Medidas Provisórias

Medidas Provisórias

Autor

3 de dezembro de 1998, 16h56

MEDIDAS PROVISÓRIAS

Dinâmica Política e Inconstitucionalidade de suas Reedições

Marcelo de Carvalho Barros

Análise do dispositivo constitucional que faculta ao Poder Executivo a edição de Medidas Provisórias, enfatizando o caráter político de suas reedições, sua inconstitucionalidade e a conivência dos Poderes Legislativo e Judiciário.

1-INTRODUÇÃO:

O processo legislativo, levado a efeito, em última análise, pelo poder legislativo, é uma garantia fundamental da interdependência e harmonia dos poderes. A perspectiva do legislador , sua intenção, ao dispor sobre a edição de Medidas Provisórias, parece ter sido inteiramente desvirtuada pelo Poder Executivo.

Ocorre que a edição e reedição sucessiva de MP’s tornou-se uma regra no fazer político da prática do Executivo, configurando assim o desvirtuamento, com fulcro, basicamente, na falta de relevância e urgência, requisito básico imposto pela CF de 88 para que o Poder Executivo lançasse mão deste artifício extraordinário.

Dentre os fatores que podem ser abordados nesse trabalho, está o de que a prática legislativa, via de regra, coloca-se como demasiadamente morosa, passando pela Câmara dos Deputados e Senado Federal, sofrendo a influência de posições distintas de Partidos com visões singulares, o que não pode ser considerado como motivo para a edição e reedição de MP’s, muito pelo contrário significando a forma ideal existente em uma democracia que se quer representativa de sua população.

As forças políticas que travam batalhas ideológicas no Congresso são o reflexo dos anseios da própria população. Tentar ultrapassar essa etapa mediante o artifício das MP’s consiste em um frontal desrespeito à instituição do poder legislativo como instrumento de consecução da democracia formal.

Considerando que haveriam matérias de alta relevância e impostergável urgência, o legislador dispôs, no art. 62 da carta Magna, que poderiam ser editadas MP’s quando a combinação destes dois requisitos se fizesse um fato inquestionável.

Destarte, como matéria relevante e urgente, as MP’s, assim consideradas, seriam votadas no prazo de 30 dias, a contar de sua publicação, posto que o interesse nacional estaria em jogo.

Inobstante, o Poder Executivo já editou mais de 2.000 MP’s e, consequentemente, reedita em média duas MP’s diariamente, que na maioria dos casos não possuem caráter de relevância e urgência, fato que pode ser depreendido do pouco caso que faz o Congresso Nacional em aprová-las no prazo legal.

No presente trabalho, em um primeiro capítulo, estabeleceremos os limites legais dos atos legiferantes. Em um segundo, teceremos alguns comentários sobre a prática legislativa e seus desdobramentos no campo político, de forma a evidenciar que a reedição de MP’s consiste em uma prática política, antes de ser uma prática eivada de constitucionalidade, fazendo uma análise da Medida Provisória n.º 1.570, demonstrando a sua precariedade legal.

2- LIMITES LEGAIS

Uma primeira, e importante, consideração a ser feita é a de que, em sentido formal, a Medida Provisória não é Lei.

No Estado Democrático de Direito, a harmonia e a interdependência dos poderes é um pressuposto fundamental. Para sua consecução é necessário que haja, antes de interdependência, relativa autonomia dos três poderes assim considerados: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

“São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

Em tese, o Executivo é o responsável pela prática política visando o bem comum da população a qual deve sua governabilidade, sendo eleito pela mesma, sendo a população titular de sua soberania, posto que as eleições e procedimentos como o impeachement, dão-lhe autonomia necessária para tanto. Até por ser a própria população a única razão da existência do poder político.

O Poder Legislativo, também de caráter político, deve manter em seu interior as diferentes concepções existentes na sociedade, por intermédio de representantes eleitos pela população, cabendo-lhe a faculdade de legislar sobre todas as matérias que perfazem o ordenamento jurídico de uma Nação.

As Leis, em suma, estabelecem limites para que os cidadãos e os poderes possam se movimentar sem arbitrariedades, com garantias mínimas de uma estabilidade social, estabelecendo as “regras do jogo”.

Ao Poder Judiciário cabe decidir sobre situações fáticas que são demandadas a este Poder, cabendo-lhe aplicar da melhor forma, de acordo com Leis, princípios de direito e posicionamentos reiterados, o Direito, garantindo a estabilidade legal, necessária para o desenvolvimento da cidadania da população.

Quando tais poderes fortalecem-se enquanto instituições que, efetivamente, são, o Estado Democrático de Direito fortalece-se, atingindo algo próximo de sua forma ideal, inobstante que a legalidade muitas vezes não seja recoberta de legitimidade e de que críticas possam ser feitas, eventualmente, sobre a não conformidade de algumas Leis com a Justiça, entendida esta última como valor supra-legal.


Com o escopo de propiciar maior agilidade a prováveis questões fáticas recobertas de relevante interesse nacional e caráter de urgência em sua aprovação, o legislador constituinte achou por bem instituir a figura da Medida Provisória, de competência, , ressalve-se, quanto à sua propositura, da Presidência da República.

Destarte, em casos excepcionais, posto que flagrante exceção à regra legislativa, quando delineados os requisitos de relevante interesse nacional e urgência, o chefe do Executivo, poderia editar norma legal para posterior aprovação do Congresso Nacional.

Somente após a apreciação do Congresso Nacional, conforme preceitua o art. 62 da CF, no prazo de 30 dia a contar da publicação da MP, esta tornaria-se, evidentemente se aprovada, Lei.

“Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional, que, estando em recesso, será convocado extraordinariamente para se reunir no prazo de cinco dias.”

Ao Congresso Nacional não cabe somente sua homologação – o que poderia ensejar a interpretação de que sua apreciação ou não seria mera burocracia – mas, principalmente, cabe sua aprovação, o que configura possível sua rejeição.

Pelos requisitos de urgência e relevante interesse nacional que caracterizam tal prática legiferante, é de se considerar que a não apreciação de uma MP pelo Congresso Nacional ilidiria de vez a plausibilidade dos necessários requisitos aventados pelo Poder Executivo ou, via de conseqüência, caracterizariam definitivamente o desinteresse que o Poder Legislativo teria sobre as questões urgentes e relevantes para os interesses nacionais.

De acordo com a Constituição Federal de 88, a Medida Provisória somente transforma-se em Lei após aprovação pelo Congresso Nacional, devendo ver revogada sua eficácia se tal fato não ocorrer no prazo de 30 dias de sua publicação, cabendo ao Poder Legislativo dispor sobre seus efeitos durante sua transitória vigência.

“As medidas provisórias perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes.”

É incabível qualquer argumentação de que seria legal a reedição de MP’s pelo executivo, posto que diversificados os institutos instaurados pela CF de 88, sobre iniciativas de Lei, sempre indiretas, do Poder Executivo.

Há a iniciativa proveniente de delegação explícita do Congresso nacional que autoriza o Presidente da República a publicar Lei, denominada Delegada, conforme podemos depreender do art. 68 da CF.

A Constituição Federal garante ainda que, por iniciativa do Presidente da República, o poder legiferante tenha um prazo de 45 (quarenta e cinco) dias, para se manifestar sobre projetos de lei com pedido de urgência, findo o qual a matéria deve ser incluída na ordem do dia, sobrestando-se a deliberação quanto aos demais assuntos, para que se ultime a votação, conforme dispõe o art. 64 e parágrafos.

Em última análise, portanto, Lei é um ato que deve ou emanar ou ser passível da condescendência do Poder Legislativo, fato que não se tem observado em relação às edições e reedições sucessivas de MP’s pelo Poder Executivo.

A Medida Provisória, mutatis mutandis, equipara-se a um Projeto de Lei do Poder Executivo, que deve, necessariamente, ser apreciado pelo Congresso Nacional.

3- PRÁTICA LEGISLATIVA E POLÍTICA

O Poder Legislativo é uma instituição basicamente política. Em regra geral, as Leis que emanam desse Poder são oriundas de conflitos ideológicos entre Parlamentares que defendem posições e interesses distintos.

Logicamente, deve-se acreditar, sob pena de não darmos nenhuma credibilidade a este Poder, os interesses nacionais devem consistir na preocupação fundamental dos legisladores, com algumas divergências ideológicas que devem ser discutidas e votadas, reconhecendo-se a vontade da maioria.

Idealmente, apesar da falta de escrúpulo de muitos políticos, o pensamento geral da população vê-se representado na esfera legislativa, através dos parlamentares eleitos.

Pelo seu caráter colegiado, atendendo ao princípio democrático de que a figura do Congresso Nacional é mais representativa dos diversos interesses da sociedade do que a figura da presidência da república, sempre eleito por parte da população, o Congresso Nacional possui um poder maior do que o Executivo, podendo inclusive destituí-lo.

Até mesmo para propiciar condições de governabilidade política, o Governo necessita de considerável maioria para levar a efeito seu projeto político, sob pena de ver inviabilizada a executoriedade de suas ações.


Em face dessas considerações é de se concluir inadmissível que o Congresso Nacional se furte de suas responsabilidades enquanto poder constituído, com vistas a propiciar governabilidade ao Poder Executivo, sob pena de tornar ineficaz o avanço do Estado Democrático de Direito.

Ocorre que a edição e reedição sucessivas de MP’s tem tornado-se uma regra geral, em detrimento da exceção que deveria configurar, da prática política do Poder Executivo.

O Congresso nacional, por ser, invariavelmente, de base governista não tem buscado ara si a responsabilidade de ou conter ou apreciar as MP’s, criando uma situação juridicamente atípica de legislação arbitrária do Poder Executivo, sem o necessário crivo, de caráter constitucional, do Congresso Nacional.

O próprio Poder Judiciário, representado nessa esfera pelo Supremo Tribunal Federal, tem se omitido acerca da inconstitucionalidade da reedição sucessiva de MP’s, bem como, e principalmente, não tem se posicionado como deveria fazê-lo, acerca dos requisitos básicos de urgência e relevância.

Parece haver um pacto de mediocridade entre os poderes, o qual somente prejudica a consecução do Estado Democrático de Direito, tornando cada vez mais estéreis as instituições que deveriam garantir a segurança jurídica no País.

Os instrumentos necessários a uma tomada de atitude pelo Congresso nacional são constitucionalmente assegurados, cabendo-lhe somente vontade política para levá-los a efeito.

Antes que uma faculdade do Congresso Nacional, a necessidade de que este venha a agir ante esta situação é imperativa. A Constituição Federal preceitua, em seu art. 49, inciso XI, que este deve “zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa de outros poderes”.

Inobstante, as Mesas da Câmara e do Senado aceitam passivamente a enxurrada de MP’s e não as submetem à deliberação, contribuindo para a castração das prerrogativas do Poder Legislativo, em um posicionamento claramente político com vistas a possibilitar ao Executivo que este legisle diretamente, como dantes já foi presenciado na história do Brasil .

Destarte, o próprio Congresso Nacional é responsável pela deturpação do processo legislativo.

Seria de responsabilidade do Congresso Nacional que este viesse posicionar-se contrariamente a este procedimento concernente às edições e reedições de MP’s, posto que tal fere suas prerrogativas legiferantes, no momento mesmo em que ao Poder Executivo é outorgado o direito (mesmo que inconstitucional) fático de legislar .

É a competência legislativa do Congresso Nacional que se vê usurpada, não por sua contrariedade, mas por sua completa omissão.

A boa intenção do legislador constituinte foi evidenciada novamente quando da inclusão, na Carta Magna, de outro dispositivo que cercearia quaisquer arbitrariedades do Poder Executivo em termos legiferantes, qual seja a de que caberia ao Congresso nacional “sustar os atos normativos do poder executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”.

Inobstante, os Poderes Legislativo, bem como o Judiciário, tem se calado ante este flagrante ato de inconstitucionalidade, olvidando o necessário respeito que estes deveriam ter frente a Constituição Federal. Os interesses eminentementes políticos que perpassa, indubitavelmente tais poderes tem se sobreposto à própria consecução do Estado Democrático de Direito .

Mesmo depois de quase dez anos que a Constituição está em vigência, o Poder Legislativo não se dignou a regulamentar a edição de MP’s. Muito pelo contrário, consente que o Poder Executivo continue deturpando o processo legislativo, fazendo isso impunemente.

3.1-A Medida Provisória 1.507

Uma das MP’s mais questionadas pelos juristas tem sido a de número 1.507. Esta Medida dispõe sobre a restrição na concessão de medidas liminares em ações movidas por servidores públicos para obtenção de reajustes salariais.

Ocorre que um grupo de servidores ganhou judicialmente reajuste salarial de 28,86%, depois do poder Executivo ter concedido tal reajuste para os militares, em claro prevalecimento deste segmento, o que desencadeou uma enorme demanda de ações judiciais com o mesmo fulcro.

Prevendo o prejuízo que os cofres públicos poderiam ter, o Poder Executivo lançou mão do instrumento da Medida Provisória para sustar as liminares que seriam baseadas na concessão anterior, confiando sobretudo na morosidade judicial ante as medidas protelatórias dos processos que seriam tomadas pelos advogados da União.

Através dessa MP, a concessão de liminares, nesse caso específico, estaria condicionada à prestação de caução, garantia real ou fidejussória, o que, regra geral, inviabilizaria a concessão.


Para o processualista Vicente Chermont de Miranda, “A simples enumeração das conseqüências derivadas da aplicação dessa medida provisória torna evidente que ela se traduz, na realidade, em restrição abusiva à atividade do Judiciário, na tutela preventiva dos direitos e interesses postos sob sua guarda”.

A ilegalidade de tal MP é flagrante. Em verdade, através dela o Poder Executivo passou a Ter ingerência direta na atividade judicante do Poder Judiciário, resultando prejudicada a independência deste último em relação às suas decisões.

A conseqüência da Medida Provisória n.º 1.570, é que resulta violado o art. 2º da Constituição Federal, que dispõe “serem Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

Além do mais, o que parece ser mais deplorável, tal restrição ao Judiciário, constitui um desrespeito à garantia constitucional que qualquer Cidadão possui de livre acesso à Justiça contra qualquer “lesão ou ameaça de direito”, inscrita no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal.

“A lei não excluirá da apreciação do poder judiciário lesão ou ameaça a direito”

Através dessa MP o Executivo restringe a natureza preventiva, ou seja, tutelar, do Mandado de Segurança, sua principal característica. Com efeito, a liminar é concedida mediante a caracterização do fumus boni iuris e da imediaticidade de sua concessão sob pena de lesão irreparável do direito.

Ao restringir a concessão de liminar em Mandado de Segurança, o Poder Executivo acaba por legislar sobre matéria que não é de sua competência, qual seja, o direito individual do cidadão, como explicita o art. 68, parágrafo 2º, em seu inciso II.

Em Parecer da lavra do advogado Benedito Calheiros Bonfim, do Instituto dos Advogados Brasileiros, sobre a inconstitucionalidade da MP Restritiva de Liminares, posicionou-se considerando que “A exigência se constitui em aberração jurídica sem precedentes. Nem mesmo durante o período sombrio do regime militar, houve tamanha demonstração de arbítrio, salvo quanto às providências de restrição e punições políticas previstas nos atos institucionais”.

4-CONCLUSÃO

Na execução do presente trabalho restou indubitável a inconstitucionalidade da reedição das MP’s após sua não apreciação pelo Congresso Nacional. Restou também a certeza de que muitas MP’s são elaboradas casuisticamente, como a de número 1.507, citada e comentada brevemente neste trabalho.

Cabe-nos ainda, considerar que, em hipótese alguma cabe ao Poder Executivo acumular função privativa do Poder Legislativo, qual seja, a de legislar ordinariamente (no caso, com uma provisoriedade revitalizada a cada reedição de uma MP).

Esse impedimento, de cunho constitucional, é uma das garantias maiores da consecução do Estado Democrático de Direito, posto que elemento fundamental para manter a, sempre necessária, estabilidade jurídica.

É incompreensível que o processo político sobreponha-se à Constituição Federal, fato que, infelizmente, somente é possível em Países em que a população é, cotidianamente, usurpada de sua cidadania, não tendo esclarecimento suficiente sobre quão nefastos são atos desse tipo para o avanço democrático da Nação.

Outra conclusão, conseqüência lógica das primeiras, é que são ainda muito débeis as instituições no Brasil, notadamente os três poderes constituídos, restando uma crítica severa ao que, em tese, seria, ao menos, o com menor grau de ingerência política, fato que não se pode comprovar, posto que permanece tão calado quanto os demais ante a inconstitucionalidade do processo legislativo.

Durante a elaboração deste trabalho, nenhum argumento contrário ao aqui corroborado, demonstrou-se plausível, fato que levou a esta conclusão, ao que parece, irrefutável. O silêncio sobre essa questão é sintomático e se arrasta desde a promulgação da Constituição Federal de 88.

As vozes dissonantes deste ato do executivo são muitas e bastante expressivas do pensamento jurídico nacional. Inobstante, um simplório raciocínio político, nada profundo, leva-nos a crer que por muito tempo ainda as MP’s continuarão a ser editadas, por vezes inconstitucionalmente, e reeditadas, sempre de forma inconstitucional.

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