Responsabilidade na Internet

Quem responde por crimes na Internet

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25 de dezembro de 1998, 23h00

O Ministério Público do Estado da Bahia, sob o crivo do Estatuto da Criança e do Adolescente, ofereceu denúncia contra determinado provedor de Internet utilizado para a disseminação de pornografia infantil por um de seus usuários.

Oferecida e acatada a denúncia pelo magistrado, fora expedido mandado para busca e apreensão do equipamento utilizado para distribuição de material pedófilo, tão como para apreensão de todos os demais computadores do provedor em questão.

O que poderíamos fazer, na qualidade de advogados, para proteger os interesses do provedor objeto da questão? Até que ponto o provedor de serviço é responsável pelo ilícito praticado por seu cliente? Quais seriam os fundamentos?

Para resposta de tal argüição, faz-se necessária uma análise do que ocorrera em casos semelhantes no âmbito do direito comparado.

O ex-presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, promulgou em 1996 uma lei relacionada à difusão de informações através dos meios de comunicação em geral, mormente a Internet, de autoria do Senador do Estado de Nebraska, James Exon, a qual objetivava o controle da disseminação de tudo o que fosse considerado “reprovável”, como a pornografia infantil, informações terroristas, fórum de discussões objetivando conspiração etc..

Referido diploma legal fora fruto direto da mobilização da sociedade local, que passara a preocupar-se com tal questão após o atentado ao prédio público em Oklahoma, ocasião em que a mídia impressa e televisiva expôs ao público a existência de um grande volume de informações na Internet que ensinavam seus usuários desde a confeccionar bombas caseiras até conduzir campanhas terroristas.

Dada a intensa pressão pública, fora introduzida uma série de restrições na transmissão do citado material através da grande rede, o que culminou na responsabilização dos provedores de acesso e serviço pelo policiamento do material por eles armazenado e difundido. Era o chamado “Exon Bill”.

A punição para quem violasse tais princípios envolvia uma multa que poderia chegar até 250 mil dólares, e dois anos de prisão. À partir daí, travou-se uma batalha judicial entre provedores e governo. As discussões indagavam até que ponto seria constitucional a política imposta pelo governo, especificamente às restrições e penas impostas aos provedores.

Os provedores de Internet possuíam uma preocupação muito sólida e realista quanto a matéria, argumentando que o volume de dados presente na Grande Rede, como, por exemplo, dentro das listas de discussões, era tão grande, que o processo de verificação de sua decência era simplesmente impossível. Outro argumento bastante convincente seria o conflito existente entre dito diploma legal e o direito individual à liberdade/privacidade, de como adultos, os usuários escolherem o que ver e assistir, e que a proteção das crianças seria responsabilidade dos pais.

Ganhou corpo, então, uma grande campanha entre os provedores para demonstração da desnecessidade de leis que lhes imputassem determinadas responsabilidades, já que impraticáveis. A Compuserver, um dos maiores provedores mundiais à época, chegou a criar programas para controle de acesso às páginas eróticas, chamados de “filtros”, tornando certos sites, inacessíveis a crianças.

Após a pressão exercida pelos provedores e um conflito na Suprema Corte norte americana, envolvendo de um lado provedores e a União Americana para Defesa das Liberdades Civis, e do outro o governo e sua Exon Bill, três juizes federais entenderam declarar a inconstitucionalidade da citada lei. A lei seria inconstitucional por ferir um princípio fundamental no bojo da constituição norte-americana, a liberdade de expressão, estendida a todos os meios de expressão possíveis, inclusive através da Internet. Os juizes foram mais adiante e ainda proferiram, “(…) por ser o maior veículo de expressão já desenvolvido até agora, a Internet merece a maior proteção possível contra a intromissão governamental (…)”.

Decisão recente, proferida por esta mesma Corte, e que vale ser citada, considerou que o provedor de acesso à Internet, America OnLine (AOL), não pôde ser responsabilizada por material difamatório divulgado através de seus sistemas. A Corte não alterou o parecer do Tribunal Federal de Apelações, concluindo que um dispositivo do Ato de Decência nas Comunicações concede imunidade às companhias de serviços online, no tocante ao conteúdo divulgado por terceiros.

A ação contra a AOL fora movida pelo fotógrafo e cineasta Kenneth Zeran, citado como criador de uma coleção de camisetas de mau gosto, através de páginas residentes nos provedores da AOL, relacionadas ao atentado contra o Edifício Federal em Oklahoma.

Outro caso interessante, em que é explicitada a ausência de responsabilidade de provedor de acesso por material de terceiros, fora chamado de “Scientology”, envolvendo a Igreja “Scientology” e a empresa provedora de Internet Netcom Online Communications Services. Dessa vez, um ex-membro da referida Igreja, através da empresa provedora, publicou material registrado sem a respectiva autorização dos autores.

A Corte da Califórnia decidiu que a Netcom não poderia ser responsabilizada pela cópia do material ilegal em seus servidores, pois este fora copiado através de um procedimento automático, sobre o qual a mesma não exercia nenhum controle específico. Resta evidenciada a tendência Internacional em eximir os provedores de acesso/serviço da responsabilidade no que tange ao material de terceiros.

Vejamos o caso posto em questão.

Especificamente, no caso telado, não há dúvida de que houve crime, já que o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu Art. 241, preceitua que fotografar ou publicar cena de sexo explícito ou pornografia envolvendo criança ou adolescente é passível de reclusão. Assim, o usuário utilizou o provedor de Internet como um meio para consumar a conduta acima tipificada, da mesma forma que um homicida se utiliza de um revólver para consumar o delito.

Estamos diante de um “crime digital”, caracterizado pela utilização de computadores para ajuda em atividades ilegais, como a quebra da segurança de sistemas, a utilização da Internet ou redes bancárias de maneira ilícita, o crime de “hacking” etc., onde determinado agente, agraciado pelo anonimato e as técnicas de criptografia proporcionadas pela Internet, disseminou material pedófilo dentro de uma comunidade virtual, que não possuía qualquer relação com o citado provedor de Internet.

A maioria dos “crimes digitais”, como o acima citado, encontra-se positivado em nossa legislação. O furto de componentes de computador, não deixa de ser furto. A lavagem de dinheiro, não deixa de ser um crime. Fraude é fraude. Extorsão é extorsão. Sejam esses crimes cometidos através da Internet, ou de outros mecanismos tradicionais, são eles crimes previstos na lei.

O problema reside justamente no processamento de tais crimes, sua materialidade, provas, autoria etc., além do surgimento de crimes complexos, novos, específicos, onde o controle passa a ser necessário, como, por exemplo, a criação de vírus e o “hacking”, ou outras formas de vandalismo eletrônico.

No caso exposto, não poderíamos imputar tal conduta delituosa a empresa provedora de Internet. Primeiramente, um provedor de serviço de Internet nada mais é do que alguém que proporciona acesso à Internet, e esta última se caracteriza por ser uma rede mundial, não regulamentada, de sistemas de computadores, conectados por comunicações de fio de alta velocidade e que compartilham um protocolo comum que lhes permite trocar informações, sendo assim, de domínio público.

O ordenamento jurídico brasileiro possui como um de seus princípios fundamentais e norteadores, a legalidade. Esse princípio está expressamente definido na Constituição Federal, como direito e garantia fundamental, onde ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude da lei.

No Brasil inexiste lei imputando responsabilidade alguma aos provedores de serviço por atos de seus usuários, nem mesmo no sentido de fiscalizar as suas ações. Pelo contrário, a Constituição Federal proíbe tal fiscalização, consoante Art. 5º, inciso XII, que assim determina: “(…) é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal (…)”.

Ou seja, além de não haver lei acerca da responsabilidade dos provedores, existe disposição constitucional que lhes proíbe de examinar os dados que trafegam por via de seus servidores.

Pode-se perguntar: se a Internet recai em domínio público, seria válido presumir que seus dados podem ser lidos por qualquer usuário conectado a rede, contrariando o dispositivo constitucional?

A resposta a essa pergunta é complexa. Depende da natureza dos dados, se os mesmos têm uma destinação específica ou não. Mas sua relevância não é muito expressiva, pois existe um argumento que fulmina qualquer tentativa de atribuir responsabilidade aos provedores. A Internet não é um jornal impresso, com editorial, jornalistas responsáveis, …, etc.. Absolutamente, a Grande Rede é algo dinâmico e interativo, resultado da interligação de milhares de computadores distintos, que por sua vez, possuem usuários e informações distintas.

É humanamente impossível, para um provedor de serviço, saber tudo o que ocorre dentro de seu sistema, já que além de servir aos seus usuários, também serve de “linha” para Internet. Assim, um infindável número de informações, como o correio eletrônico, homepages, grupos de discussões, chats etc., são atualizadas instantaneamente através de procedimentos eletrônicos automáticos, sobre os quais o provedor não tem qualquer controle.

Como responsabilizar alguém por aquilo que não deu causa?

Daí o posicionamento dos Tribunais norte americanos em eximir a responsabilidade dos provedores de serviço, já que da mesma forma que em um homicídio não se processa a arma do crime, ou seu fabricante, em um “crime digital” não se processa o computador ou quem serve de meio para sua consumação.

Justamente devido à ausência de estudos nesse campo, o Ministério Público da Bahia, apreendendo os computadores do provedor, também fez com que saíssem do ar outras páginas alojadas naquelas máquinas, como a das “Obras Sociais da Irmã Dulce” e de empresas executoras de comércio eletrônico, acarretando em prejuízos a usuários que não possuíam qualquer relação com a citada prática delituosa.

Os provedores devem alertar e fixar, por via contratual, a responsabilidade de seus usuários acerca das condutas delituosas que venham a ferir o ordenamento jurídico brasileiro, tornando claro o seu posicionamento na hipótese de sua consumação.

Afinal, sendo impossível a tipificação de todas as condutas delituosas, já que o ser humano é dotado de capacidade criativa infinita, a tecnologia contribui para a formação de lacunas para o Direito, e será pela utilização dessa mesma tecnologia que iremos tornar a ciência jurídica mais eficaz e válida, trazendo respostas rápidas para uma sociedade cada vez mais dinâmica.

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