Interesse Público

Governança de riscos nos contratos de concessão de infraestrutura rodoviária

Autores

  • Cristiana Fortini

    é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretora jurídica da Cemig e presidente do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo).

  • Gustavo Binenbojm

    é procurador do estado do Rio de Janeiro e professor titular da Faculdade de Direito da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

22 de dezembro de 2022, 8h00

Nos últimos dias 13 e 15 de dezembro, foram realizadas as sessões públicas da Audiência Pública nº 13/2022, promovida pela ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres). Numa postura metodológica democrática e dialógica, a agência franqueou aos interessados a oportunidade de apresentarem contribuições ao modelo proposto de alocação de riscos para os contratos de concessão rodoviária, com o objetivo de construir uma nova modelagem de governança de riscos para esses contratos.

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A iniciativa da ANTT deve ser celebrada. Primeiro, porque a abertura ao diálogo com agentes econômicos, acadêmicos e cidadãos representa importante avanço rumo a um processo decisório efetivamente democrático, pautado por argumentos racionais. A iniciativa permite que a agência colha subsídios e enriqueça o debate para a construção de um modelo de alocação de riscos adequado.

Deve ser destacado que o artigo 9º  da Lei 13.848/19, destinado a normatizar o processo decisório das agências reguladoras, estabelece a necessidade de ser realizada consulta pública das minutas e propostas de alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos, consumidores ou usuários de serviços públicos, previamente à tomada de decisão pelo conselho diretor ou pela diretoria colegiada, indo além do artigo 29 da Lei 13.655/18. A obrigatoriedade de consulta pública, prévia à tomada de decisão pela criação ou alteração de atos normativos de interesse geral, e a real análise das considerações apresentadas, adicionam importante passo no sentido da permeabilidade estatal.

A cláusula de alocação de risco não se enquadra no conceito de atos normativos, mas é matéria relevante. O artigo 10 da Lei 13.848/19 prevê a possibilidade de se realizar audiência pública em casos assim, merecendo elogios, pois, a sensibilidade por trás da decisão de se oportunizar o espaço para as distintas manifestações e o convite à academia para tomar assento no debate.

A decisão ou não de celebrar contratos de concessão envolve a atratividade e a segurança jurídica do negócio. Cláusulas de matriz de risco estão no centro da decisão dos operadores econômicos. Manifestar seus inconformismos e dúvidas sobre a minuta de cláusula proposta contribui para mensurar o apetite do mercado.

Mas há um segundo avanço que não deve passar despercebido. Trata-se da genuína disposição da ANTT em promover um debate sério e técnico que foge da zona de conforto quanto à repartição de riscos nos contratos de concessão rodoviária. Prova disso é que a proposta de clausulado discute matérias que, tradicionalmente, atraíam a responsabilidade exclusiva do parceiro privado, mesmo quando ele não tivesse ingerência efetiva sobre a gestão desses riscos ou ficasse sujeito a perdas insuportáveis. Disso são exemplos as cláusulas de compartilhamento de riscos envolvendo o licenciamento ambiental e a relativa à variação de preços dos insumos. Ao trazer essas questões à mesa de discussões, a ANTT sinaliza positivamente ao mercado sua compreensão de que o contrato de concessão pressupõe a colaboração mútua das partes em prol de resultados satisfatórios; e isso, de sua vez, requer uma repartição de riscos equilibrada.

Mas há espaço para aprimoramentos e a agência abriu-se a sugestões. Com o objetivo de contribuir para o modelo de governança da matriz de riscos em contratos de concessão rodoviária, apresentamos três diretrizes que devem guiar o processo de construção desse clausulado, todas condizentes com as tendências do moderno direito administrativo, consubstanciadas nas recentes alterações da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro por meio da Lei nº 13.655/2018: (i) a segurança jurídica; (ii) a realidade; e (iii) os deveres de boa-fé e cooperação.

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Professor Gustavo Binenbojm

Em relação à busca por maior segurança jurídica, um modelo adequado de governança exige maior concretude aos riscos alocados às partes. A proposta da ANTT vai no sentido correto de dar maior densidade às cláusulas alocativas dos riscos na matriz proposta. Segue-se a lógica de que os riscos devem ser alocados à parte que possua melhores condições de gerenciá-los, da forma mais eficiente possível. Mas quanto mais bem descritos e pormenorizados, maior o grau de previsibilidade. E isso pode ser aperfeiçoado no modelo proposto pela ANTT, por exemplo, por meio da especificação de hipóteses aptas a caracterizar determinado risco (e.g., rol exemplificativo de situações que se enquadrem nos conceitos jurídicos indeterminados de "caso fortuito", "força maior", "fato do príncipe").

Garantir maior previsibilidade é não apenas uma boa prática, mas um requisito de eficiência. Quando os particulares têm maior clareza quanto aos riscos que suportarão e quanto às providências a seu cargo, podem planejar e precificar melhor. E isso traz resultados positivos nos processos de concorrência, como a mitigação dos riscos de seleção adversa e a potencial redução dos custos de transação e da litigiosidade entre os parceiros no curso da execução contratual.

Sob a ótica de um maior compromisso com a realidade, é importante que o modelo de governança proposto pela ANTT evite que os riscos sejam atribuídos às partes de forma simplória, anacrônica ou formalista. Como estabelece o artigo 22 da Lindb, é preciso considerar "os obstáculos e as dificuldades reais" impostas ao parceiro privado no curso da execução de um contrato de concessão, sempre permeada de desafios. Tal perspectiva é relevante, por exemplo, (i) para riscos decorrentes de levantamentos que são feitos sobre a infraestrutura na fase licitatória e as suas repercussões sobre a identificação superveniente de vícios ocultos; e (ii) para riscos relativos a manifestações sociais. É preciso ter uma dose de pragmatismo e realismo na execução e interpretação do contrato.

Justamente esse olhar de realidade evidencia que o parceiro privado não é onisciente nem onipotente, e que, portanto, não é apto a assumir riscos que sequer poderia conhecer ou que fogem da sua ingerência. Até porque os contratos de concessão estabelecem uma relação de parceria, em que o interesse público supremo não é a menor onerosidade do erário, mas o atendimento à necessidade coletiva. Logo, o papel do parceiro público na consecução dessas finalidades deve ser tomado com seriedade e sensatez.

Daí decorrem, igualmente, os deveres de boa-fé e cooperação como diretrizes essenciais para que a matriz de risco não seja interpretada sob uma ótica formalista. A matriz de risco tem se tornado um dogma que foge do juízo pragmático ao perenizar as responsabilidades contratuais como se, estaticamente, cada parte devesse lidar com as providências de forma autônoma quando um risco é imputável a ela. Essa ótica formal é incompatível com a dinâmica de um contrato de longo prazo, que exige deveres de colaboração mais intensos e uma maior cooperação no dia a dia da concessão.

Nem sempre é possível antever todos as contingências potenciais em um contrato de concessão. Atribuir ao parceiro privado todos os riscos não expressamente alocados a qualquer das partes (os chamados riscos residuais) pode se tornar um desserviço ao interesse público, ao invés de solução. Além de potencialmente tornar as concessões menos atrativas e eficientes, tende a gerar problemas de seleção adversa, tal como já mencionado. É dizer: escolhem-se parceiros privados que, dada a imprecisão da matriz, simplesmente não precificam riscos residuais em suas propostas. Nesse caso, uma vez materializados tais riscos, é provável que tenham dificuldade para suportá-los.

Mais que isso, cláusulas que prevejam riscos residuais para o privado não estão afinadas com a repartição objetiva de riscos. Portanto, não se trata de mera inconveniência confeccionar cláusulas que assim prevejam, mas um desacerto.

De igual forma, não é porque o risco foi atribuído à concessionária que as autoridades públicas possam lavar as mãos. O contrato de concessão é uma relação de parceria que exige esforços conjuntos para a sustentabilidade e o sucesso da concessão em prol dos usuários do serviço. Esse dever de cooperação envolve, por exemplo, um esforço do Poder Público de atribuir previsibilidade às suas manifestações e decisões, a fim de se evitarem ineficiências contratuais ou períodos de indefinição. Prazos e cronogramas precisam ser cumpridos, sob pena de a demora impactar negativamente o contrato. E disso advém outra importante reflexão: mecanismos de reequilíbrio não deveriam ser tidos como remédio, mas como sintoma de desajustes da relação. Reequilibra-se porque o contrato saiu do eixo. E, embora os desequilíbrios sejam inevitáveis, a cooperação e o dever de boa-fé surgem como salvaguardas para impor às partes a adoção de comportamentos responsáveis e colaborativos.

Investir nesses três eixos — segurança jurídica, realidade e cooperação – é fundamental para a construção de modelagens contratuais mais racionais e eficientes, que não apenas tratem os concessionários como verdadeiros parceiros do Estado, mas que os direcionem na prestação de serviços adequados à sociedade.

Autores

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    é advogada, visiting scholar pela George Washington University, doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em mediação, conciliação e arbitragem pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático (IDDE), professora da graduação, mestrado e doutorado da UFMG, professora do mestrado da Faculdade Milton Campos, professora Visitante da Università di Pisa, presidente do IBDA *Instituto Brasileiro de Direito Administrativo) e diretora regional do Ibeji.

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    é professor titular da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor e mestre em Direito Público pela Uerj e master of laws (LL.M.) pela Yale Law School (EUA).

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