A prisão dos integrantes da banda Planet Hemp – ou planeta cânhamo – mexeu com a opinião pública brasileira e renovou a discussão acerca da Cannabis sativa, bem como a relativa ao direito de livre expressão do pensamento.Enquanto a primeira guarda ainda uma “aura” de tabu, a segunda já foi alvo de muitas lutas e protestos neste país.
A questão das drogas, de modo geral, ainda não foi suficientemente discutida nem pela sociedade, nem pelos juristas, nem pelo governantes deste país, recém saído de um período no qual se falar o que se pensava poderia, eventualmente, causar o desaparecimento ou a morte daquele que falou.
O uso de drogas é encarado ora de modo superficial – e, portanto, omisso -, ora de modo conservador – deixando transparecer um certo ranço autoritário. Essa questão só não é discutida abertamente devido ao preconceito e por ser, ainda, um tabu, uma vez que material fornecido por pesquisas sérias não falta. Já foram realizados numerosos estudos químicos, biológicos, sociais, culturais, antropológicos, legais e até industriais a respeitos dos efeitos, maléficos e benéficos no organismo humano, das aplicações medicinais, do uso crônico, do uso social recreativo, e, inclusive, das aplicações econômicas da Cannabis sativa. E é justamente a ausência da discussão dos resultados e constatações obtidos nesses estudos, e principalmente a discussão sobre o uso social da Cannabis, que gera nosso maior problema: a desinformação e, consequentemente, o preconceito.
A sociedade brasileira só estará preparada para educar, prevenir e, principalmente, reprimir um costume social, como é o uso recreativo da Cannabis, quando estiver suficientemente esclarecida e consciente sobre os diversos contextos e significados do seu uso.
Nesse sentido, o presente texto procura abordar a atitude dos integrantes da banda Planet Hemp a partir do prisma da cidadania. Para tanto, traçaremos uma breve análise sobre o desenvolvimento da cidadania no Brasil, caracterizando as canções da banda como uma forma de se exigir do Estado as necessárias providências para minorar os danos materiais, sociais e humanos que o tráfico ilícito e a repressão indiscriminada do uso da Cannabis têm causado à nação.
No Brasil, a conquista dos direitos e garantias que constituem a cidadania não foram fruto de uma batalha da população; as massas populares sempre estiveram alijadas dos processos decisórios que definiram os rumos da cidadania, tendo sido, salvo raras exceções, excluídas de qualquer influência política.
Essa tradição de conquista de direitos é categorizada por Bryan Turner como uma cidadania conquistada “de cima para baixo”, isto é, o Estado sempre mantendo a iniciativa de mudança e incorporando os cidadãos aos poucos, à medida em que expandia o leque de direitos.
Vem somar-se a essa característica histórica um outro aspecto também levantado por Turner. Essa cidadania foi implantada pelas elites não a partir do espaço público – isto é, através da conquista do Estado – mas dentro do espaço privado da sociedade. A atuação no espaço privado significa a afirmação dos direitos individuais sustentada por organizações voluntárias que constituíram uma barreira às ações do Estado.
Alguns exemplo dessas organizações voluntárias são a sociedade abolicionista e a sociedade republicana no século passado, que influíram na abolição da escravatura e na proclamação da República e, também, as organizações que lutaram pelos direitos humanos e pela redemocratização na época da ditadura, além de exemplos recentes como as organizações que lutam pelos direitos dos índios e dos homossexuais, e mais especificamente ao tema deste texto, as pessoas que defendem uso da Cannabis.
Vemos, portanto, que a sociedade tem, como tradição cultural de conquista de direitos, a contestação da lei quando a acha injusta, e o faz através de pequenos grupos.
Dessa forma, os integrantes da banda Planet Hemp mostram-se na vanguarda da reivindicação da sociedade no sentido de pautar sua vida de maneira que achar mais saudável e conveniente, não cabendo nem sendo necessária a ingerência do Estado em questões de foro estritamente íntimo, já que o consumo de maconha não prejudica nem um terceiro cidadão, nem a coletividade. E antes que elucubrações tacanhas e restritivas argumentem que o consumo incentiva o tráfico, atingindo assim a coletividade, responderíamos que o problema não deve ser encarado de forma tão simplista.
O tráfico existente não é só de Cannabis, mas também de uma infinidade dos mais diferentes produtos desde armas até aparelhos eletrônicos. E embora os dois primeiros causem danos materiais e humanos em níveis assustadores e o seguinte apenas evasão de divisas, aqueles só têm essa triste conseqüência aumentada devido à ilegalidade e à repressão que os envolvem.
A descriminação do uso já seria uma grande conquista frente ao tráfico e ao crime organizado que o promove, diminuindo seu poderio econômico, que seria eliminado totalmente a partir da regulamentação da produção, transporte e comercialização da Cannabis, como ocorreu com as bebidas alcoólicas nos EUA com o fim da Lei Seca.
Portanto, não parece que o meio acertado de defender e/ou justificar passagens das letras da banda como “Legaliza já, legaliza já/Porque uma erva natural não pode te prejudicar” e “Não compre, plante” seja dizer que o crime de apologia não está suficientemente categorizado ou que isto é apenas defesa da descriminação.
Essas são argumentações jurídicas que interpretam o ordenamento jurídico a partir do Código Penal, e não a partir da Constituição Federal ou dos princípios gerais do Direito.
As argumentações nesse sentido estão fadadas à constatações semelhantes àquela observada pelo nosso ilustre ministro da Justiça, Sr. Íris Resende, que afirmou em recente entrevista ao jornal O Globo (em 15 de novembro de 1997) não ter dúvidas que “é incentivo ao uso da maconha”.
A defesa dos direitos da banda Planet Hemp deve ser feita com base nos artigos 1º, inciso II (que elenca a cidadania como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito) e 5º, incisos IV (“É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”) e IX (“É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença”) da Constituição da República Federativa do Brasil.
Cabe, portanto, perguntar: apesar de ser uma conduta tipificada (e dogmaticamente mal tipificada, diga-se de passagem) e portanto ilegal, essa conduta é ilegítima? Segundo a avaliação traçada acima, é perfeitamente legítima a atitude de buscar, através do exercício da cidadania, uma legislação mais justa, mais adequada à sociedade moderna, e o direito de se viver da forma que achar melhor, sem anuência de terceiro para tanto.
No embate entre a legalidade e legitimidade, ficamos com a segunda, como aqueles que não admitiam a legitimidade da Constituição “promulgada” de 1967. Nesse sentido, ainda, já preconizava a legitimidade de tal atitude o brocardo latino que dizia leges bonae ex malis moribus procreantur, isto é, as boas leis nascem dos maus costumes.
Finalizando, outro dito latino conclui nossa avaliação:Summum ius summa iniuria (perfeita justiça, perfeita injustiça). Assim, privar os cidadãos brasileiros do direito constitucional da livre expressão do pensamento, de formular e veicular opiniões que não são de forma alguma antidemocráticas – como o racismo ou o nazismo – em nome de uma aplicação rígida da lei, sem a necessária flexibilização e sem atentar para as situações concretas, é, sem dúvida nenhuma, impedir que a sociedade caminhe para uma legislação mais eficaz, mais justa e mais atual, que garanta o máximo de liberdades de escolha para seus cidadãos.