O artigo fala da prática, pelo administrador da sociedade, de atos que
16 de dezembro de 1998, 23h00
1. INTRODUÇÃO.
As sociedades comerciais, na situação de pessoas jurídicas que são, praticam seus atos através de representantes legais, seus diretores. Estes não contraem responsabilidade pessoal pelos atos praticados dentro da lei ou do estatuto, e não respondem pelo cumprimento das obrigações contraídas no exercício desta função, posto que, não são suas, mas da sociedade. Seus atos estão vinculados ao objeto social, determinado no estatuto social, não podendo praticá-los fora da finalidade da empresa, sob pena de serem considerados atos ultra vires societatis .
A teoria do ato ultra vires societatis ,ora estudada, é de origem anglo-saxônica, e de acordo com ela, a sociedade não responde pelos atos de seus representantes legais praticados com extravagância do objeto social. O ato ultra vires societatis é aquele praticado pelo gerente fora ou além dos limites postos pelo objeto social, figurando-se o abuso da razão social.
Aplicando essa teoria em termos absolutos, a sociedade não se responsabiliza por tais atos, mesmo que eles trouxerem vantagens à empresa; os atos estranhos ao objeto social são insanavelmente nulos, mesmo quando hajam sido deliberados por decisão unânime dos sócios. Qualquer negócio realizado pela companhia além de seus poderes é nulo e não pode ser ratificado de modo algum.
Em termos relativos, a sociedade comercial só não se responsabiliza pelos atos praticados fora do objeto social dos quais não tenha obtido vantagem ou, no caso da sociedade anônima, não tenha sido ratificado pela assembléia geral.
2. APLICAÇÃO DA TEORIA.
O objeto social limita a atividade do gerente, que não é responsável pelos atos normais que pratica na gestão, à frente da empresa . O fim da sociedade é realizar o objeto social, sendo de extrema importância a sua descrição precisa e completa, pois os atos que o violam podem ser perigosos para os acionistas e credores.
Essa concepção de declarar nulos os atos praticados fora do objeto social surgiu com a sociedade moderna, na qual a responsabilidade dos sócios é limitada e em que a personalidade jurídica resulta do devido registro. Além da visão atual de proteger os interesses confluentes, dos acionistas e terceiros, que podem restar prejudicados se tais atos foram tidos como válidos.
A finalidade da sociedade deve ser a consecução de seu objeto social, sua definição precisa e completa, previamente expressa no contrato ou estatuto, limita a área de discricionariedade dos administradores e a capacidade da sociedade; sendo assim, mais fácil caracterizar o abuso.
A proibição ao sócio gerente de realizar qualquer negócio além dos limites fixados no estatuto social visa principalmente à proteção dos credores e acionistas, pois estes, por estarem diretamente relacionados com a sociedade, são os eventualmente prejudicados pelos efeitos dos atos abusivos, que conflitam com a lei ou estatuto social.
A proteção aos acionistas é devida já que estes aplicam seu capital em determinada empresa da qual conhecem a finalidade, o objeto, sendo este de confiança e interesse do investidor, pois, parte-se da idéia de que a sociedade existe apenas para a realização do objeto social sendo perigosos os atos que o violam, devendo ser declarados nulos. Não devendo o acionista responder por um ato abusivo do gerente, fora dos poderes a ele delegado.
O excesso de poder do diretor não pode também prejudicar os credores, já que estes confiam nos negócios atuais da empresa, não podendo esta ingressar em negócio de natureza arriscada, do qual resultará perda do capital social.
3. EVOLUÇÃO DA TEORIA DOS ATOS ULTRA VIRES E SUA AMENIZAÇÃO.
Hodiernamente a doutrina ultra vires não vem sendo utilizada da forma em que foi concebida, ou seja, eivando de nulidade todo ato que ultrapassasse os objetivos da sociedade. Deve-se levar em conta a pessoa de boa-fé que negocia com a empresa, posto que em alguns momentos é difícil vislumbrar o desvirtuamento do objeto, aplicando-se em alguns casos a teoria da aparência, presumindo-se assim a boa-fé do terceiro, que se ilude frente a notória dificuldade de verificar se o representante está ou não imbuído de poderes para contrair obrigações em nome da empresa .
Analisando os principais artigos da Lei 6.040/76 que tratam da responsabilidade dos administradores, encontramos, no artigo 158, basicamente três situações concernentes à prática de atos dentro e fora dos poderes a eles delegados, e suas conseqüências civis.
A primeira, constante no caput, diz respeito aos atos praticados pelos diretores dentro de suas atribuições ou poderes, em obrigações regulares de gestão. Neste caso, o administrador não é pessoalmente responsável pelos atos que contrair em nome da sociedade, mesmo que haja prejuízo a esta ou a terceiro.
A segunda, expressa no inciso I, refere-se ao atos praticados dentro do âmbito regular de gestão, porém com culpa ou dolo por parte do administrador. Nesta hipótese, a sociedade responderá pelo prejuízo, contanto, terá ação regressiva contra o administrador, devendo provar o dolo ou a culpa nos atos deste.
A terceira hipótese, prevista no inciso II, é a que realmente nos interessa, posto que trata da prática do ato ultra vires societatis. As obrigações assumidas com violação da lei ou do estatuto acarretam a responsabilidade do administrador que agiu dessa forma, independente da prova do dolo ou culpa, pois, nesta situação, presume-se a culpa. É o princípio da inversão da prova, já que a culpa do diretor é presumida, e a ele incumbe provar que a violação do estatuto resultou de circunstância anômala, não provocada por sua culpa ou relativamente às quais não podia ter nenhuma influência, ou ainda, que os prejuízos decorrentes da prática de seus atos ocorreriam de qualquer forma.
Violando a lei ou o estatuto social o administrador estará agindo além dos poderes e atribuições que a lei lhe confere, ensejando responsabilidade pessoal pela prática de atos dessa natureza, respondendo perante a sociedade (art. 159, caput) e o terceiro prejudicado (art. 159, § 7º). Os diretores responsáveis devem responder em caráter pessoal, diretamente perante os prejudicados. Tendo estes legitimidade para acionar aqueles, diretamente, pelo prejuízo que causaram com a má utilização dos poderes a eles delegados pela sociedade que representam.
Porém, se o administrador, agindo dentro de suas atribuições, causar prejuízo a terceiros, a empresa é responsável por estes atos, já que aquele age em nome desta, mesmo que isso possa trazer ônus à sociedade. Não possuindo, nesse caso, o terceiro ação de reparação contra o administrador, não pode acioná-lo diretamente. Poderá apenas ajuizar ação contra a sociedade. A esta, por sua vez, caberá ação regressiva contra o administrador responsável pelo dano causado.
Deve-se destacar a existência do ato intra vires, mais um mecanismo para amenizar a doutrina do ato ultra vires societatis em sentido absoluto. Aquele conceitua-se como acessório para a consecução do objeto social, sendo válidos. Pois, mesmo não sendo expressamente mencionados no estatuto, certos poderes são considerados como necessários e complementares para a realização da finalidade da empresa.
Os poderes para praticar atos intra vires responsabilizam a sociedade da mesma forma que expressamente previsto para o empreendimento do objeto social, já que aqueles consideram-se implicitamente reconhecidos.
Por seu turno, não podemos invocar a teoria ultra vires societatis para eivar de nulidade atos como a venda de substâncias entorpecentes, postos que estes, por violarem a ordem pública, são nulos de pleno direito. Não ensejando, nestas hipóteses, a possibilidade de proteção às pessoas, como os acionistas e credores, que consentem em participarem de empresas que tenham finalidade ilícita.
Do exposto, podemos afirmar que, quando o sócio-gerente age com excesso de poder, violando o objeto social lícito para o qual foi constituída a empresa, acaba responsabilizando-se civilmente perante a sociedade ou terceiros, pelos prejuízos causados, de acordo com o que se verificar em alguns julgados:
“A prática de atos ultra vires não obriga a sociedade, por eles respondendo o sócio signatário dos títulos (…)” Ap.Cível 63955/81-TARJ.
“O gerente de uma sociedade por cotas responde, solidária e ilimitadamente para com a sociedade e para com terceiros, pelos atos praticados com violação do contrato social” RT 485/249 – TJSP.
“É a sociedade por ações obrigada pelos atos praticados por seus diretores. Estes estarão solidariamente obrigados com aquela, outrossim, se os prejuízos causados resultarem de prática sua, mas levada a efeito por culpa e com violação dos estatutos sociais” RDM 02/74.
“A responsabilidade civil dos administradores somente surge com a violação dos deveres impostos por lei ou pelos estatutos, pois a direção da sociedade é obrigada a executar as medidas deliberadas pela assembléia geral dentro de sua competência. Se o administrador obra em nome da sociedade, praticando ato regular de gestão, não será pessoalmente responsável pelos atos que praticar, ainda que o resultado não seja o esperado pela maioria controladora.” 29ª VCRJ – Proc 15.403/94.
“Em que pese à proibição estatutária, cumpre resguardar os interesses de quem transaciona de boa-fé (…). A jurisprudência vem se orientando no sentido de resguardar os terceiros de boa-fé.” RT 569/194.
“O ajuste celebrado entre terceiro de boa-fé e sócio que, embora com infração ao estatuto ou contrato social, se haja apresentado como habilitado a representar e contrair obrigações em nome da sociedade, deve ser honrado por esta, cabendo-lhe, ou a qualquer de seus sócios, demandar pessoalmente infrator pelos danos decorrentes do ato lesivo.” Agr. Reg./ 4ª Turma STJ.
Contudo, o princípio da boa-fé que norteia o direito comercial não deve ser levado às últimas conseqüências, como regra geral. Pois se assim fosse, o patrimônio social correria enormes riscos frente a má administradores. Deve-se proteger o terceiro de boa-fé se este for um homem comum, já que não é hábito desta categoria a verificação de poderes dos diretores no registro de comércio, assim, não deve ser prejudicado se não houver razões concretas para presumir que tinha conhecimento da irregularidade. No entanto, não deve restar protegido o terceiro que tenha conhecimento, ou devesse ter, do objeto social e dos limites da atuação dos gerentes em razão da profissionalidade de seus atos.
Entendem alguns doutrinadores que há situações em que mesmo agindo com excesso de poderes, os atos ultra vires dos administradores obrigam a sociedade, não podendo esta repudiá-los e atribuir a responsabilidade aos seus representantes. São os casos em que tal prática ocasione benefícios à empresa ou se ratificados pela assembléia geral dos acionistas .
Se os atos ultra vires gerarem lucro à sociedade, é natural que esta deva responsabilizar-se por ele, já que um dos princípios basilares do direito veda o enriquecimento sem causa.
No que tange à ratificação dos atos praticados com excesso de poder, entende-se que estes subsistirão tendo em vista o princípio geral que admite a ratificação do ato anulável .
A classificação dos atos ultra vires societatis como válidos funda-se na teoria da representação orgânica, na qual o diretor ou gerente não é um mero mandatário ou representante da pessoa jurídica que está a frente, mas, sim, um órgão desta. Sendo que a sociedade faz-se presente através de seus diretores, parte de seu organismo.
4. CONCLUSÃO.
Assim, verifica-se que atualmente a teoria do ato ultra vires societatis não é mais aplicada com a mesma severidade com que foi concebida, já que os atos praticados com excesso de poder, fora do objeto social, não são sempre nulos. Antes deve-se levar em conta uma série de fatores, quais sejam, o fato de gerar benefícios à sociedade; de serem ratificados pela assembléia geral; de serem intra vires, já que mesmo não estando expressos, vinculam-se aos atos legítimos. Além de caber responsabilização civil aos administradores perante terceiros de boa-fé que contrataram com quem aparentemente estava no âmbito de suas atribuições, e também frente aos acionistas que não devem sofrer prejuízos pelo fato do representante da sociedade que fazem parte ter agido com violação do estatuto social, ao qual aqueles se submeteram.
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