CONTROLE DIFUSO E STARE DECIS

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30 de novembro de 1998, 23h00

CONTROLE DIFUSO E STARE DECISIS.

JOÃO CARLOS SOUTO, Procurador da Fazenda Nacional, Professor de Direito Constitucional e autor do livro “A União Federal em Juízo” (Saraiva, 248 p, 1998)

O eminente Ministro Sidney Sanches, em palestra proferida na Universidade de Uberaba, teve a felicidade de observar que o Brasil possui um dos mais amplos (senão o maior) controles de constitucionalidade de leis do mundo. De fato: mesmo antes da ação declaratória de constitucionalidade já havia um considerável arsenal processual, todo ele ancorado no Estatuto Básico, com o escopo de defendê-lo contra as investidas não só do legislador ordinário bem como da atuação do Congresso Nacional na sua competência constituinte de segundo grau.

Desde a promulgação da primeira Constituição Republicana (que acolheu o controle difuso) que esse sistema tem sido continuamente ampliado. Descabe, aqui, historiá-lo, entretanto, convém que se assinale alguns dos seus passos mais relevantes a exemplo da ação direta interventiva, prevista na Constituição de 1934 e a ação direta de inconstitucionalidade (adin), inserta no nosso ordenamento através da EC 16/65, substancialmente modificada pela Lei Fundamental de 1988. O constituinte originário de 1988, inspirado na atual Constituição portuguesa, também se encarregou de dotar o país de um novo instrumento de controle, trata-se da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, a merecer alguns ajustes através de emenda constitucional. Por fim, a já referida ação declaratória de constitucionalidade (adc, EC 3/93), que ingressou no ordenamento jurídico nacional provocando reações extremas de aplausos e protestos.

Sobre ela foram publicados, neste espaço, dois artigos, com enfoques diferenciados, mas que em comum criticavam a concessão de liminar pelo STF na adc nº 4-6/DF. É certo que o constituinte reformador não previu medida cautelar nas adcs tal como ocorrera com as adins, através da atuação do constituinte originário — CF/88, art. 102, I, p. Entretanto, mesmo sem estar prevista, o Supremo entendeu cabível e na supra mencionada “declaratória” (4-6/DF, DJU, 13-02-98,), suspendeu liminarmente “todas as decisões judiciais deferitórias de pedidos de antecipação de tutela em desfavor da Fazenda Pública”…

Essa decisão reacendeu a polêmica em torno de suposta inconstitucionalidade da EC no 3/93. O juiz-federal Antônio Souza Prudente, em artigo intitulado “Declaratória de constitucionalidade contra a Constituição” (Direito & Justiça, 06.04.98), foi um dos que se insurgiram contra a amplitude da decisão proferida pelo STF e contra a declaratória de constitucionalidade em si mesma.

A seu respeito observou o citado integrante da magistratura federal: … “Nesse contexto, o efeito vinculante das decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário, violenta o sistema difuso de controle de constitucionalidade, que a doutrina de Marshall consagrou na consciência democrática do povo americano…”

Creio que as assertivas supra merecem algumas observações, que as trago na tentativa de dar continuidade ao debate, suscitando determinadas questões que parecem-me relevantes ao tema. Desse modo, asseverar que o “efeito vinculante”… “violenta o sistema difuso de controle de constitucionalidade, que a doutrina de Marshall consagrou na consciência democrática do povo americano”… parece não ser o melhor exemplo para combater a ação declaratória e seus possíveis efeitos nefastos, sintetizados na força vinculativa das decisões do Supremo Tribunal Federal.

Se o efeito vinculante é uma distorção ao controle difuso o ordenamento jurídico norte-americano jamais poderia ser invocado como paradigma. A razão é muito simples: as decisões emanadas da Suprema Corte também possuem efeito vinculativo e como tal não podem ser contrariadas pelas cortes inferiores. Refiro-me ao stare decisis.

Nos EUA o precedente jurisprudencial obrigatório é muito mais amplo e drástico que aquele previsto no § 2º, do art. 102, do Estatuto Básico de 1988. Enquanto que no Brasil o efeito vinculante só se aplica a situações especialíssimas, na América do Norte sua aplicabilidade é ampla em matéria constitucional. Assim, a decisão definitiva da maioria dos juízes que compõem a Corte Suprema vincula todo o Judiciário. Aqui a força vinculante é exceção, lá, é regra. Nem por isso cogitou a doutrina americana em asseverar o óbito do controle difuso, inaugurado oficialmente em 1803 pela doutrina imbatível e sedutora de Marshall. Registre-se que a idéia básica do controle de constitucionalidade já vinha sendo fermentada em algumas das treze colônias e recebeu impulso através do capítulo 78 de O Federalista, escrito por Hamilton.

Há um outro detalhe a ser considerado e que agrava o paradigma buscado no referido artigo: o sistema legal norte-americano é, fundamentalmente, baseado no common law, isto é, nos precedentes jurisprudencias e esses, por sua vez, encontram-se jungidos à bússola da “Suprema Corte” É bem verdade que o stare decisis ¾ para usar um termo atual ¾ não “engessa” a jurisprudência. Há, entre outros, o expediente do overrule que, em síntese, significa a possibilidade de superação de uma decisão anteriormente tomada por uma corte, válido inclusive para a Corte Suprema. Mas, para quem conhece um pouco do direito americano sabe que essa é uma tarefa difícil, ou seja, superar uma decisão “sumulada” pela seu mais importante tribunal. Talvez por isso ¾ em face desse hermetismo jurídico ¾ o Justice Benjamin Cardozo (um dos maiores juristas norte-americanos deste século e que integrou a Suprema Corte na década de 30) preconizasse que a inconstitucionalidade só deveria ser declarada após vencidas todas as possibilidades de manutenção do texto impugnado (U.S. vs Constantine).

Durante o curto espaço de tempo que me dediquei a perquirir o direito constitucional norte-americano, num curso promovido pela Universidade de Delaware, não me recordo de ter visto advogado ou membro da magistratura amaldiçoar o efeito vinculante e muito menos conectá-lo a uma suposta transgressão ao controle difuso. Constatei sim, a profunda revolta dos advogados locais unanimemente contrários ao júri cível, instituído por uma das emendas (a 7a) do Bill of Rights. Alguns, como o bem-sucedido John Small (de Delaware), mostraram-se surpresos ao ouvir deste autor que no Brasil em nenhuma hipótese há júri para causas cíveis.

Assinale-se, antes que seja tarde, que estas linhas não se destinam a preconizar pseudo vantagem do efeito vinculante. Esse tema, por sua complexidade, requer uma reflexão específica. Pretendi, ao alinhavar este artigo, tão-somente farolizar a sistema legal norte -americano por uma ângulo diferente daquele adotado pelo ilustre juiz federal.

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