Reforma Agrária

Acesso à terra e políticas governamentais

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6 de abril de 1998, 0h00

O direito de acesso à terra em razão da moradia é universal. Os governos em todos os níveis devem garantir jurídica e materialmente esse direito a todos os cidadãos independentemente de sua condição social e econômica. Para evitar novas tragédias e a do processo legal que se seguirá, e para aliviar a questão fundamental, que é a própria tragédia da vida dos sem-terra autênticos, que não são necessariamente aqueles que carregam as bandeiras do movimento que lhes toma o nome, o importante é caminhar na direção de resolver o problema na sua origem.

A Constituição declara que toda a propriedade possui uma função social conforme seu artigo 5 , inciso XXIII). A Carta Magna dispõe, ainda, sobre a política agrícola e fundiária e da reforma agrária no capítulo II título VII, contendo oito artigos e referindo-se à propriedade, à desapropriação, às áreas factíveis de serem desapropriadas, à tipologia da indenização decorrente, asseverando que a política agrícola deve ser compatibilizada com a reforma agrária.

A política fundiária no Brasil é marcada pela expansão exploração capitalista da terra a peso de violência dos processos expropriatórios e o genocídio, por exemplo. Segundo Otávio Mello Alvarenga, “nossa imaturidade agrarista salta aos olhos, com a desobediência quotidiana das normas que figuram nos Códigos, são repisadas pelas autoridades administrativas, mas deixam de ser respeitadas e cumpridas pela população”, e para prejudicar mais ainda as relações agrárias é posta em nossa legislação uma lei que dificulta a política agrária como resume o professor Fábio Alves do Santos ao dizer que “de maneira quase unânime as diversas correntes pró-reforma Agrária reconhecem a Lei 8.629 de 25 de fevereiro de 93 como pior que a legislação anterior, sobretudo o Estatuto da Terra, protegendo mais os interesses dos proprietários e dificultando sobremaneira a desapropriação por interesse social dos imóveis rurais”.

A reforma agrária apregoada pela Constituição funciona como uma espécie de sanção para o imóvel que não esteja cumprindo sua função social é a desapropriação por interesse social, ou seja, é um programa do governo, plano de atuação estatal, mediante intervenção do Estado na economia agrícola, não para destruir o modo de produção existente, mas apenas para promover a repartição da propriedade e da renda fundiária. Com o objetivo de promover o acesso à propriedade rural mediante a distribuição ou redistribuirão de terras.

O momento político gerado pelo que aconteceu em Eldorado dos Carajás deve ser aproveitado também para retomar uma boa idéia que continua mofando nas gavetas e corredores de Brasília, qual seja, a de passar o Imposto Territorial Rural (ITR) para a esfera dos Estados ou até mesmo dos municípios. Não há condições de administrá-lo a partir de Brasília, que não tem condições de definir regras – por exemplo, de módulos rurais – para todo o país, nem de conhecer o valor da terra e outros detalhes indispensáveis a uma política de utilizar o tributo como instrumento para desencorajar o uso improdutivo da terra e a concentração da propriedade. Nem tem sentido a tentativa de montar lá um enorme aparato burocrático para isso, pois ante a dimensão e a natureza do problema a descentralização se apresenta como solução mais adequada, podendo, de qualquer forma, ser sujeita a algumas regras de alcance nacional. É oportuno, ainda, criar varas jurídicas, bem como procedimentos processuais e cartoriais diferenciados para julgar ações e proceder aos registros imobiliários da regularização fundiária urbana.

Onde há conflitos de terra historicamente localizados – como no Pontal do Paranapanema, em São Paulo, e nessa região do Pará -, o governo precisa retomar a iniciativa e sair na frente com soluções rápidas de desapropriação e distribuição. Há décadas vem procrastinando uma solução e progressivamente foi acuado pelos sem-terra com suas ocupações e provocações, que, entretanto, na falta da iniciativa governamental, acabam tendo um que de justificável. Do jeito que está, vale a máxima do futebol: quem não faz acaba tomando gols.

A ofensiva do governo federal no setor agrário, anunciada há alguns meses com duas medidas de impacto – linha de crédito fundiário no BNDES e alterações nas regras de desapropriações – provocou um realinhamento nas forças de oposição política no campo. As medidas uniram setores que até agora vinham sustentando ações diferentes. Líderes do Movimento dos Sem-Terra (MST), da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), além de membros da Igreja, por meio da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), articulam uma reação conjunta contra as medidas.

Para os líderes sem-terra, o decreto que impede vistorias em áreas invadidas definiu de vez de que lado está o programa de reforma agrária governamental. “Eles querem fazer uma reforma agrária de balcão de negócios e assumiram o projeto da UDR”, segundo o líder nacional do MST.

Enfim, para bem enfrentar o problema dos sem-terra, o governo precisa sair dessa situação em que é visto sem nada para oferecer. Precisa aprimorar seus órgãos de desempenho da reforma agrária, pois, como afirma a pesquisadora Lígia Maria Osório Silva, “o Incra tem um desempenho patético”, diz ela, lembrando que até hoje o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão encarregado da política fundiária no País, não sabe a localização exata de terras que poderiam ser usadas para assentamentos. “O cadastro de terras dos EUA estava pronto em 1810”, compara.

A distribuição de terras deve ocorrer também onde houver condições de aliviar situações de forte desigualdade social, diagnosticadas como de solução prioritária. Segundo o professor Antônio José de Matos Neto a posse agrária deve ser um instrumento apto a multiplicação da riqueza, devendo estar adequadamente ordenada para contribuir com o desenvolvimento e paz social. Já aos conflitos artificialmente provocados o governo tem de resistir, pois do contrário perderá o controle do processo e nunca terá dinheiro nem aparato legal e policial para solucionar todos os casos que poderão surgir. Nessa resistência, precisa estar preparado – em particular a polícia – para não causar tragédias. Aliás, é bom lembrar que já houve muitas ocupações revertidas sem maiores problemas e, ainda recentemente, houve uma passeata de sem-terra em São Paulo, na qual a polícia se revelou competente para superar situações potencialmente conflituosas, como os problemas causados ao trânsito e reações dos manifestantes ou contra eles.

A participação efetiva do público alvo na execução dos programas de regularização fundiária é vital não só para adequá-las às expectativas da população, mas também para que os ocupantes destas terras exercitem a sua cidadania. Na definição dos instrumentos legais para a regularização fundiária deve-se adotar a negociação como forma de relação entre planejadores, executores e ocupantes evitando imposições e incentivando a discussão de princípios e práticas que favoreçam a melhoria da qualidade de vida e fortalecimento da cidadania.

Em conclusão podemos asseverar que as políticas governamentais de acesso à terra no Brasil não conseguem promover um pacto político de sustentação para um projeto de redistribuição de terras. Essa crônica incapacidade de articulação tem sido responsável por uma histórica criação de expectativas, seguidas de frustrações, com projetos de colonização que nascem e morrem no papel. Na raiz desse processo há um poderoso jogo de interesses bancado no século passado por fazendeiros que começaram a amealhar fortuna como posseiros de grandes áreas públicas, hoje sucedidos por grupos empresariais proprietários de fazendas altamente mecanizadas. Reforma Agrária não consistente apenas na entrega da terra a quem não tem e a quer, precisamos sim de uma reforma acoplada à política agrícola, integral, única que responda aos anseios do homem sem terra.

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