Interesse Público

Retroatividade benigna da Lei 14.230: o que dizer de decisões transitadas em julgado?

Autores

  • Cristiana Fortini

    é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretora jurídica da Cemig e presidente do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo).

  • Caio Mário Lana Cavalcanti

    é advogado especialista em Direito Administrativo (tendo recebido o Prêmio de Direito Administrativo Professor Júlio César dos Santos Esteves) em Direito Tributário e em Direito Processual pela PUC Minas em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes (Ucam) e em Advocacia Pública pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático (Idde) — conjuntamente com o Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Ius Gentium Conimbrigae) e com a Faculdade Arnaldo.

17 de fevereiro de 2022, 8h00

Conforme se extrai da exposição de motivos da Lei de Improbidade Administrativa [1], sua finalidade era combater "a nefasta cultura corrupta que malfere e malbarata os recursos públicos brasileiros" [2]. A vocação da lei nunca foi a penalização do inábil, mas do agente público corrupto, pelo que necessária a distinção entre ilegalidade e improbidade administrativa. Por isso, parte significativa do mundo jurídico reage ao expressivo volume de ações de improbidade, aduzindo que desacertos por vezes relatados, ainda que reais, não traduzem casos de improbidade, quando ausente a desonestidade do comportamento.

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Mas as críticas vão além e alcançam os entendimentos jurisprudenciais que se consolidaram a respeito da Lei de Improbidade, sobretudo no âmbito do STJ, como: 1) a prescindibilidade do periculum in mora in concreto para fins da indisponibilidade de bens em sede de cognição sumária [3]; 2) a possibilidade de configuração de dano in re ipsa — presumido, sem a comprovação da lesão efetiva — para a configuração de ato de improbidade que causa lesão ao erário [4]; 3) o reconhecimento da falta de notificação para apresentação da manifestação por escrito (defesa prévia) como sendo uma nulidade somente relativa [5]; e 4) a suficiência do dolo meramente genérico para a configuração do ímprobo violador de princípios administrativos [6].

O cenário explica a reação que se materializa com as alterações recentemente promovidas na Lei de Improbidade, cujo ponto de partida é a delimitação mais precisa do que configura o ato ímprobo, o que por si só justifica a discussão sobre a retroatividade da lei, dado que mais benéfica sobretudo por afastar a modalidade culposa e tachar as situações que podem em tese improbidade por violação a princípios.

O Direito Penal e Direito Administrativo Sancionador se correlacionam por exteriorizarem ambos a manifestação penalizadora do Estado e por integrarem o mesmo gênero, qual seja, o Direito Punitivo [7].

E, justamente para garantir que o poder de punir e o controle estatais se efetivem de maneira comedida, razoável e proporcional, sem que haja o sepultamento dos direitos fundamentais, o Estado democrático de Direito garante um arcabouço normativo de proteção individual que, por sua vez, alcança tanto o Direito Penal como o Direito Administrativo Sancionador. Não por outra razão, Francisco Zardo afirma que "os princípios e regras ditos de direito penal e que incidem sobre o direito administrativo sancionador são, a rigor, normas comuns ao direito punitivo do Estado, que se manifesta sob essas duas formas" [8].

As garantias e direitos que permeiam o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador têm como raiz comum a Constituição de 1988 e inúmeros são os princípios aplicáveis a ambos como a legalidade [9], a proporcionalidade, a individualização da pena, o contraditório, a ampla defesa, o devido processo legal, a culpabilidade, a razoabilidade, a vedação à analogia in malam partem, a presunção de inocência e de não culpabilidade e, no que mais importa para o presente trabalho, a retroatividade benigna ou benéfica.

Expressamente, a Lei nº 8.429/92, em seu artigo 1º, §4º, incluído pela Lei nº 14.230/21, assevera que "aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador". Ainda que silente, esse haveria de ser o entendimento, pelas razões já apontadas. Nessa toada, por exemplo, já decidiu o TJ-MG, antes da edição da Lei nº 14.230/21, que "as sanções previstas na LIA inserem-se no Direito Administrativo Sancionador, e, dentro dessa perspectiva, aplicou determinados princípios gerais do Direito Penal e Processual Penal" [10].

A retroatividade benéfica é direito fundamental insculpido no artigo 5º, XL. Em que pese a literalidade constitucional, mediante uma interpretação constitucionalmente adequada, passou-se a compreender que a supracitada retroatividade não é exclusiva do Direito Penal, mas também do Direito Administrativo Sancionador [11].

Segundo o STJ, "o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, insculpido no artigo 5º, XL, da Constituição da República, alcançam as leis que disciplinam o direito administrativo sancionador" [12] e, no mesmo sentido, o TJ-MG, para quem "no âmbito do Direito Administrativo Sancionador, se a norma posterior minimiza uma sanção aplicada a uma conduta infracional já prevista, tal norma deve retroagir para beneficiar o infrator" [13] e que "o grau de proximidade existente entre o direito administrativo sancionador e o direito penal autoriza seja estendida àquele todas as garantias inerentes a este último, dentre as quais a retroatividade da lei mais benigna prevista no artigo 5º, XL, da Constituição da República" [14].

Embora a alteração legal seja recente, os tribunais já foram acionados no sentido de aplicar os novos mandamentos da Lei nº 14.230/21 às ações de improbidade ajuizadas anteriormente à sua promulgação, com fulcro na retroatividade da lei posterior favorável. Após pesquisa jurisprudencial nos sítios oficiais de vários tribunais brasileiros, constatou-se que a jurisprudência, embora ainda incipiente, caminha no sentido do defendido nesta oportunidade, ao menos à época da elaboração do presente trabalho.

O TJ-PB acordou que "tratando-se de diploma legal mais favorável ao acusado, de rigor a aplicação da Lei nº 14.230/2021, porquanto o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, insculpido no artigo 5º, XL, da Constituição da República, alcança as leis que disciplinam o direito administrativo sancionador" [15]. No mesmo sentido, o TJ-GO já afirmou que são aplicáveis "às sanções pelos atos de improbidade administrativa as garantias inerentes ao 'direito administrativo sancionador', dentre as quais se destaca a da 'retroatividade mais benéfica' (inteligência do artigo 2º, §4º da Lei nº 14.230/21, artigo 5º, XL, CF/88 e jurisprudência concernente)" [16].

Por sua vez, o TJ-SP proveu apelação para julgar improcedentes os pedidos em ação de improbidade administrativa, justamente "por força da superveniência da Lei nº 14.230/2021, aplicada ao caso concreto, cuja retroatividade é prevista em seu artigo 1º, §4º" [17], sendo que este último artigo se refere exatamente à aplicação das diretrizes do DAS no bojo das ações de improbidade administrativa. A mesma corte firmou na mesma esteira que "por se tratar de legislação superveniente própria do direito material sancionador (artigo 1º, §4º, da lei 8.429/92, com a redação atribuída pela lei 14.230/21), suas disposições devem ser aplicadas de imediato e, inclusive, retroativamente, desde que para beneficiar o réu (artigo 5º, inciso XL, da CF/88)" [18] e também que a novel lei em comento "comporta aplicação retroativa por seu caráter sancionatório e por beneficiar o réu" [19].

A doutrina administrativista, ao menos em sua maioria, parece ter trilhado o mesmo caminho. Rafael Carvalho Rezende Oliveira e Erick Halpern defendem "a possibilidade de aplicação retroativa das normas mais benéficas oriundas da reforma promovida pela Lei 14.230/2021 na LIA", justamente porque "o princípio da retroatividade da lei mais benéfica, expressamente indicado no âmbito do Direito Penal (artigo 5º, XL, da CRFB: 'a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu'), seria aplicável no âmbito do Direito Administrativo Sancionador". Os mesmos autores afirmam que, caso existam em curso ações de improbidade administrativa que confrontem a Lei nº 14.230/21, "deverão ser extintos, com resolução de mérito pela impossibilidade jurídica do pedido acusatório" [20].

Mas uma questão se coloca: qual o efeito da alteração legal diante de decisões condenatórias transitadas em julgado? Evidentemente que no espaço deste artigo não é possível desenvolver à exaustão o tema. Mas cabem algumas pinceladas.

Nos termos do artigo 966, V, do CPC, é cabível rescindir a decisão de mérito que "violar manifestamente norma jurídica", sendo que uma das normas jurídicas é justamente, nos termos do atual artigo 1º, §4º, da Lei nº 8.429/92, a retroatividade da lei benigna, fruto da aplicação às ações de improbidade dos ditames e dos princípios do DAS, com amparo em todo o exposto nesta oportunidade.

Além disso, à luz dos princípios da razoabilidade e da isonomia, não afigura sensato e plausível que alguns continuem a sofrer os impactos das sanções, quando eventuais novos investigados, à luz da Lei nº 14.230/21, não mais serão condenados (ou nem sequer processados) caso pratiquem as mesmas condutas objeto da sentença condenatória. A lógica subjacente a tal raciocínio é a mesma aplicável aos casos de abolitio criminis em seara penal, quando mesmo a coisa julgada é relativizada para alcançar aqueles condenados por condutas que, hoje, são atípicas; e é a mesma pelo fundamento inicial deste trabalho.

De todo modo, reconhecemos que a questão não é simples. Se de um lado a possibilidade do ajuizamento da ação rescisória ora defendida privilegia a retroatividade benigna, direito fundamental de raiz constitucional, de igual modo a coisa julgada, corolário da segurança jurídica, é também valor constitucionalmente protegido que não pode ser ignorado. É o caso, pois, para alguns, de colisão entre princípios e direitos fundamentais, a ser vislumbrado sob o prisma da técnica da proporcionalidade, mediante sopesamento a ser realizado pelo Poder Judiciário, quando do julgamento e da fixação de teses.

Aliás, diante da certa repetição de processos afetos à temática, somada ao risco à isonomia e à segurança jurídica que entendimentos jurisdicionais diversos podem causar, o ideal é que a questão do cabimento da ação rescisória ora posta seja decidida e consequentemente uniformizada em sede de IRDR — quando houver efetiva repetição de processos, porque é descabido o referido incidente preventivo —, nos termos do artigo 976 e seguintes do CPC ou de afetação de recursos especiais e extraordinários repetitivos quando houver a efetiva repetição de demandas, nos termos do artigo 1.036 do mesmo estatuto.

Caso não haja uma efetiva multiplicidade de casos, ainda assim, face à grande repercussão social do tema, pode ele também ser objeto de incidente de assunção de competência (IAC), nos termos dos artigos 947 e seguintes da Lei nº 13.105/15, igualmente visando a resguardar a isonomia e a segurança jurídica, mediante a uniformização do entendimento dos tribunais, como exige o artigo 926, caput, da mesma lei.

É importante buscar a pacificação de entendimentos, porque situações jurídicas idênticas não podem ser tratadas como se diversas fossem, sob pena de violação à isonomia, à segurança jurídica e à própria credibilidade da função jurisdicional.

 


[1] O ministro da Justiça à época, Jarbas Passarinho, assim expôs: "Sabendo Vossa Excelência que uma das maiores mazelas que, infelizmente, ainda afligem o País, é a prática desenfreada e impune de atos de corrupção, no trato com os dinheiros públicos, e que a sua repressão, para ser legítima, depende de procedimento legal adequado — o devido processo legal — impõe-se criar meios próprios à consecução daquele objetivo sem, no entanto, suprimir as garantias constitucionais pertinentes, caracterizadoras do estado de Direito."

[2] CAVALCANTI, Caio Mário Lana. Comentários à lei de improbidade administrativa. Rio de Janeiro: CEEJ, 2020, p. 181

[3] Nesse sentido: STJ, Recurso Especial 1.366.721/BA, rel. ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, rel. p/ acórdão ministro OG FERNANDES, 1ª SEÇÃO, julgado em 26/2/2014.

[4] Nesse sentido: STJ, Recurso Especial 728.341/SP, rel. ministro OG FERNANDES, 2ª TURMA, julgado em 14/3/2017.

[5] STJ, Agravo Regimental no Recurso Especial 1.225.295/PB, rel. ministro FRANCISCO FALCÃO, 1ª TURMA, julgado em 22/11/2011.

[6] STJ, Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial 307.583/RN, rel. ministro CASTRO MEIRA, 2ª TURMA, julgado em 18/6/2013.

[7] Nesse sentido, Diogo de Figueiredo Moreira Neto e Flávio Amaral Garcia: "O Direito Punitivo estatal, tanto no Direito Penal como no Direito Administrativo, se funda sobre um conjunto de princípios e regras garantidoras de direitos dos administrados e dos cidadãos que, apesar das diferentes formas de aplicação, a depender de se tratar de infração penal ou administrativa, informa o ius puniendi estatal. Sem a observância de tais normas a atividade punitiva estatal se torna ilegítima e arbitrária". Conferir: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo; GARCIA, Flávio Amaral. A principiologia no direito administrativo sancionador. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, nº 28, nov./jan. 2011/2012. No mesmo trilho: NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Comentários à reforma da lei de improbidade administrativa: Lei 14.230, de 25/10/2021, comentada artigo por artigo. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 7

[8] ZARDO, Francisco. Infrações e Sanções em Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2014. p. 39.

[9] STF, Agravo Interno na Ação Cível Originária 3.191/PB, rel. ministro LUIZ FUX, TRIBUNAL PLENO, julgado em 3/4/2020. No mesmo sentido: TJ-RS, Apelação Cível 50006824520158210142, rel. desembargador ARMÍNIO JOSÉ ABREU LIMA DA ROSA, 21ª CÂMARA CÍVEL, julgado em 3/11/2021.

[10] TJ-MG, Remessa Necessária 1.0021.11.000885-7/001, rel. desembargador BITENCOURT MARCONDES, 19ª CÂMARA CÍVEL, julgado em 4/7/2019. No mesmo sentido: TJ-MG, remessa necessária 1.0327.02.005147-7/001, rel. desembargador JUDIMAR BIBER, 3ª CÂMARA CÍVEL, julgado em 3/12/2015; TJ-RN, Apelação Cível 0003583-94.2011.8.20.0124, rel. desembargador JOÃO REBOUÇAS, 3ª CÂMARA CÍVEL, julgado em 12/5/2015.

[11] NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. Sanções administrativas e princípios de direito penal. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Divisão Jurídica, nº 31, Bauru, abr./jul. 2001.

[12] STJ, Recurso em Mandado de Segurança 37.031/SP, rel. ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 8/2/2018.

[13] TJ-MG, Remessa Necessária 1.0000.20.002323-2/001, rel. desembargador MOACYR LOBATO, 5ª CÂMARA CÍVEL, julgado em 27/2/2020.

[14] TJ-MG, Apelação Cível/Remessa Necessária 1.0024.12.128042-4/002, rel. desembargador MARCELO RODRIGUES, 2ª CÂMARA CÍVEL, julgado em 4/8/2015.

[15] TJ-PB, Apelação Cível 0000521-96.2016.8.15.0031, rel. desembargador JOÃO ALVES DA SILVA, 4ª CÂMARA CÍVEL, julgado em 13/12/2021.

[16] TJ-GO, Agravo de Instrumento 5408089-83.2021.8.09.0005, rel. juíza substituta CAMILA NINA ERBETTA NASCIMENTO, 5ª CÂMARA CÍVEL, julgado em 12/11/2021.

[17] TJ-SP, Apelação Cível 1001594-31.2019.8.26.0396, rel. desembargador OSWALDO LUIZ PALU, 9ª CÂMARA DE DIREITO PÚBLICO, julgado em 10/11/2021.

[18] TJ-SP, Apelação Cível 1000554-80.2019.8.26.0638, rel. desembargador PAULO BARCELLOS GATTI, 4ª CÂMARA DE DIREITO PÚBLICO, julgado em 3/12/2021.

[19] TJ-SP, Apelação Cível 1009601-46.2019.8.26.0099, rel. desembargadora TERESA RAMOS MARQUES, 10ª CÂMARA DE DIREITO PÚBLICO, julgado em 16/11/2021.

[20] HALPERN, Erick; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. A retroatividade da lei mais benéfica no direito administrativo sancionador e a reforma da lei de improbidade pela Lei 14.230/2021, Zênite Fácil, categoria Doutrina, 9/12/2021. Disponível em: www.zenitefacil.com.br. Acesso em 27/12/2021. No mesmo sentido: No mesmo trilho: NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Comentários à reforma da lei de improbidade administrativa: Lei 14.230, de 25/10/2021, comentada artigo por artigo. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 7.

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  • Brave

    é advogada, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, ex-controladora-geral e ex-procuradora-geral-adjunta de Belo Horizonte, especialista (pós-graduação) em mediação, conciliação e arbitragem, visiting scholar na George Washington University, professora visitante na Universidade de Pisa, doutora em Direito Administrativo e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA).

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    é advogado e especialista em Advocacia Pública e em Direito Administrativo, Constitucional, Tributário, Processual e Público.

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