O estado titanic

Concretizas a Constituição é dever de todos

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16 de abril de 1998, 0h00

O estado Titanic …

e o formalismo pigmeu

A Constituição de 1988 intentou vestir o Brasil com as cores da moda, mas, toda a acuidade constituinte concentrou-se na singela substituição do traje. Reincidiu na ingenuidade das declarações formais desacompanhadas de mecanismos operacionais e, obsecada pela antiga idéia de contenção dos poderes estatais, não abriu os espaços necessários para uma administração flexível da coisa pública capaz de concretizar os compromissos constitucionais anunciados e de libertar o país do museu positivista em que está trancafiado.

A história recente do mundo ocidental demonstra que a retórica dos princípios jurídicos não tem, por si só, intensidade vinculativa suficiente para modificar a sociedade. A auto-crítica socialista e o confiteor neo-liberal são provas inequívocas das contradições insuperáveis produzidas pelo convívio da rigidez normativa com a mutabilidade sócio-econômica ditada pela globalização fria.

A realização prática do Estado de direito democrático só pode ser esboçada a partir de margens elásticas de governabilidade que pressupõem não apenas um grau maior de adesão popular ou mais fidelidade na observância de dispositivos normativos, mas, sobretudo, viabilidade legal, espaço normativo.

A metamorfose preconizada no Texto Maior ainda não saiu da casca formal e não tem conseguido disfarçar sua timidez. Incapaz de contagiar o legislador e municiar o administrador, revela a impraticabilidade de posturas ditadas pela euforia pós-autoritária, por preconceituoso legalismo fiscal e, em geral, por alguma hipocrisia.

Essa tríplice deformação é históricamente explicável, na medida em que decorre da deslealdade que gradativamente se implantou nas relações povo-governo, apesar dos dogmas constitucionais, urdindo uma tessitura de antagonismo diariamente alimentada pela inadequada delimitação de espaços entre autoridade e liberdade. Por isso, o estrabismo de declarar, por exemplo, que a saúde é direito de todos e dever do Estado, sem atentar para o fato de que ou todos somos o Estado ou este é mera abstração sem deveres.

Se a Carta de 1988 justificadamente pretendeu sanar feridas e prevenir moléstias, receitando remédios eficazes, olvidou-se de alimentar o paciente, de colocá-lo em condições para enfrentar a doença e metabolizar com êxito a medicação.

Talvez por isso, todos os prestimosos cuidados constitucionais não impediram os episódios que conduziram ao impedimento presidencial e ao escândalo do orçamento, bem como não eliminaram a praxe dos cabides empregatícios eleitoreiros e a manipulação irresponsável de instituições financeiras. É a evidência de que o Texto Maior não ousou o necessário, não re-dimensionou o Estado e não trouxe os ingredientes jurídicos de que o país necessitava e necessita. Sem embargo da meritória abertura popular que patrocinou, descurou-se de gerar dispositivos operacionais aptos a minimizar o moroso gigante que, pelo seu próprio tamanho, consome cada vez mais, com insaciável voracidade.

Uma conscientização ditada mais pela experiência do que pelo discurso está demonstrando que um Estado de direito democrático exige mais que a observância mínima dos direitos fundamentais formais. Reclama uma nova engenharia estatal, com baldrames e argamassa diversos, de modo a colocar em dúvida as posturas tradicionais que longe de satisfazer as expectativas populares, distanciam cada vez mais povo e governo, transformando o desejável binômio de colaboração em confronto improdutivo, quando não decepcionante.

Com certeza a anelada reengenharia estatal tinha que começar, como começou, pela informação da opinião pública, pela investigação das anomalias administrativas e pela persecução dos seus responsáveis, para que o cidadão, livre da mesmice e da passividade, aos poucos assumisse sua posição de agente do seu próprio destino. Mas isso não é tudo.

Reformas e não apenas remendos constitucionais e algumas doses de ousadia administrativa poderão fazer muito bem ao Brasil do próximo século, gerando os mecanismos para uma alforria executiva sintonizada com a participação social, para uma administração mais expedita e menos formal, corajosa sem ser temerária, controlada sem ser obstruída.

Certo que a Administração Pública ganhou mais freios à ganância de alguns gestores que faziam sua a “res publica”, mas também é indesmentível que o encarceramento dos administradores públicos pela redução da margem de discricionariedade os torna, cada vez mais, escudeiros da legislação que não fazem, embora tenham que aplicar. A vinculatividade exacerbada produz, quase sempre, os mesmos males que intenta, no papel, prevenir, sem contar que superestima o papel de um Legislativo nem sempre à altura da sua missão.

Fiscalizar o gerenciamento da coisa pública não significa impor ao Ministério Público, aos Tribunais de Contas e ao Poder Judiciário o plantão permanente e exclusivo de um controle dificílimo que a sociedade civil também pode e deve executar de quatro em quatro anos, em todos os níveis. Dar concretude à Carta Magna e conferir densidade aos seus princípios é trabalho diuturno de todos, para que a estrutura sáurica sirva aos pigmeus, em vez de devorá-los. Nesse sentido a operacionalização das prestações estatais nas áreas da saúde, da educação, da habitação e do meio-ambiente, para dizer o mínimo, é providência urgente.

A previsão “Esse nem Deus afunda” feita pelos armadores do Titanic é muito parecida com a máxima “Deus é brasileiro”, que todos escutamos desde tenra idade.

Vale a pena lembrar que, temerosos diante do gigantismo de Gulliver, os pigmeus resolveram acorrentá-lo. Assim foi feito e os diminutos cidadãos perceberam que o gigante continuava gigante, embora aprisionado. Precisariam vigiá-lo, para que não se soltasse. E não fizeram nenhuma outra coisa pelo resto da vida, eternos pigmeus, prisioneiros do prisioneiro que fizeram.

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