Lei de Imprensa e Dano Moral

Lei de imprensa e dano moral

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6 de julho de 1998, 0h00

Até o advento da Constituição Federal de 1988 os doutrinadores pátrios e nossos pretórios ainda dissentiam quanto ao alcance e abrangência do dever de indenizar o dano moral.

Admitiam-no, é certo. Mas com muita parcimônia e restrição.

A tendência, até então, era de comedimento e exação.

Aliás, até a edição da Súmula n.º 37 do Superior Tribunal de Justiça, sequer se admitia a cumulação das indenizações por dano material e moral oriundos do mesmo fato.

Wilson Melo da Silva e os clássicos entendiam que o dano moral seria apenas a causação de dor ou sofrimento, ou seja, o pretium doloris (O dano moral e sua reparação, Forense, Rio, 3ª ed., 1983, p. 330), ao passo que, atualmente, evoluímos, felizmente, no sentido de que o direito de personalidade e o direito à imagem estão inseridos nos direitos subjetivos que podem ensejar dano moral, quando atingidos, até porque a imagem constitui o sinal sensível da personalidade e sua expressão maior: o seu vultus.

Daí a necessidade de se incluir no âmbito do moral, a dar ensancha à reparação, as ações ou omissões que ofendam ou causem dor, sofrimento, angústia, tristeza, depressão, isolamento, execração, infâmia, calúnia, difamação, injúria, reputação, autoridade, pudor, segurança, tranqüilidade, amor próprio, afeições, intimidade e outros, pois a previsão constitucional não é taxativa.

Contudo, a partir da vinda a lume da atual Carta Magna, assegurando no artigo 5º o direito de resposta e o direito à indenização por dano material, moral ou à imagem (inciso V) e a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, assegurando, também, o direito à indenização por dano material ou moral (inciso X), iniciou-se um processo perigoso de exacerbação na pretensão e no estabelecimento do quantum da indenização.

Há, neste momento, um sério risco de o Brasil atingir o nefando status a que chegaram os Estados Unidos da América, onde todo e qualquer produto contém em sua embalagem advertências (“warning”) de toda ordem, visando prevenir possíveis ações judiciais, que certamente virão.

Nesse país a exacerbação nas pretensões de quem pede – particulares ou consumidores – e a perda do senso de equilíbrio e de eqüidade que devem nortear e orientar (na fixação do valor do dano) aquele a quem se pede, contribuíram decisivamente para estabelecer verdadeira “indústria” das indenizações.

Essa advertência, com perigo de traslado para nosso Direito, já havia sido feita por Cláudio Antônio Soares Levada (O perigo da industrialização do dano (artigo), in Tribuna da Magistratura, periódico da Associação Paulista de Magistrados, abril-maio/97, p. 13).

Tal posicionamento no âmbito jurídico interferiu na sociedade americana como um todo e no comportamento das pessoas, conduzindo-as ao isolamento, a ponto de os pais se recusarem a receber em seus lares colegas de seus filhos, sem que estes portem termos que os isente de responsabilidade por qualquer acidente que eventualmente ocorra.

As escolas recusam-se a dar qualquer remédio ou lenitivo (ainda que uma aspirina) aos seus alunos, com receio de que lhes cause reação adversa.

Os garotos não mais se relacionam socialmente com as alunas por determinação dos pais, temendo acusações de assédio sexual, como ocorreu há pouco tempo, quando um menino de apenas onze anos foi acusado apenas por ter dado um beijo, à guisa de cumprimento e afeição, em sua colega de classe.

No ambiente do trabalho os homens evitam qualquer intimidade ou mínima aproximação com as mulheres.

Alinhe-se o fato da senhora que acionou o fabricante de um forno microondas, visto que havia dado banho em seu gato de estimação e nele colocado o animal para secar. Diante da conseqüência e da situação em que ficou o pobre animal (óbvia, aliás), processou o fabricante do equipamento sob a alegação de que no manual de instruções não havia qualquer advertência a respeito (cf. Sérgio Pinheiro Marçal, Reparação de danos morais – Teoria do valor do desestímulo, jornal do 3º RTD, São Paulo, n. 126, setembro/97, p. 518).

Ainda recentemente veio a lume a formalização de um acordo milionário entre o governo americano e a indústria do fumo, visando a indenização das vítimas do cigarro, de modo que, a partir de então, porque supostamente alertados dos malefícios do fumo, não possam mais os fumantes que contraírem doenças, ingressar em Juízo com pretensões indenitárias absurdas e despropositadas.

É a típica pretensão de prevenir o absurdo com o despropositado, de modo a impedir o insensato com o “non sense”.

Wladimir Valler mencionou em sua obra “indenização milionária a que corre o risco de ser condenado o jornal The Inquirer dos EUA, numa soma de US$ 34 milhões” ( Dano à pessoa e sua indenização, Ed. RT, S.Paulo, 2ª ed., 1994, p. 257-258).

Aliás, na área médica nenhum profissional intervém cirurgicamente em seus pacientes sem antes exigir que assinem um termo isentando-os de responsabilidade e firmem os primeiros vultosos contratos de seguro, que assegurem eventual ressarcimento por danos alegados pelo pacientes. Há, também, notícia de que as companhias seguradoras vêm se recusando a aceitar essa modalidade de seguro, face ao grande número de ações intentadas pelos pacientes contra os médicos.

Em artigo de doutrina de nossa lavra observamos, com supedâneo em Wanderby Lacerda Panasco (A responsabilidade civil, pena e ética dos médicos, Ed. Forense, Rio, 2ª ed., 1984), que nos Estados Unidos da América, no ano de 1970, um quarto dos médicos respondia a ações de reparação de dano (cf. Rui Stoco, Responsabilidade civil do cirurgião plástico na cirurgia estética e reparadora, in Ensaios Jurídicos – O direito em revista, publicação do Instituto Brasileiro de Atualização Jurídica, coordenação de Ricardo Bustamante, Rio de Janeiro, vol. 4, 1997, p. 255).

Em resumo, o Brasil corre o risco de o instituto da responsabilidade civil por dano moral, tal como ocorre aliunde, banalizar-se e desmoralizar-se, por força dos desvios de enfoque, do desregramento específico e do abandono aos princípios e preceitos de superdireito, estabelecidos na nossa Lei de Introdução ao Código Civil.

Passo certo nesse sentido poderá ser dado por nosso legislador se aprovado o Projeto de Lei n.º 3.232/92 do Senado Federal (Diário do Congresso Nacional de 27.10.92, p. 23.383), contendo disposições para a futura Lei de Imprensa que, lamentavelmente, abandonou o atual sistema tarifado da Lei n.º 5.250/67 para abraçar o perigoso sistema “aberto” para a fixação da indenização por dano moral.

Em breve resumo, referido Projeto de Lei não traz qualquer limitação ou margens mínima e máxima para o estabelecimento da indenização por dano moral.

Restringe-se apenas a fixar critérios-base para a imposição da pena de natureza criminal mas que, segundo nos parece, deve, também ser considerados para o encontro do quantum indenitário, no âmbito civil, ou seja:

a) a intensidade da ofensa;

b) a primariedade ou reincidência específica do réu e

c) a extensão do prejuízo à imagem do ofendido (art. 5º, § 2º).

Perceba-se, aliás, a redundância nesses critérios pois a “intensidade da ofensa” tem o mesmo sentido da expressão “extensão do prejuízo à imagem do ofendido”, posto que ambas se traduzem na preocupação de que ocorra efetiva potencialidade lesiva na conduta.

Em seguida, dispõe que a multa criminal, fixada em dinheiro, reverterá em favor da vítima e “será levada em consideração pelo juiz na indenização civil” (art. 5º, § 4º).

Portanto, o valor da multa criminal fixada será abatido do valor da indenização civil.

Contudo, o arbítrio concedido para o encontro ou estabelecimento desse quantum exsurge perigoso e até mesmo poderá expor a risco o próprio objetivo colimado pelo projeto, ou seja, “dispor sobre a liberdade de imprensa, de opinião e de informação” que, aliás, são direitos assegurados na Constituição da República, na medida em que ali se indicam como sujeitos ativos das ações incriminadas o editor-chefe ou responsável, o editor da área, o autor da ofensa, quando for possível sua identificação pela voz ou pela imagem, o diretor geral da programação, o autor do escrito e assinado e, solidariamente com todos os demais, a pessoa jurídica proprietária do veículo de informação.

O Projeto, tal como dimensionado, os conduzirá, sem dúvida, ao cerceamento do direito de informação e expressão e, consequentemente, ao nanismo, ao acovardamento e à pusilanimidade.

Ademais do que perder-se-á oportunidade rara de aprimorar a atual Lei de Imprensa, fruto de um período de obscurantismo, de império da exceção e da força e de um momento político que não nos dignifica, nem orgulha.

Exemplo claro do que poderá ocorrer, caso o projeto sub examine não receba aprimoramentos e correções, está noticiado na “Folha de São Paulo” de 26.10.97, p. 6, dando conta de decisão judicial com supedâneo na atual Lei de Imprensa em que, abandonando-se o limite máximo de indenização nela expressamente preconizado, condenou-se um pequeno jornal do Interior a pagar 2.500 salários mínimos ou cerca de US$ 250 mil (duzentos e cinqüenta mil dólares), a título de dano moral, valor esse que arruina a empresa e aniquila seu proprietário, obrigando o fechamento daquela e causando a insolvência deste.

Evidentemente que o instituto da responsabilidade civil não se presta a esse desiderato e, certamente, sairá desprestigiado e banalizado, caso não se obedeça a critérios de equilíbrio, que se impõem para a conversão da ofensa moral em compensação pecuniária e desestímulo.

Pertinente, sem dúvida, o “Manifesto à Nação”, publicado na primeira página do jornal referido, em sua edição de 5.10.97.

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