Interesse Público

O coração da lei de licitações e contratos: qual o dispositivo Sol?

Autor

  • Cristiana Fortini

    é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretora jurídica da Cemig e presidente do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo).

17 de novembro de 2022, 8h47

O planejamento, a governança, a profissionalização dos agentes públicos e a preocupação com integridade são eixos estruturantes na nova lei de licitações e contratos[1] .

Spacca
Há uma serie de dispositivos que reverberam a predileção do legislador pelos tópicos acima. Contudo o artigo 11 assume posição central. O citado artigo indica os propósitos da licitação e o seu parágrafo único parece encerrar a essência da pretensão legislativa em torno da qual todos os dispositivos da nova lei giram: governança, gestão de riscos e controles internos, como ferramentas para propiciar um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações.

De uma forma ou de outra, a cada dispositivo que se examina na nova lei, voltamos ao artigo 11 e ao seu parágrafo único.

O artigo 169, por exemplo, que encabeça o capítulo dedicado ao controle retoma a relevância das práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e do controle preventivo, distribuindo o encargo de exercer o controle por três linhas de defesa sendo a primeira composta por servidores e empregados públicos, agentes de licitação e autoridades que atuam na estrutura de governança do órgão ou entidade. Governança e controle, ideias que se somam e se reafirmam.

Por outro lado, o perfil de agente público reclamado no caput do artigo 8º[2] como o único apto a deixar suas digitais ao menos nas fases preparatória e de disputa também resgata a intenção de se obter uma atmosfera mais confiável porque há muito se argumenta que o vínculo mais estreito com as entidades da Administração Pública é antidoto contra a corrupção.[3] A isso se soma o rigor do artigo 7º[4], esse voltado a todos que participarão de alguma das fases do metaprocesso de contratação pública, alcançando, pois, os personagens afetos ao momento da execução contratual. A exigência constante de seu inciso II simboliza o intuito do legislador de marginalizar agentes públicos inábeis a trabalhar, ao menos teoricamente, nos moldes preconizados. Como imaginar que a governança da contratação, a partir de fluxos, procedimentos, controles internos e gestão de riscos, ocorrerá sem pessoal apto a tanto?

Quando enveredamos pelos artigos que cuidam das sanções administrativas também percebemos a influência, ainda que mais sutil, do artigo 11 e seu parágrafo único. Almeja-se ao fim e ao cabo a demanda administrativa seja atendida após a escolha da proposta mais vantajosa ter espaço em ambiente austero, ausentes sobrepreço e superfaturamento. Logo, as condutas dos particulares que ameacem tais propósitos poderão ser sancionadas. O maior rigor da lei estendendo o impacto temporal máximo para as sanções de impedimento (3 anos) e inidoneidade (6 anos) e elevando o prazo mínimo para essa última (mínimo de 3 anos) resgata, pois, em alguma medida o artigo 11.[5]

No mesmo sentido as regras relativas aos programas de integridade, ora exigidos ora estimulados.  A lei os considera imperativos como condição de reabilitação para as entidades punidas com a reprimenda da inidoneidade por terem 1) apresentado declaração ou documentação falsa exigida para o certame ou prestar declaração falsa durante a licitação ou a execução do contrato ou 2) por terem praticado ato catalogado como corrupção à luz da lei anticorrupção. Nesse sentido o parágrafo único do art. 163. [6]

O legislador indica ainda uma outra situação em que vislumbra indispensável a implantação de programas de integridade. Trata-se de contratos de grande vulto.[7] O simples fato de envolver quantias mais expressivas impulsionou o legislador a prever o encargo, compreendendo-se que o maior rigor se justificaria pelos recursos públicos em jogo.

Para além dos citados casos, o legislador revela o prestígio dos programas de integridade quando os reconhece como critério de desempate entre propostas, nos moldes do artigo 60, inciso IV. [8] E finalmente quando promete considerar os tais programas para a calibragem da sanção a ser aplicada.[9]

Seja impondo, seja estimulando, o legislador reconhece que os programas de integridade também contribuem para o ambiente austero, o que nos reconduz novamente ao artigo 11.

Assim, sem embargo de vários outros exemplos, percebe-se que todos os caminhos retomam e reafirmam o dispositivo central a partir do qual irradiam as demais normas: longa vida ao artigo 11.


[1] FORTINI; Cristiana; AMORIM; Rafael Amorim de. Um novo olhar para a futura lei de licitações e contratos administrativos: a floresta além das árvores. Portal Licitações e Contratos. Disponível em: <www.licitacaoecontrato.com.br>  Acesso em: 07/11/2022

[2] Art. 8º A licitação será conduzida por agente de contratação, pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento do certame até a homologação.

[3] Não que seja opinião desta autora que acredita que comportamentos desonestos não são “exclusividade”  de determinado tipo de cargo ou emprego publico.

[4] Art. 7º Caberá à autoridade máxima do órgão ou da entidade, ou a quem as normas de organização administrativa indicarem, promover gestão por competências e designar agentes públicos para o desempenho das funções essenciais à execução desta Lei que preencham os seguintes requisitos: I – sejam, preferencialmente, servidor efetivo ou empregado público dos quadros permanentes da Administração Pública; II – tenham atribuições relacionadas a licitações e contratos ou possuam formação compatível ou qualificação atestada por certificação profissional emitida por escola de governo criada e mantida pelo poder público; e III – não sejam cônjuge ou companheiro de licitantes ou contratados habituais da Administração nem tenham com eles vínculo de parentesco, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, ou de natureza técnica, comercial, econômica, financeira, trabalhista e civil.

[5] Vide §§ 4º e 5º do art. 156.

[6] Art. 163 É admitida a reabilitação do licitante ou contratado perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, exigidos, cumulativamente:

Parágrafo único. A sanção pelas infrações previstas nos incisos VIII e XII do caput do art. 155 desta Lei exigirá, como condição de reabilitação do licitante ou contratado, a implantação ou aperfeiçoamento de programa de integridade pelo responsável.

[7] Art. 25 §4º. Nas contratações de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto, o edital deverá prever a obrigatoriedade de implantação de programa de integridade pelo licitante vencedor, no prazo de 6 (seis) meses, contado da celebração do contrato, conforme regulamento que disporá sobre as medidas a serem adotadas, a forma de comprovação e as penalidades pelo seu descumprimento.

[8] Art. 60. Em caso de empate entre duas ou mais propostas, serão utilizados os seguintes critérios de desempate, nesta ordem: IV – desenvolvimento pelo licitante de programa de integridade, conforme orientações dos órgãos de controle.

[9] Art. 156. Serão aplicadas ao responsável pelas infrações administrativas previstas nesta Lei as seguintes sanções:§1º. Na aplicação das sanções serão considerados: V – a implantação ou o aperfeiçoamento de programa de integridade, conforme normas e orientações dos órgãos de controle.

Autores

  • Brave

    é advogada, visiting scholar pela George Washington University, doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em mediação, conciliação e arbitragem pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático (IDDE), professora da graduação, mestrado e doutorado da UFMG, professora do mestrado da Faculdade Milton Campos, professora Visitante da Università di Pisa, presidente do IBDA *Instituto Brasileiro de Direito Administrativo) e diretora regional do Ibeji.

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