Interesse Público

Uma (necessária) defesa das agências reguladoras

Autores

  • Cristiana Fortini

    é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretora jurídica da Cemig e presidente do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo).

  • Rafael Maffini

    é advogado doutor em Direito professor de Direito Administrativo na UFRGS e sócio-diretor do RMMG Advogados.

23 de fevereiro de 2023, 8h00

No sistema jurídico brasileiro, as agências reguladoras são autarquias em regime especial criadas para a regulação de serviços públicos ou de outras atividades que o Estado compreende como dignos de maior atenção normativa e fiscalizatória. O referido regime jurídico especial visa justamente a assegurar a denominada "autonomia regulatória"[1], a qual, por seu turno tem por desiderato o afastamento de demasiadas interferências governamentais no desempenho da atuação do Estado na economia. Na regulação, em geral, e nas agências reguladoras, em especial, o que se almeja (ou o que se deve almejar) é, na máxima medida do possível, a neutralidade política[2].

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Justamente por tal razão, as agências reguladoras estão sofrendo duas importantes ameaças de indevida interferência político-governamental, que devem ser duramente criticadas e combatidas.

A primeira delas consiste na alteração proposta no PL 2.896, já aprovado na Câmara de Deputados e em tramitação do Senado, que reduz a quarentena de 36 meses para risíveis 30 dias para indicação ao Conselho Diretor ou à Diretoria Colegiada das Agências Reguladoras federais, de pessoas que tenham atuado em estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado à organização, estruturação e realização de campanha eleitoral.

A outra ameaça — que nos parece ser ainda mais grave — à natureza especial das agências reguladoras consiste na proposição contida na Emenda nº 54, apresentada pelo deputado federal Danilo Forte (União-CE), no Projeto de Lei de Conversão referente à Medida Provisória nº 1.154/2023, uma vez que, em termos gerais, desgarra-se da atual noção de regulação estatal.

Tal emenda parlamentar propõe a inclusão de regras na legislação aplicável às agências reguladoras federais (Aneel, ANP,  Anatel, Anvisa, ANS, ANA, Antaq, ANTT, Ancine, Anac E ANM), que, se aprovadas, afetam a essência das referidas entidades, criadas para blindar as decisões de caráter técnico de influências político-partidárias, uma vez passariam a estabelecer que a competência normativa das agências reguladoras, "mesmo nos setores regulados, será exercida por meio de Conselhos ligados aos Ministérios e secretarias que atuarão nas funções de regulação, deslegalização e edição de atos normativos infralegais, sendo compostos, na forma da lei, por representantes do Ministério, da Agência, dos setores regulados da atividade econômica, da academia e dos consumidores, aprovados pelo Congresso".

Com efeito, ainda que o princípio democrático recomende o emprego de ferramentas jurídicas que propiciem a ampliação da participação social, não se pode concordar com iniciativas que irão na prática fragilizar as agências reguladoras, cuja essencialidade e razão de existir, desde o momento em que foram introduzidas no Brasil, estão exatamente na autonomia decisória, funcional, administrativa e financeira, características reforçadas pelo artigo 3º, da Lei 13.848/19.

O ataque às agências reguladoras sinaliza ainda aos operadores econômicos brasileiros e estrangeiros que anseiam por estabilidade e previsibilidade e desincentiva a alocação de capital privado, contribuindo para o chamado risco Brasil.

Há de se considerar que a atuação das agências reguladoras não é ilimitada, já que é o próprio Congresso quem define suas competências, de sorte que o exercício de suas competências normativas se afigura, consoante já reiteradamente decidido pelo STF, subalterno ao princípio da legalidade administrativa (v.g., STF,  ADI 1.668; ADI 4.874; ADI 4.874).

De outra banda, a edição de atos normativos pelas agências reguladoras submete-se a uma série de requisitos procedimentais que, a um só tempo, (i) respeitam às premissas técnicas dos setores regulados (STF, ADI 5.501), (ii) asseguram a participação popular por meio de consultas públicas (art. 9º da Lei 13.848/19), audiências públicas (artigo 10 da Lei 13.848/19) ou outros meios de interação com a sociedade (artigo 11 da Lei 13.848/19) e (iii) determinam a necessidade de análise de impacto regulatório como condição para a edição de normas regulatórias pelas agências reguladoras federais (art. 6º da Lei 13.848/19).

O marco legal das agências reguladoras insere-se em contexto de transformação nas normas publicísticas, com destaque para Lei 13.655/18, que alterou disposições da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. A Lindb consagrou a importância da análise consequencial na tomada de decisões, à medida em que passou a exigir dos gestores públicos (além, é claro, daqueles que integram a esfera controladora e judicial) o estudo das opções disponíveis. O artigo 20 da Lei 13.655/18 reclama análise prévio dos possíveis efeitos das decisões. A esse respeito o Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA) se pronunciou construindo enunciados. Os pertinentes ao artigo 20 foram assim redigidos:

4. As "consequências práticas" às quais se refere o artigo 20 da Lindb devem considerar, entre outros fatores, interferências recíprocas em políticas públicas já existentes.
5. A avaliação das consequências práticas, jurídicas e administrativas é indispensável às decisões nas esferas administrativa, controladora e judicial, embora não possa ser utilizada como único fundamento da decisão ou opinião.

Logo, não se está a defender neste artigo e nem se poderia, que as agências reguladoras estão autorizadas a editar normas livres de qualquer moldura. Menos ainda que a história mesmo que recente das agências reguladoras brasileiras não registre desacertos. O que se argumenta é que o plano de fragilização danifica a estrutura sobre a qual elas repousam.

Por fim, a emenda parlamentar ora criticada insere, em processo legislativo de conversão de medida provisória, matérias que, de um lado, diz com conteúdo temático estranho ao objeto originário da MP e, de outro, versa sobre tema reservado à iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo, de modo a caracterizar flagrante inconstitucionalidade já outrora referido como "jabuti legislativo" (STF, ADI 5.127).

Sustenta-se aqui, pois, sejam tais propostas rechaçadas ainda no curso dos respectivos processos legislativos e, caso aprovadas pelo Congresso, tenham sua constitucionalidade devidamente escrutinada pelo Supremo Tribunal Federal, eis que trazem consigo novidades corrosivas ao modelo atual das agências reguladoras, o qual prestigia uma atuação estatal na economia depurada de interferências político-governamentais. E esse propósito há de ser preservado

 

[1] Sobre a autonomia regulatória que caracteriza as agências reguladoras no Brasil, vide: GUERRA, Sérgio. Agências reguladoras. Da organização administrativa piramidal à governança em rede. 2 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2021; JUSTEN FILHO, Marçal. O Direito das Agências Reguladoras Independentes. São Paulo: Dialética, 2002; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências Reguladoras Independentes, Belo Horizonte, Editora Fórum, 2009; BOCKMANN MOREIRA, Egon. Passado, Presente e Futuro da Regulação Econômica no Brasil. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, n. 44, out./dez. 2013.

[2] MOREIRA, Vital. Por uma regulação ao serviço da economia de mercado e do interesse público: a “declaração de condeixa”. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, n. 01, ´jan./mar. 2003.

Autores

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    é advogada, visiting scholar pela George Washington University, doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em mediação, conciliação e arbitragem pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático (IDDE), professora da graduação, mestrado e doutorado da UFMG, professora do mestrado da Faculdade Milton Campos, professora Visitante da Università di Pisa, presidente do IBDA *Instituto Brasileiro de Direito Administrativo) e diretora regional do Ibeji.

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    é mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professor adjunto de Direito Administrativo na UFRGS e sócio do escritório Rossi, Maffini, Milman & Grando Advogados.

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