O Judiciário em Questão

O Judiciário em questão

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29 de julho de 1997, 0h00

A discussão sobre a reforma judiciária vem propiciando o surgimento de diversas propostas que visam a superar a crise de funcionalidade em que hoje se debate, como instituição, o Poder Judiciário. Todos concordam: a reforma é irreversível. Impõe-se o aperfeiçoamento do sistema de administração da Justiça, de forma a torná-lo processualmente célere, tecnicamente eficiente, socialmente eficaz e politicamente independente.

Para isso, contudo, é preciso identificar as causas reais do congestionamento do Poder Judiciário. E a principal delas reside, inquestionavelmente, na oposição arbitrária de resistência estatal injustificada a pretensões legítimas manifestadas por cidadãos de boa-fé que se vêem constrangidos, em face desse comportamento governamental, a ingressar em juízo, gerando, desse modo, a multiplicação de demandas contra o Poder Público.

O ordenamento jurídico brasileiro repele práticas incompatíveis com o postulado ético-jurídico da lealdade processual. Na realidade, o processo deve ser visto, em sua expressão instrumental, como um importante meio destinado a viabilizar o acesso à ordem jurídica justa, achando-se impregnado, por isso mesmo, de valores básicos que lhe ressaltam os fins eminentes a que se acha vinculado.

Assim, o processo não pode ser manipulado para viabilizar o abuso de direito, pois essa é uma idéia que se revela frontalmente contrária ao dever de probidade que se impõe à observância das partes. O litigante de má-fé – trate-se de parte pública ou de parte privada – deve ter a sua conduta sumariamente repelida pela atuação jurisdicional dos juízes e dos tribunais, que não podem tolerar o dolo e a fraude processuais como instrumentos deformadores da essência ética do processo.

É preciso reconhecer – e lamentar – que o Poder Público, muitas vezes, tem assumido, em alguns casos, a inaceitável posição de “improbus litigator”, incidindo, com essa conduta processual verdadeiramente desviante, em atitudes caracterizadoras de litigância temerária, intensificando, desse modo, o volume das demandas múltiplas que hoje afetam, gravemente, a regularidade e a celeridade na efetivação da prestação jurisdicional pelo próprio Estado.

Nesse ponto específico, ressalto que o remédio para esse mal – sem prejuízo da adoção de outras soluções processuais que venham a ser tomadas – já existe. Reside no efetivo cumprimento das disposições da Lei Complementar nº 73/93, aplicáveis à União Federal e às suas autarquias (incluindo INSS), que, na maior parte dos casos, são diretamente responsáveis pelo excesso de litigiosidade recursal que hoje virtualmente afeta e congestiona a pauta do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.

A LC nº 73/93, em seu art. 4º, XII, atribui ao Advogado-Geral da União o poder de editar súmula, com fundamento em jurisprudência iterativa dos tribunais. Uma vez editada, a súmula da Advocacia Geral da União – que tem caráter obrigatório – aplica-se a todos os órgãos jurídicos tanto da União Federal (art. 2º da LC nº 73/93) quanto das autarquias federais (art. 17 da LC nº 73/93), consoante prescreve o art. 43 da Lei Complementar nº 73/93, vinculando-os, assim no plano processual como na esfera administrativa, às diretrizes consubstanciadas nos enunciados sumulares formulados pelo Advogado-Geral da União e resultantes de prática jurisprudencial iterativa dos tribunais (STF e STJ, inclusive).

Veja-se, portanto, que o princípio da súmula vinculante para a administração pública já se acha devidamente instituído, no plano federal, pela LC 73/93 (arts. 4º, XII, e 43). É uma medida que, além de não comprometer a independência do magistrado, representa uma solução possível, imediatamente aplicável, destinada a permitir o descongestionamento do aparelho judiciário. Estou convencido de que a aplicação desse instrumento legal, além de contribuir para a celeridade da nossa atividade jurisdicional, permitirá, ainda, que pretensões legitimamente manifestadas pela arte privada possam ser atendidas, desde logo, pelo Poder Público, até mesmo na própria instância administrativa.

Cabe, aqui, uma consideração sobre a instituição da súmula vinculante no contexto da proposta de reforma do Poder Judiciário, a partir do que se contém no substitutivo oferecido pelo ilustre deputado Jairo Carneiro (PFL-BA). Tal substitutivo, ora em apreciação na Comissão Especial formada na Câmara dos Deputados, institui a punição do juiz que se insurgir contra a fórmula subordinante e impositiva constante do enunciado sumular, prescrevendo, para os casos de “rebeldia da consciência” do magistrado, a pena correspondente ao crime de responsabilidade.

Essa proposta revela-se inaceitável porque, além de impor ao juiz a interdição do seu direito de pensar – e de refletir de maneira crítica sobre as questões submetidas à sua apreciação jurisdicional – busca incriminá-lo e puni-lo pelo fato de haver agido com liberdade e independência.

Entendo que, no âmbito do Judiciário, a súmula – enquanto método de trabalho e instrumento veiculador de mera proposição jurídica, destituída de caráter prescritivo e normativo – deve ser valorizada processualmente, para que dela possam ser extraídas diversas conseqüências de ordem formal, jamais inibindo, porém, a livre atividade jurisdicional dos demais juízes e tribunais.

Proponho, portanto, que se busquem meios de valorização da súmula no plano processual, de modo a restringir o acesso à via recursal extraordinária, mediante adequado sistema de filtragem ou de seleção de recursos excepcionais, quando o acórdão se achar fundamentado na súmula. Ou, então, o reconhecimento em lei da possibilidade de os tribunais aplicarem, sempre em favor do “ex adverso”, pena de multa gravosa à parte recorrente que, sem fundamentação consistente, impugnar decisões proferidas com apoio na súmula, a efetivação de depósito preparatório equivalente ao valor da condenação ou a determinado percentual sobre o valor da causa, subordinando-se, dessa maneira, a cognoscibilidade recursal à realização desse ato processual. Ou, ainda, que se dê efetiva aplicação ao princípio da súmula administrativa vinculante, nos termos previstos pela Lei Complementar federal nº 73/93.

Na verdade, as medidas preconizadas destinam-se a tornar efetivo o direito público subjetivo que assiste a qualquer pessoa, consistente no reconhecimento de seu direito à prestação jurisdicional do Estado, sem indevidas dilações. Trata-se de direito em favor de todos os membros da coletividade, proclamado por importantes instrumentos internacionais de proteção aos direitos básicos da pessoa humana (Convenção Americana sobre Direitos Humanos, art. 8º, 1; Convenção Européia para a Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, art. 6º, 1, v.g.).

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