Função cumprida

Estado de coisas inconstitucional não é essencial para Supremo reparar lesões

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28 de julho de 2023, 8h45

Especialistas afirmaram à revista eletrônica Consultor Jurídico que a declaração de estado de coisas inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, embora bem-vinda em muitos casos, é desnecessária para que a Corte evite ou repare violações de direitos via arguição de descumprimento de preceito fundamental. 

Reprodução/STF
STF analisará pedido para reconhecer estado de coisas inconstitucional envolvendo pessoas em situação de rua
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Na terça-feira (25/7), o ministro Alexandre de Moraes proibiu remoções forçadas de pessoas em situação de rua ao analisar uma ADPF que pede a declaração de estado de coisas inconstitucional quanto a quem vive nesse estado.

Na liminar, o ministro reconheceu existir no Brasil um potencial "estado de coisas inconstitucional", dando indicativo de que pode votar pela declaração ao analisar o mérito da ação, e determinou uma série de ações a serem tomadas pelos Executivo federal e dos estados e municípios. 

Pedidos semelhantes passaram a ser feitos com maior constância depois de 2015, quando o Supremo analisou a ADPF 347 e entendeu existir um estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário brasileiro. Com a declaração, uma série de ordens foram expedidas ao poder público, para que fossem sanadas omissões envolvendo as condições degradantes dos presos. 

O conceito surgiu na doutrina brasileira a partir de uma decisão de 1998 da Corte Constitucional da Colômbia, que reconheceu violações generalizadas envolvendo também pessoas presas. 

O constitucionalista Eduardo Ubaldo afirma que, embora considere boa a decisão de Alexandre, não é preciso que o Supremo declare estado de coisas inconstitucional quanto ao tratamento dado às pessoas em situação de rua para que o tribunal expeça uma série de ordens com o objetivo de resolver o problema. 

Isso porque, segundo explica, ADPFs já servem especificamente para evitar ou reparar lesões a preceitos fundamentais envolvendo ações ou omissões do poder público. Assim, diz, a declaração seria mais uma espécie de "reforço argumentativo" para escancarar violações massivas do que o único meio possível de expedir ordens ao poder público com fins de evitar lesões sistemáticas a direitos fundamentais. 

"A ADPF é um instrumento muito interessante previsto na Constituição, mas que só veio a ser regulamentada na Lei 9.882/1999. Lá, de maneira propositalmente genérica, fica definido que a ADPF tem por objetivo evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato comissivo ou omissivo do poder público", aponta. 

"O estado de coisas inconstitucional é uma construção interessante? É. Mas o STF já poderia decidir, como tem decidido, no sentido de determinar que um ato saia do mundo jurídico, mas também a edição da chamada sentença aditiva, que ocorre quando o Judiciário aponta o dedo para o poder público e ordena que se cumpra a Constituição, as normas, as leis, os decretos. Ou seja, a ADPF já permite, por construção legal e doutrinária, que o Supremo reconheça a falência institucional da preservação dos direitos por meio de sentenças aditivas. É a existência da ADPF que permite a declaração de estado de coisas inconstitucional, não a existência do estado de coisas inconstitucional que permite ordens ao poder público via ADPF", avalia.

A constitucionalista Vera Chemim também considera desnecessária a declaração de estado de coisas inconstitucional para que o Supremo Tribunal Federal dê ordens com o objetivo de sanar violações a direitos fundamentais. 

"A ADPF serve para evitar ou reparar lesão a preceito fundamental decorrente de ato do poder público, o que dispensaria a declaração de estado de coisas inconstitucional. A aplicação do conceito, dessa forma, seria dispensável", diz. 

Chemim, no entanto, vai além. Para ela, a decisão em ADPF não é o melhor meio para frear violações massivas. Segundo ela, o melhor caminho a ser adotado é o do "diálogo institucional com grupos sociais", para que haja uma construção de políticas públicas. 

"A ADPF é uma ação de caráter subsidiário, ou seja, para quando não há outros meios para reparar a afronta aos preceitos fundamentais. Nesses casos há outros meios, como o diálogo institucional. Todos os países têm problemas sociais, o que ratifica o fato de que se todas as mazelas fossem enquadradas como 'estado de coisas inconstitucional', todos os governos seriam omissos porque tais problemas são inerentes à estrutura e peculiaridades de cada país.", destaca. 

Efeito da declaração
Rafael Mafei, professor de Direito da USP e da ESPM, afirma que a decisão de Alexandre é boa na medida em que demonstra haver uma série de violações aos direitos de pessoas em situação de rua. No entanto, diz, é difícil saber qual seria o efeito prático de eventual reconhecimento do estado de coisas inconstitucional. 

"A principal questão é saber o que decorrerá dessa declaração. No caso dos presídios brasileiros, tal declaração não levou a uma sensível melhora aos direitos da população presa. Isso sugere que o tribunal tem dificuldade para dar eficácia a decisões de estados de coisas inconstitucionais, pois elas dependem de acompanhamento e fiscalização de medidas administrativas e legislativas que se protraem no tempo, em diferentes níveis da federação."

Para ele, no entanto, o Supremo pode adotar medidas semelhantes às presentes em decisões do Tribunal Superior Eleitoral para combater a desinformação durante as eleições de 2022. 

"O tribunal exigiu das empresas envolvidas um plano de ação, acompanhou sua execução, e impôs sanções em caso de falhas. No geral, o TSE parece ter sido bem sucedido em garantir respostas mais ágeis e uma melhora do ambiente informacional eleitoral — um desafio que era igualmente estrutural. A mesma lógica de enforcement deveria ser adotada para casos de estado de coisas inconstitucionais, embora eles, com regra, dependam de ações de outros entes políticos, e não apenas de empresas, o que é um grande complicador", diz. 

Gabriela Dourado, sócia do Advocacia Velloso, aponta que não destoaria da jurisprudência do Supremo a eventual declaração de estado de coisas inconstitucional. 

"Embora problemática, por se inserir no campo da discricionariedade, podendo violar o princípio da separação de poderes e resultar na ineficácia das medidas cogitadas pelo Judiciário, já foi adotada pelo STF em relação ao sistema carcerário nacional. Do mesmo modo, a ministra Cármen Lúcia, ao examinar o desmatamento ilegal da Floresta Amazônica, reconheceu o estado de coisas inconstitucional", explica. 

"Assim, a decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes, aludindo a um potencial estado de coisas inconstitucional, não desborda exatamente da jurisprudência desenvolvida pelo STF em relação ao tema, também em sede de arguição de descumprimento de preceito fundamental", conclui. 

Para Camilo Onoda Caldas, advogado constitucionalista e diretor do Instituto Luiz Gama, o Supremo não extrapola suas atribuições ao dar ordens aos demais poderes. 

"Na realidade, o que existe é um certo desconforto porque o STF tem sido, nas últimas décadas, instado recorrentemente a suprir as lacunas que os poderes Legislativo e Executivo têm deixado ao não exercer adequadamente as suas funções. Quanto maior a omissão por parte do Executivo, maior a necessidade de atuação do Judiciário", afirma. 

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