Nova Lei de Penas Alternativas

Lei nº 9714/98: Penas Alternativas

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20 de dezembro de 1998, 23h00

As novas penas alternativas, propósitos da lei e competência para aplicá-la

Sumário: 1 – As novas penas alternativas; 2 – Os propósitos da lei; 3 – Esboço do modelo penal alternativo brasileiro; 4 – Competência para aplicação da lei nova mais favorável.

1 – As novas penas alternativas

Contávamos no nosso Código Penal, antes do advento da lei 9714/98, com seis penas alternativas substitutivas (multa, prestação de serviços à comunidade, limitação de fim de semana, proibição do exercício de cargo ou função, proibição do exercício de profissão e suspensão da habilitação para dirigir veículo). Quatro novas sanções restritivas foram contempladas na lex nova (prestação pecuniária em favor da vítima, perda de bens e valores, proibição de freqüentar determinados lugares e prestação pecuniária inominada). Logo, agora, no total, temos dez sanções substitutivas (CP, art. 43 e ss.).

São sanções autônomas que, como o próprio nome diz, substituem a de prisão. Doravante, quando a pena aplicada não for superior a quatro anos, excluídos os crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, ou, qualquer que seja a pena, se o crime for culposo, tem cabimento tais sanções. Mas réu reincidente específico em crime doloso não faz jus à substituição. Tampouco conta com esse direito quando sua culpabilidade, antecedentes, conduta ou personalidade ou ainda os motivos e circunstâncias não o recomendarem.

2 – Propósitos da nova lei

Os inequívocos propósitos da nova lei, que guardam perfeita consonância com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e tantos outros textos internacionais, assim como com a Constituição brasileira, que no seu art. 5º, inc. XLVI, prevê a pena de “prestação social alternativa”, dentre outros, são: diminuir a superlotação dos presídios, mas sem perder de vista a eficácia preventiva geral e especial da pena, reduzir os custos do sistema penitenciário, favorecer a ressocialização do autor do fato pelas vias alternativas, evitando-se o pernicioso contato carcerário bem como a decorrente estigmatização, reduzir a reincidência e, sempre que possível, preservando os interesses da vítima.

3 – Esboço do modelo penal alternativo brasileiro

Com a lei das penas alternativas substitutivas amplia-se um pouco mais o novo modelo de Justiça Penal inaugurado em 1995 com a Lei dos Juizados Especiais Criminais. Desse modo, ao modelo penal clássico, fundado na crença da pena de prisão dissuasória, que continua servindo de base inspiradora da política criminal brasileira paleorrepressiva, expressada em tantas leis penais puramente simbólicas nesta década – leis dos crimes hediondos, do crime organizado, da falsificação de remédios etc. – contrapõe-se, alternativamente, o novo modelo de Justiça Criminal.

Se de um lado não deixa de ser verdadeiro que até mesmo o modelo penal clássico já contava com medidas alternativas despenalizadoras (livramento condicional, “sursis”, remição de pena, multa alternativa etc.), de outro, tampouco pode-se negar que no nosso país, agora de modo patente, “a latere” do direito clássico, está implantado (com aspiração de definitividade) um novo e alternativo modelo penal que ocupa, por enquanto, não o lugar o sistema clássico (que não morreu, obviamente), senão uma posição excepcionadora que, para além de conceber a prisão como extrema ratio e que só se justifica para fatos de especial gravidade (Regras de Tóquio, 14.4), se caracteriza pela introdução no nosso ordenamento jurídico de um dos programas mais avançados, ao menos no plano formal, de penas e medidas alternativas.

Doravante, para bem se compreender o sistema de Justiça Penal brasileiro deve-se partir da premissa de que dentro dele existem dois subsistemas: o clássico, que privilegia o encarceramento porque acredita na função dissuasória da prisão, e o alternativo, que procura sancionar o infrator conforme a gravidade da infração, com penas e medidas alternativas, isto é, sem retirá-lo do convívio familiar, profissional e social.

Esse (sub) sistema alternativo, tal como delineado até aqui, conta tanto com penas como com medidas alternativas à pena de prisão . Quando queremos nos referir a penas e medidas alternativas em conjunto falamos em alternativas penais.

As penas alternativas podem ser consensuais (é o que ocorre na transação penal, por exemplo, onde se exige consenso do autor do fato) ou não consensuais. As penas alternativas não consensuais, por seu turno, podem ser diretas ou substitutivas. As primeiras possuem tal designação porque são aplicadas diretamente pelo juiz, sem passar pela pena de prisão (é o caso da multa, por exemplo, no art. 135 do CP); nas segundas o juiz primeiro fixa a prisão para depois substituí-la (v. CP, art. 43 e ss.). As penas substitutivas, por sua vez, compreendem as penas restritivas de direitos (hoje são nove as modalidades) e a multa.


No que se refere às medidas alternativas, do mesmo modo, tanto existem as consensuais (suspensão condicional do processo, composição civil extintiva da punibilidade) como as não consensuais (“sursis”, perdão judicial etc.).

Do ponto de vista penal resultou agora bem demarcada, entre nós, a seguinte classificação: a) infrações de lesividade insignificante (devem ser regidas pelo princípio da insignificância, com a conseqüência de que ficam excluídas da incidência do Direito Penal); b) infrações de menor potencial ofensivo (crime com pena de prisão até um ano e todas as contravenções, que admitem as soluções consensuadas da lei dos juizados criminais); c) infrações de médio potencial ofensivo (as que admitem a suspensão condicional do processo – pena mínima não superior a um ano – ou penas substitutivas – crimes culposos e crimes dolosos com pena até quatro anos, excluídos os crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa); d) infrações de grande potencial ofensivo (crimes graves, mas não definidos como hediondos – homicídio simples, por exemplo); e) infrações hediondas (às quais aplica-se o regime especial da lei dos crimes hediondos).

O sistema penal alternativo incide prioritariamente nos grupos intermediários (“b” e “c”). Mas isso não significa que não haja medida alternativa inclusive nos grupos “d” e “e”: inclusive nas infrações hediondas cabe “sursis”, livramento condicional, remição da pena pelo trabalho etc.

O esboço do sistema penal alternativo brasileiro que acaba de ser projetado ficaria incompleto se não fizéssemos referência alguma, neste momento, ao seu aspecto processual. Da original cláusula do devido processo legal (“due process of law”) emergiram o “devido processo substancial” (proporcionalidade das leis) assim como o “devido processo procedimental” (“fair trial”). No âmbito punitivo, este último desdobra-se em devido processo penal (espaço de conflito, resolução contraditória do conflito) e devido processo consensual (espaço de consenso, resolução consensual do conflito).

O modelo penal alternativo inegavelmente conta com enorme potencialidade ressocializadora e reúne capacidade, ademais, tanto quanto avaliam os Documentos da ONU, de servir de instrumento para a preservação da segurança (prevenção do delito), sem necessidade de se recorrer à traumática pena de prisão, isto é, ao encarceramento desnecessário do infrator. Traz vantagens para o autor do fato punível (que não é inocuizado, segregado, separado da família, trabalho etc.), para a vítima (porque desse modo abre-se a perspectiva da reparação dos danos ou outros tipos de prestações) bem como para a sociedade (que alcança a meta da segurança com menores custos e da prevenção do delito com a alta redução da taxa de reincidência).

Espera-se, destarte, que a sociedade compreenda corretamente a extensão do novo diploma legal, dando sua imprescindível contribuição para o incremento da aplicação e execução das novas penas alternativas. Sobretudo, que os juízes venham a se sensibilizar, suavizando uma posição tendencialmente inflexível que se constatou em relação à Reforma de 1984 . Mesmo porque, para se alcançar as múltiplas e pretensiosas metas programadas é evidente que todos (órgãos governamentais e não-governamentais, juízes, promotores, comunidade etc.) devem envidar esforços para encontrar instrumentos ágeis e eficazes de controle e fiscalização das alternativas penais, sob pena de se desmoronar a tão almejada prevenção do delito (geral e especial) e, em conseqüência, as poucas e ainda vacilantes incursões da política criminal brasileira na linha humanitária de Beccaria, Filangieri, Bentham e tantos outros.

4 – Competência para aplicação da lei nova mais favorável

Para dissertar sobre esse tema é fundamental fazer as seguintes distinções: a) o processo está em andamento e ainda não houve sentença; b) o caso já foi sentenciado e acha-se agora em fase recursal; c) já existe trânsito em julgado final, com carta de guia expedida. Em cada uma dessas situações, qual seria o juízo competente para aplicar a “novatio legis in mellius”, sabendo-se que ela, por força de dispositivo constitucional inclusive, tem incidência imediata tanto nos processos em andamento (v. RT 508, p. 433 e ss.) como nos já definitivamente julgados (CP, art. 2, parágrafo único) .

A existência ou não sentença definitiva (leia-se: de carta de guia) é de relevância ímpar porque, uma vez expedida, a competência para aplicação da lei nova favorável é indiscutivelmente do juízo das execuções (v. LEP, art. 66, I, art. 13 da LICPP e Súmula 611 do STF). No específico caso da lei 9714/98 essa conclusão torna-se indiscutível porque não se trata de um diploma legal que tenha afetado qualquer aspecto da qualificação jurídica do fato, isto é, para sua aplicação não se faz necessário o reexame do “thema probandum” ou a rediscussão do “mérito” da causa (que exigiriam, tendo em vista a coisa julgada, revisão criminal). A lei citada versa sobre penas substitutivas, sendo assim, refere-se às conseqüências jurídicas da infração, não implicando qualquer redefinição do fato típico. Logo, a competência é do juízo de primeiro grau (LICPP, art. 13), mais precisamente da Vara das Execuções (reitere-se: porque já existe carta de guia).


Não havendo carta de guia expedida, o processo em andamento pode estar ainda em primeiro grau (não houve sentença) ou em grau recursal (podendo os autos do processo estar momentaneamente em primeira instância ou no tribunal). Em todas essas situações, no que concerne particularmente à lei 9714/98, e tal como veremos mais detalhadamente em seguida, a competência para aplicá-la, em princípio, é do juízo de primeiro grau.

Se os autos estão no juízo “a quo”, não há a menor dúvida de que o juiz irá examinar a possível e imediata incidência da lei, seja no momento da sentença ou mesmo que já tenha proferido decisão de mérito. Não constitui obstáculo para isso a genérica e muitas vezes equivocada afirmação de que o juiz que sentenciou perdeu sua jurisdição. Isso precisa ser bem compreendido: perde realmente sua jurisdição para o reexame do “mérito”, mas reconquista-a automaticamente na eventualidade do surgimento de lei nova mais favorável. O que o juiz não pode, depois da sentença, é rediscutir a “questão-de-fato” (esta não pode ser posta em causa ). Mas para aplicar a lei nova favorável relacionada com as conseqüências jurídicas da infração, reabre-se o processo (leia-se: a jurisdição). Fato superveniente à sentença reabre sua jurisdição no que lhe diz respeito. Outros exemplos: “abolitio criminis” após a sentença, ou mesmo a morte do réu. É evidente que em todas essas situações o juiz, mesmo depois da sentença, não pode furtar-se à jurisdição (deve dizer o direito em cada situação).

Estando o processo no Tribunal, desde que se vislumbre a possibilidade de incidência da lei nova (9714/98), impõe-se, em regra, a determinação da remessa dos autos para a instância inferior. E por quê?

Em primeiro lugar porque a decisão de primeiro grau implica respeito aos princípios do devido processo penal, contraditório e da ampla defesa (as partes poderão argumentar e juntar documentos para defender seus pontos de vista); não se suprime instância e assegura-se o direito ao recurso, isto é, ao duplo grau de jurisdição (o que é sempre fundamental na esfera criminal, inclusive para conferir maior legitimação democrática na atuação jurisdicional).

De outro lado, a aplicação da lei 9714/98 quase sempre irá exigir um criterioso juízo valorativo de cada situação. Não é o caso de se afirmar que essa seja uma regra geral sempre invariável. Há situações em que o Tribunal pode aplicar diretamente uma lei nova, sem necessidade de que os autos sejam baixados ao primeiro grau. Exemplo: lei nova que diminuísse de metade a pena no delito de furto. Ora, nessa hipótese, só haveria um requisito objetivo a ser atendido (constatação de que o delito é de furto). Logo, não se requereria nenhum juízo valorativo da situação, senão apenas cognitivo. Em razão da celeridade processual e informalidade, totalmente desnecessário o retorno dos autos para a primeira instância. O Tribunal aplicaria a lei nova e tollitur quaestio.

Diferente, no entanto, é o que ocorre, em geral, com a lei 9714/98, que veio ampliar a possibilidade de aplicação das penas substitutivas (art. 44, I), porém, condicionando-a a vários requisitos subjetivos (réu não reincidente em crime doloso e desde que a culpabilidade, antecedentes etc. sejam favoráveis – art. 44, incisos II e III) , que devem ser valorados em cada caso concreto para se saber se permitem ou não o prognóstico “de que a substituição seja suficiente” (em termos de reprovação e prevenção do delito). O que está em jogo, como se vê, não é uma mera operação aritmética ou um mero cálculo ou diminuição da pena (“quantum debeatur”), senão a impreteribilidade de um novo juízo valorativo sobre o “an debeatur” da pena alternativa.

Mesmo que o juiz tenha concedido o “sursis” ou o regime aberto – em algumas situações de reincidência, pode até ter sido fixado regime mais duro: semi-aberto ou fechado – , ainda assim, é preciso revalorar cada situação concreta, para se constatar ou não a “suficiência” da substituição como resposta estatal adequada. Desde que o seja, como sabemos, a pena alternativa tem prioridade sobre a fase executiva da pena de prisão.

Afastadas, destarte, aquelas hipóteses em que a lei expressamente eliminou a possibilidade de concessão da substituição (crime doloso com pena superior a quatro anos, crime doloso cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, réu reincidente específico -“prática do mesmo crime”), impõe-se o reexame de todos os casos já julgados que tenham pertinência com uma virtual incidência das penas alternativas. E como vimos, esse reexame preferencialmente deve ser feito pelo juízo de primeiro grau, cuja decisão, por sua própria natureza, assegura o contraditório, ampla defesa, não supressão de instância, direito a recurso (duplo grau) etc. Caso o Tribunal viesse a aplicar diretamente a lei nova mais benéfica, nada disso seria garantido (e ainda haveria o seríssimo risco de o réu ser prejudicado com a decisão e ser privado do duplo grau de jurisdição).

Autores

  • Brave

    é mestre em direito penal pela Faculdade de Direito da USP, professor doutor em direito penal pela Universidade Complutense de Madri (Espanha) e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG.

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