CONTRATO DE SAFRA

Invalidade do artigo 19, § 2º do Decreto n° 73.626/74

Autor

10 de janeiro de 1998, 23h00

Algumas considerações sobre o contrato de safra e a somatória dos períodos descontínuos trabalhados.

Duas questões jurídicas surgem, com certa freqüência, nas regiões rurais, especialmente (e não exclusivamente) onde explorada a lavoura canavieira.

A primeira: os trabalhadores são admitidos para a prestação de serviços compreendidos entre o plantio e a colheita, e, conseqüentemente, pleiteiam o reconhecimento da existência de contrato sem determinação de prazo e o pagamento de aviso prévio, diferenças de verbas rescisórias (resultantes do período de projeção do aviso) e indenização compensatória. Em contrapartida, sustentam os empregadores que referida modalidade de contratação, além de expressamente prevista na Lei n° 5.889/73 (§ único do art. 14) e no Decreto n° 73.626/74 (§ único do art. 19), deve ser considerada por prazo determinado (“contrato de safra”).

A segunda: muitos trabalhadores são contratados, por um mesmo empregador, ano após ano, nesse regime — isto é, admitidos na época do preparo do solo para o cultivo (ou durante o plantio propriamente dito) e desligados ao término da safra –, e pleiteiam judicialmente, não só a descaracterização dos contratos elaborados por prazo determinado (safra), mas, também, a somatória dos períodos trabalhados e o pagamento de aviso prévio, diferenças de verbas rescisórias (decorrentes da projeção do aviso) e indenização compensatória, ao passo que os empregadores costumam opor-se a tais pretensões, sustentando que, com ser regular a contratação (“safristas”), norma prevista no texto consolidado (art. 453) impede a somatória dos períodos descontínuos laborados.

Sem pretender destrinçar definitivamente as questões expostas, tenho para mim que se mostram pertinentes algumas considerações.

Lei e Regulamento.

Da Constituição Federal (art. 5º, inciso II) colhe-se uma norma de superior importância, consubstanciadora do princípio da legalidade, segundo a qual “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

JOSÉ AFONSO DA SILVA (“Curso de Direito Constitucional Positivo”, 9ª ed., Malheiros, 1994, p. 367) esclarece que o texto referido “não há de ser compreendido isoladamente, mas dentro do sistema constitucional vigente, mormente em função de regras de distribuição de competência entre os órgãos do poder, de onde decorre que o princípio da legalidade ali consubstanciado se funda na previsão de competência geral do Poder Legislativo para legislar sobre matérias genericamente indicadas, de sorte que a idéia matriz está em que só o Poder Legislativo pode criar regras que contenham, originariamente, novidade modificativa da ordem jurídico-formal, o que faz coincidir a competência da fonte legislativa com o conteúdo inovativo de suas estatuições, com a conseqüência de distingui-la da competência regulamentar”.

A competência para legislar sobre Direito do Trabalho pertence ao Congresso Nacional (CF, arts. 48 e 22, I), competindo privativamente ao Presidente da República (art. 84, IV) “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”.

A doutrina reconhece ser o regulamento “proposta de interpretação” da lei. “Vale dentro da lei; fora da lei, a que se reporta, ou das outras leis, não vale” (PONTES DE MIRANDA, “Comentários à Constituição de 1967”, RT, 2ª ed., 1970, Tomo III, p. 316).

Na pureza do sistema, somente a lei obriga. “Desta forma, o regulamento seria abusivo e, conseqüentemente, inválido se criasse direitos ou obrigações novas, não estabelecidas pela lei, se ampliasse, restringisse ou modificasse direitos ou obrigações, se ordenasse ou proibisse o que a lei não ordena nem proíbe, se facultasse ou proibisse diversamente do que a lei estabelece, se extinguisse ou anulasse direitos ou obrigações” (MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “Comentários à Constituição Brasileira de 1988”, Saraiva, SP, 1992, vol. 2, p. 154; VÍCTOR NUNES LEAL, “Problemas de Direito Público”, Forense, RJ, 1960, p. 86, um e outro inspirados nos ensinamentos de PIMENTA BUENO, “Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império”, Rio, 1857, par. 326, p. 237).

Insuscetível de discussão, pois, ter o regulamento o objetivo de facilitar a aplicação ou fiel execução da lei, devendo ser “secundum legis”, jamais “contra legem” ou “praeter legem” (JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, “Regulamento”, in “Enciclopédia Saraiva do Direito”, Saraiva, SP, 1977, vol. 64, pp. 353/355).

Ainda neste sentido, PINTO FERREIRA (“Comentários à Constituição Brasileira”, Saraiva, SP, 1992, vol. 3, pp. 548/554, com apoio no magistério de CELSO BASTOS).

A indicada doutrina encontra repercussão na jurisprudência, de onde se extrai o julgado abaixo colacionado, relatado pelo Desembargador DJALMA PINHEIRO FRANCO, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

“… o poder regulamentar do Executivo não pode gerar normas gerais criadoras de direito. Nada que obrigue pode existir no regulamento que já não esteja, explícita ou implicitamente, contido na lei” (Ap. Cível n. 121.622, j.08.02.63, in “Revista de Direito Administrativo” nº 84, pp. 97/100, abril-junho/1966).

Daí a conseqüência inexorável aplicável ao regulamento que se afasta da lei que procurou interpretar: “sempre que no regulamento se insere o que se afasta, para mais ou para menos, da lei, é nula, por ser contrária à lei, a regra jurídica que se tentou embutir no sistema jurídico” (PONTES DE MIRANDA, ob. cit., p. 316).

Se o intuito do Poder Público — como esclarece VICTOR NUNES LEAL (ob. cit., p. 75) — “é alterar alguma das disposições legais em vigor, está obrigado a servir-se da lei formal, não lhe bastando para isso o regulamento. Se, ao contrário, apenas pretende facilitar a execução da lei, especificá-la de modo mais inteligível, sem contudo dispensar exigências que ela faz ou exigir mais do que ela pede, então o regulamento é veículo apropriado e tecnicamente aconselhável. (…) A pretexto de facilitar a execução da lei, não pode, entretanto, o regulamento pretender fixar-lhe a interpretação de maneira conclusiva. Semelhante intuito não poderia jamais obrigar o poder judiciário, que é o intérprete autorizado da lei, no julgamento dos casos concretos que lhe são submetidos. O regulamento interpretativo valerá, pois, como subsídio doutrinário valioso e qualificado, mas não terá força obrigatória nem para os particulares, que poderão recorrer às vias judiciais, nem para os juízes, que poderão deixar de aplicá-lo por entenderem que contraria disposição legal”.

A análise da primeira questão exposta.

Assentados esses princípios doutrinários, passa-se, agora, a demonstrar a contradição existente entre a Lei do Trabalho Rural e o seu Regulamento.

Dispõe a Lei nº 5.889, de 08.06.73 (§ único do art. 14), que se considera contrato de safra “o que tenha sua duração dependente de variações estacionais da atividade agrária”.

O Decreto nº 73.626, de 12.02.94, estabeleceu que se considera “safreiro ou safrista o trabalhador que se obriga à prestação de serviços mediante contrato de safra” (art. 19) e, além de transcrever o supracitado dispositivo legal, definiu “variações estacionais das atividades agrárias” como “tarefas normalmente executadas no período compreendido entre o preparo do solo para o cultivo e a colheita”.

A definição presente no regulamento, todavia, não pode subsistir, por modificar substancialmente o dispositivo legal que pretensamente almejou regulamentar.

DE PLÁCIDO E SILVA (“Vocabulário Jurídico”, Ed. Forense, 2ª ed., 1990, vol. III) esclarece o que se deve entender por safra: “De origem ignorada, exprime o vocábulo, não somente na linguagem agrícola, o sentido de colheita, como, em outras atividades, o resultado ou a produção obtida em determinada oportunidade”.

AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA FERREIRA (“Novo Dicionário da Língua Portuguesa”, Ed. Nova Fronteira, 2ª ed., 1986) esclarece que safra significa “a produção agrícola de um ano” e colheita, “ato de colher (produtos agrícolas); apanha; o conjunto dos produtos agrícolas de determinado período”.

Pode-se, pois, concluir, com respaldo na autoridade de HOLANDA FERREIRA, que safreiro é “o operário que só trabalha na época de safra”.

Ora, se safra significa colheita, como exposto, não poderia o Regulamento, como fez, estabelecer que o contrato de safra previsto na Lei do Trabalho Rural se estendesse por período superior à colheita, alcançando o preparo do solo para o cultivo e o plantio propriamente dito.

Já se decidiu, com razão, que o contrato de safra caracteriza-se: a) “quando preenchidos os requisitos legais e provado que a sua duração fixou-se pelas variações estacionais da atividade agrária (Lei nº 5.889/73, art. 14, § único)” (TRT – 3ª Região, 5ª T., RO 14.619/94, Rel. Juiz Godinho Delgado – DJMG 21.01.95, p. 47); b) “pela sazonalidade, não se podendo entender que ele exista fora do período de colheita” (TRT/PR, RO 16.130/93, Rel. Juiz José Montenegro Antero, Ac. 2ª T.827/95).

Imperativo reconhecer, pois, incidentalmente, a invalidade da parte final do § único do art. 19 do Decreto nº 73.626/74 (“as tarefas normalmente executadas no período compreendido entre o preparo do solo para cultivo”), por contrariar o disposto no § único, do art. 14, da Lei nº 5.889/73.

Como conseqüência, não vislumbro a possibilidade de o trabalhador ser contratado como safrista para prestar serviços consistentes no preparo do solo para o cultivo, ou no plantio propriamente dito, serviços esses, obviamente, diversos dos destinados à colheita.

O contrato dos empregados assim admitidos deve ser considerado sem determinação de prazo, pois esses trabalhadores foram, na verdade, contratados para o labor durante todo o ciclo produtivo e extrativo do produto agrícola.

Daí exsurge o direito de os trabalhadores comentados receberem aviso prévio, diferenças de verbas rescisórias (resultantes do período de projeção do aviso) e indenização compensatória.

A segunda questão exposta.

Recusando aplicação à parte final do § único do art. 19 do Decreto nº 73.626/74, por contrariar o disposto no § único, do art. 14, da Lei nº 5.889/73, como exposto, e sendo descaracterizados os sucessivos “contratos de safra” celebrados, creio não ser possível afastar a possibilidade de serem somados os períodos descontínuos laborados para o mesmo empregador.

Não se alegue que, com fundamento no art. 453 consolidado, não poderia haver a somatória dos períodos trabalhados. Efetivamente não.

Isto porque esses trabalhadores sucessivamente contratados como “safristas” geralmente não recebem, ao término de cada período laborado, as indenizações legais. As verbas comumente pagas são compatíveis com o alcance do termo final pactuado para os contratos por prazo determinado, isto é, não recebem esses trabalhadores aviso prévio, diferenças de verbas rescisórias (resultantes do período de projeção do aviso) e indenização compensatória.

Concluindo:

1. Carece de validade jurídica a parte final do § único do art. 19 do Decreto nº 73.626/74 (“as tarefas normalmente executadas no período compreendido entre o preparo do solo para cultivo”), por contrariar o disposto no § único, do art. 14, da Lei nº 5.889/73.

2. Os contratos dos empregados admitidos como “safristas” para a prestação de serviços outros que não os de colheita (trabalho durante o preparo do solo para o cultivo, ou no plantio propriamente dito) devem ser considerados por prazo indeterminado.

3. Os períodos descontínuos laborados por empregados assim contratados podem ser somados (CLT, art. 453).

ÉDSON SILVA TRINDADE

Juiz do Trabalho Substituto

Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!