou seja, a lesão não pode circunscrever-se num espaço físico pequeno e delimitado, mas deve abranger “uma região da cidade”.

A jurisprudência, sobretudo do Tribunal de Justiça de São Paulo, não é unânime sobre o tema, mas tem-se encaminhado para deixar para cada caso concreto, sobretudo para a prova a ser produzida, a verificação da extensão da lesão objeto da poluição sonora para, daí, verificar o relevância social do dano.

Já deveríamos ter dito e o fazemos agora que, em matéria de poluição sonora, o critério para verificação da relevância social do dano efetivo ou potencial que qualifica a legitimidade do Ministério Público não será a qualidade do bem jurídico lesado (por exemplo, saúde), mas o número de titulares do direito lesado, que deverá ser necessariamente indeterminado.

O critério para verificação da relevância social não é a qualidade do bem jurídico lesado porque, ainda que a poluição sonora afete profundamente a saúde de uma pessoa ou um grupo determinado, o Ministério Público não está legitimado para a ação civil pública para fazer cessar os limites do ruído, posto que os limites da lesão são restritos.


Veja-se nesse sentido, o ponderado acórdão que cujo significativo trecho nos permitimos citar:

“… Saber-se se a poluição sonora advinda do estabelecimento da ré aflige a uma parcela da comunidade, ou se apenas atinge aqueles que residem ou trabalham nos imóveis lindeiros, é questão que irá necessariamente demandar dilação probatória. É possível em tese a propositura pelo Ministério Público, se se cuidar de dano ambiental que tenha o condão de atingir parcela indeterminável de pessoas. Reduzir a questão a simples conflito de vizinhança, sem respaldo probatório algum, é tolher atribuição conferida constitucionalmente ao apelante (C.F., art. 129, III).” (TJSP – Ap. cível nº 171.554-1/5, j. 16.9.92, m.v – grifo no original)

A lucidez da decisão transcrita está em deixar o exame da questão caso a caso, como pregou em trecho acima citado a professora Ada Pellegrini Grinover.

É evidente que esse juízo não deve ser necessariamente formulado perante o Poder Judiciário, por meio de ação civil pública, mas deverá, antes, ser objeto de análise pelo Promotor de Justiça e pelos órgãos institucionais com atribuição para tal.

Ao realizar esse juízo de valor, deve o Promotor de Justiça indagar se há relevância social no interesse a ser defendido, verificando sua ocorrência pela indeterminação dos sujeitos titulares, ou ao menos e pela extensão geográfica do dano, como recomenda o Conselho Superior.

Isso sob pena do membro do Ministério Público submeter ao Judiciário questões de natureza privada, às quais deve deixar para serem resolvidas por seus titulares de direito. Exemplo disso é a decisão que abaixo citamos:

ESTABELECIMENTO COMERCIAL – POLUIÇÃO SONORA – AÇÃO CIVIL PÚBLICA PROPOSTA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO VISANDO AO SER FECHAMENTO, BEM COMO SUA CONDENAÇÃO A DEIXAR DE DEMITIR SONS EM EXCESSO – ILEGITIMIDADE “AD CAUSAM” – INEXISTÊNCIA, NA HIPÓTESE, DE PROTEÇÃO A INTERESSES DIFUSOS – RUÍDOS QUE NÃO ULTRAPASSAM OS LIMITES DA VIZINHANÇA, CONSTITUINDO-SE EM NATURAL DESCONFORTO A TERCEIRO, MAS NÃO EM EFETIVO RISCO À SAÚDE DE TODA A COLETIVIDADE LOCAL – EXTINÇÃO DO PROCESSO MANTIDA – RECURSO IMPROVIDO.

Em que pese a constatação positiva feita pela CETESB no local, não se afigura situação de risco à saúde da comunidade, senão apenas um natural desconforto dos moradores vizinhos à casa comercial. De sorte que, a hipótese não é de proteção a interesses difusos, como tais se compreendendo aqueles pertinentes a um número indeterminado de pessoas. Ao invés, parece perfeitamente possível a identificação das pessoas atingidas exatamente as que residem nas proximidades e manifestaram seu inconformismo ao Promotor. Assim, aos interessados compete a propositura da ação entendam apropriada, com invocação de direitos ao seu bem-estar e justo sossego.” (TJSP – Ap. Cív. nº 172.205-1/0, j. 25.8.92, v.u.)

Esse último acórdão citado, perpassa por aspecto que nos parece digno de nota. O exercício da cidadania se faz diretamente, e não por interposta pessoa, ou seja, é mais eficaz e melhor que a sociedade civil defenda seus direitos por si e por seus meios, cabendo ao Ministério Público a função que tradicionalmente exerce: a fiscalização da correta aplicação da lei e não a atuação como parte, substituto processual.

VIII. Conclusões

Por tudo quanto acima se afirmou, é possível identificar algumas conclusões capazes de fundamentar a legitimidade do Ministério Público na defesa de interesses e direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, bem como a análise dessa legitimidade em face do fenômeno da poluição sonora.

1. Como vimos, em matéria de interesses difusos, há um número indeterminado de pessoas sujeitos do interesse, que é indivisível, reunidas por uma situação meramente fática. O interesse difuso, assemelha-se, pois, com o interesse social, geral e público. Não há dúvida, assim, em afirmar que o Ministério Público goza de plena legitimidade ad causam para a tutela de situações concretas em que se identifiquem presentes tais interesses.

2. Em se tratando de interesses coletivos e individuais homogêneos, além da legitimidade extraordinária decorrente de expressa disposição legal, deve qualificar a legitimação do Ministério Público a existência de relevância social na hipótese concreta por ventura em análise, sob pena de amesquinhar a atuação de uma instituição constitucionalmente vocacionada para a defesa de interesses social.

3. Cuidando a hipótese de poluição sonora, somente a análise de caso a caso é que determinará se o Ministério Público tem ou não legitimidade para tutela dos interesses em questão. Isso porque, os sons são variáveis em intensidade e volume, possibilitando que um menor ou maior número de pessoas sejam afetadas pela poluição sonora.

Contudo e somente a título de exemplo, entendemos possível identificar algumas situações onde aprioristicamente podemos classificar o tipo de interesse envolvido, tendo em vista a evidência das circunstâncias de fato que contornam o problema:

– vizinho de apartamento que causa ruído por instrumento musical: direito puramente subjetivo;

– casas noturnas, restaurantes, bares ou similares que se utilizam de música ao vivo ou por qualquer outro processo: interesses individuais homogêneos;

– aeroportos em zona urbana ou qualquer processo de propaganda que se utilize de veículos com alto-falantes divulgando mensagens ou músicas: interesses difusos.

Revista Consultor Jurídico, 25 de novembro de 1998.