Pinochet e a força do direito

Pinochet e a força do direito

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2 de novembro de 1998, 23h00

“Mas se ele os ajudou na guerra das Malvinas!”, disse Fidel Castro, estranhando a prisão de Pinochet em Londres. Não lhe passou pela cabeça que os juízes britânicos pudessem atuar com alguma independência. Não pensam de outro modo os partidários do ex-general, que consideram sua prisão não como um assunto judicial mas como uma mera armação política.

Esse modo de entender a lei, somente através da lente do poder e da força, esteve no centro do drama político chileno. Setores da esquerda chilena de antanho não acreditavam em outra lei que o seu direito à revolução.

Do seu lado, os militares chilenos se ergueram contra Allende, dizendo-se obrigados a agir para proteger a democracia e a lei ameaçadas.

Mas logo, em nome da defesa do direito, os agentes do governo violaram, secretamente, as mais sagradas leis do mundo civilizado.

Muitos partidários do regime militar não souberam superar esta fundamental contradição de consciência. Temem que admitir os fatos desate um processo que acabaria por minar a obra do atual governo chileno. Como tampouco podem desconhecer os valores transgredidos, optam por negar ou confundir a verdade.

Esse temores se tornam mais fortes quando se toca na figura de Pinochet. Foi ele quem chegou a simbolizar a obra do governo militar e ao mesmo tempo quem manteve o mando supremo durante os anos de violação de direitos humanos.

É por tudo isso que, ao desenhar a transição política, o governo militar impôs elaboradas limitações políticas e legais a fim de não ter de prestar contas pelo passado. Estas restrições, talvez inevitáveis, têm gerado efeitos profundamente nocivos na alma do Chile. Dentro do país, temos aprendido a suportá-los, como quem acaba por tolerar altos graus de contaminação.

Contudo, a viagem de Pinochet trasladou nossos dilemas políticos e morais à Europa, que viveu seu próprio passado de horror, onde há tratados que (os) obrigam a cooperar no combate aos crimes mais graves e onde não se entende bem a lógica torcida da nossa esquizofrenia nacional. Sem dúvida, nos países europeus ainda há tensões entre o poder político e a lei, mas o direito tem um espaço de majestade e autonomia que no Chile ainda devemos conquistar.

A lição deste episódio não é a repetida arenga de que somos vítimas de alguma conspiração internacional. É na verdade que não apenas a economia do mundo se globalizou, mas também os direitos humanos. Se a justiça de outros países se sentiu chamada a atuar, é em parte porque dentro do nosso território não soubemos fazer o ajuste moral que devemos a nós mesmos e que de nós espera a opinião pública mundial.

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