Interesse Público

Lei nº 14.230/2021: o STF e a discussão sobre retroatividade

Autores

  • Cristiana Fortini

    é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretora jurídica da Cemig e presidente do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo).

  • Caio Mário Lana Cavalcanti

    é advogado especialista em Direito Administrativo (tendo recebido o Prêmio de Direito Administrativo Professor Júlio César dos Santos Esteves) em Direito Tributário e em Direito Processual pela PUC Minas em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes (Ucam) e em Advocacia Pública pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático (Idde) — conjuntamente com o Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Ius Gentium Conimbrigae) e com a Faculdade Arnaldo.

15 de setembro de 2022, 8h00

A Lei nº 14.230/21 provocou aplausos e críticas, estas materializadas especialmente nas iniciais da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7.042 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7.043. Assim, era questão de tempo a manifestação do Supremo Tribunal Federal acerca de alguns dos pontos controvertidos da Lei nº 14.230/21, e esse posicionamento parcial ocorreu felizmente de forma rápida. Importante registrar que o STF também tratou das alterações legais no Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) nº 843.989/PR.

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Com as decisões prolatadas nos processos acima indicados passos importantes foram dados em direção à estabilidade e à sedimentação da nova sistemática da Lei de Improbidade Administrativa. O presente artigo abordará a decisão do STF sobre o aspecto da retroatividade das novas regras.

Após o advento da Lei nº 14.230/21, muito foi discutido sobre a sua retroatividade, de modo a alcançar ou não as ações judiciais ajuizadas anteriormente à sua vigência e, portanto, sob a égide da redação anterior da Lei nº 8.429/92 [1]. Isso porque o artigo 1º, §4º, da Lei nº 8.429/92, por aquela lei incluído, assevera que "aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador", sendo que um desses princípios é o da retroatividade benigna, cuja fonte originária é o artigo 5º, XL, da Constituição da República [2].

É dizer, se ao sistema da improbidade administrativa são aplicáveis os princípios do Direito Administrativo Sancionador, e se o princípio e direito fundamental da retroatividade benigna está inserido nessa principiologia, por corolário se tem que as inovações favoráveis ao réu devem retroagir. Não se olvida que o dispositivo em destaque diz respeito, expressamente, somente às leis penais. Defende-se, em contrapartida, que as diretrizes principiológicas do Direito Penal também devem ser aplicadas no campo do Direito Administrativo Sancionador, na medida em que ambos são fruto da mesma nascente, qual seja, o jus puniendi estatal, o Direito Punitivo.

Há de se concordar, portanto, com a visão de Fernando Menegat, para quem, "se o Direito Administrativo Sancionador efetivamente configura microssistema aplicável à interpretação e aplicação da nova LIA, então o princípio da retroatividade da norma sancionatória mais benéfica deve incidir, e todos os dispositivos da lei posterior que forem tidos por mais benéficos (quer sejam reputados extravagantes ou não) devem atingir os casos ajuizados" [3].

Alinhando-se à mesma lógica jurídica, o STF, quando do Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) nº 843.989/PR (Tema nº 1.199), fixou a tese segundo a qual "a nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente".

Ou seja, aduziu o STF, em síntese, que, inexistindo trânsito em julgado, é retroativa a lei no que se refere à extinção da possibilidade de prática de ato ímprobo mediante culpa, devendo o magistrado averiguar a existência do elemento subjetivo doloso para fins de condenação.

Veja-se, em contrapartida, que, malgrado tenha adotado a retroatividade benigna para os casos ainda em trâmite, o STF, no mesmo julgado, excepcionou a eficácia retroativa aos casos transitados em julgado, tendo sedimentado que "a norma benéfica da Lei 14.230/2021 — revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa —, é irretroativa, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes", sendo que o inciso mencionado diz respeito à proteção constitucional ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada.

Entendemos, como já escrito nesta coluna antes, que o efeito retroativo também deveria alcançar a coisa julgada e os respectivos processos executivos, à maneira semelhante ao tratamento conferido ao instituto da abolitio criminis na seara penal [4]: se a condenação por ato ímprobo se deu por uma conduta que hoje não mais é considerada improbidade administrativa, corroídas estão as razões fundantes do exercício punitivo, mormente quando se está diante de penalidades muito severas, a exemplo da suspensão dos direitos políticos [5].

De toda sorte, não foi essa a compreensão do STF, que sedimentou no Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) nº 843.989/PR (Tema nº 1.199). A alegação de coisa julgada, em nosso sentir, não bastaria porque o ato ilícito não mais existe e não há razão para prosperarem os graves efeitos das sanções. Também há de se considerar que o próprio tribunal já a relativizou [6] .

Outro ponto de destaque diz respeito à irretroatividade das novas regras sobre prescrição. A Lei nº 14.230/21 inaugurou um novo modelo prescricional, com a majoração do prazo prescricional para oito anos, e não mais cinco anos (artigo 23, caput, da LIA); e a possibilidade de decretação da prescrição intercorrente, cujo prazo equivale a quatro anos a partir de algum dos marcos interruptivos legais (artigo 23, §8º, da LIA).

Essas mudanças legais também foram objeto de debates, sobretudo diante do impacto que a adoção retroativa da prescrição intercorrente representaria, causando a extinção com resolução do mérito (artigo 487, II, do CPC) de inúmeras ações de improbidade, que há mais de quatro anos estão em trâmite.

Finalmente, decidiu o STF no âmbito do Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) nº 843.989/PR (Tema nº 1.199) que "o novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é irretroativo, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei". Isto é, apenas a partir da publicação da Lei nº 14.230/21 começa a ser aplicável o novo regime prescricional e, por conseguinte, não pode ser aplicada a prescrição intercorrente em relação aos lapsos pretéritos percorridos, senão a partir do momento da publicação legislativa.

De toda sorte, não é esse o entendimento prevalecente: no bojo do Recurso Extraordinário (ARE) nº 843.989/PR (Tema nº 1.199), o novo regime prescricional é irretroativo, logo, também o prazo da prescrição intercorrente inaugurado pela Lei nº 14.230/21 começa a caminhar apenas a partir da publicação da dita lei.

 


[3] MENEGAT, Fernando. A retroatividade das normas de improbidade mais benéficas. Revista Consultor Jurídico, 18 de novembro de 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-nov-18/menegat-retroatividade-normas-improbidade-beneficas. Acesso em: 3/1/2022. No mesmo sentido: MAFFINI, Rafael; CÁS, Denise Gutiliêrs da. A Retroatividade da Lei nº14.230/2021. In: DAL POZZO, Augusto Neves; OLIVEIRA, José Roberto Pimenta (org.). Lei de Improbidade Administrativa Reformada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 801-822.

[6] STF, RE 363.889, Tribunal Pleno, relator ministro Dias Toffoli, DJe 16/12/2011.

Autores

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    é advogada, visiting scholar pela George Washington University, doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em mediação, conciliação e arbitragem pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático (IDDE), professora da graduação, mestrado e doutorado da UFMG, professora do mestrado da Faculdade Milton Campos, professora Visitante da Università di Pisa, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA) e diretora regional do Ibeji.

  • Brave

    é advogado, especialista em Direito Administrativo (tendo recebido o Prêmio de Direito Administrativo Professor Júlio César dos Santos Esteves), em Direito Tributário e em Direito Processual pela PUC Minas, em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes (Ucam), e em Advocacia Pública pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático (IDDE) — conjuntamente com o Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Ius Gentium Conimbrigae – IGC) e com a Faculdade Arnaldo.

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