Opinião

Novo decreto da Lei Rouanet: quais são as principais mudanças?

Autor

  • Raquel Grazzioli

    é advogada do escritório Rubens Naves Santos Júnior Advogados e atua em demandas consultivas com foco em Terceiro Setor Direito Administrativo e setores estratégicos.

12 de agosto de 2021, 13h37

No último dia 27 de julho, o Poder Executivo publicou o Decreto Federal nº 10.755, que traz nova regulamentação da Lei Rouanet e modifica a sistemática de execução de projetos culturais no âmbito do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), revogando o antigo Decreto nº 5.761, de 2006.

Apesar da notória necessidade de regulamentação de determinados dispositivos, o decreto possui aplicação imediata e se aplica a projetos em andamento.

Dessa forma, projetos de antes do dia 27 de julho poderão permanecer válidos até o último dia útil do exercício de 2021, devendo se adequar às regras do novo decreto. No caso de não se adequarem: 1) caso tenham captado parcialmente os recursos, deverão apresentar prestação de contas final; 2) caso não tenha captado recursos, poderão ser definitivamente encerrados. 

E, para prorrogar o período de captação de recursos ou execução do projeto para o exercício de 2022, os proponentes deverão solicitar a adequação do projeto à Secretaria Especial de Cultura, que emitirá novo parecer com base nas regras do novo decreto.

Sem sombra de dúvidas, os impactos serão maiores para os projetos em andamento, cuja readequação pode ser extremamente difícil para os proponentes. Contudo, é conveniente aguardar a provável publicação de nova instrução normativa que disciplinará os pontos deixados em aberto pelo decreto.

Em linhas gerais, abaixo identificamos quatro grandes alterações trazidas pelo decreto:

1) Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC)
O decreto altera as competências da CNIC e passa a prever que o órgão colegiado atuará como "instância recursal consultiva" de projetos indeferidos na análise técnica.

Nos termos do agora revogado Decreto nº 5.761/2006, a CNIC atuava como um órgão de natureza deliberativa, atuando efetivamente na fase de aprovação, análise de pedidos de readequação e análise de recursos de projetos, com a principal função de apreciar, mediante emissão de parecer técnico, os projetos apresentados, além de subsidiar as decisões da Secretaria Especial de Cultura.

Com a alteração trazida pelo Decreto nº 10.755/2021, a competência da CNIC fica reduzida a um órgão recursal, competente para apreciar recursos interpostos em face de decisões desfavoráveis à aprovação de projetos.

O esvaziamento das atribuições do órgão colegiado, que inclusive conta com representantes da sociedade civil de diversos setores culturais e artísticos, aumenta o poder decisório do Secretário Especial de Cultura do Ministério do Turismo, a quem competirá, de forma isolada, deliberar sobre os programas e projetos culturais apresentados (artigo 38, inciso I).

A centralização de poderes na figura do secretário enfraquece o órgão colegiado e a incidência e participação coletiva da sociedade civil no processo de aprovação e avaliação de projetos culturais, potencializando o risco de dirigismo na condução na política federal de fomento à cultura.

Reforça esse entendimento o fato de o artigo 46 do novo decreto determinar que o funcionamento da CNIC passará a ser regido por normas internas e regimentais editadas pela Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo, e não mais por regimento editado pelos próprios membros da CNIC. Assim, a secretaria passa a ter poder de decidir sobre a composição, as regras de funcionamento e as competências da comissão.

Vale ressaltar que, em relação aos representantes da sociedade civil, a composição da CNIC não se alterou, mantendo o número de seis membros, mas houve alteração das áreas contempladas, que passam a ser as seguintes: arte sacra, belas artes, arte contemporânea, audiovisual, patrimônio cultural material e imaterial e museus e memória.

2) Percentual de destinação de produtos ao patrocinador resultantes do projeto cultural
O artigo 31 do novo decreto reduz de 10% para 5% o limite percentual permitido para a destinação, ao patrocinador, de produtos resultantes do projeto cultural, com a finalidade de distribuição gratuita promocional.

No caso de haver mais um patrocinador, cada um poderá receber produto em quantidade proporcional ao investimento efetuado, respeitado o limite de 10% para o conjunto de incentivadores.

Considerando que o decreto tem eficácia imediata, a alteração possui impacto significativo nos projetos em andamento e pode inclusive prejudicar a relação entre os proponentes e patrocinadores, pois a negociação e pactuação de contrapartidas já foi formalizada entre as partes.

Nesse ponto, eventual alteração pode violar ato jurídico perfeito, sendo que seria mais adequado o decreto prever regras de transição para projetos já aprovados. Contudo, ainda não se sabe se esse entendimento irá prevalecer, tendo em vista que se tem notícia de que as novas regras de contrapartidas já estão sendo aplicadas pela Secretaria Especial da Cultura para projetos em andamento.

3) Regras de divulgação de projetos
Em relação às regras de divulgação de projetos, o Decreto nº 10.755/2006 veda a utilização de logomarcas, símbolos "ideológicos" ou "partidários" nas peças gráficas dos projetos culturais, produzidas tanto pelos proponentes como pelos patrocinadores (artigo 50, §2º).

Muito embora o decreto preveja que a Secretaria Especial de Cultura ainda irá elaborar um manual com orientações com orientações sobre a programação visual e inserção das logomarcas, a vedação a símbolos "ideológicos" ou "partidários" preocupa por abrir margem à censura e à perseguição político-ideológica no âmbito de análise de projetos culturais.

Ademais, o decreto obriga estados, municípios e Distrito Federal a solicitar prévia aprovação da Secretaria Especial de Cultura no caso de inauguração, lançamento, divulgação, promoção e distribuição dos projetos realizados com recursos de incentivo fiscal, sob pena reprovação parcial ou total dos programas do proponente, o que novamente indica uma indevida centralização de poderes na esfera federal.

4) Planos anuais e plurianuais de atividades
A partir das alterações do Decreto nº 10.755/2006, somente instituições exclusivamente culturais, voltadas a atividades de museus públicos, patrimônio material e imaterial e ações formativas de cultura, poderão apresentar planos anuais ou plurianuais no Pronac. Demais planos poderão ser autorizados pela Secretaria Especial de Cultura, caso sejam considerados "relevantes" para a cultura nacional.

Não obstante os planos anuais e plurianuais não estejam extintos, a limitação à sua utilização preocupa, visto que essa modalidade de projeto é cada vez mais utilizados por entidades sem fins lucrativos de diversas áreas culturais para a manutenção da instituição e para o custeio de atividades permanentes e contínuas, não sendo a eles aplicado os limites de captação de recursos por proponente.

Agora, excluindo-se as entidades expressamente mencionadas, as demais instituições culturais deverão submeter os seus projetos a uma análise específica da Secretaria Nacional de Cultura, sob critérios extremamente subjetivos de "relevância" para a cultura nacional, não se sabendo, ainda, quais serão os parâmetros a serem utilizados para essa análise.

Conclusão
Não é novidade a paralisação quase que completa da CNIC, bem como do desmonte dos mecanismos federais de fomento à cultura, em afronta direta ao direito fundamental de acesso à cultura.

Nesse contexto, não obstante ser pertinente aguardar a sua regulamentação, as alterações trazidas pelo Decreto nº 10.755/2006 não parecem ter o propósito de aperfeiçoar as regras de execução de projetos culturais, considerando ainda a aparente ausência de participação ativa dos atores culturais, que poderiam contribuir com sugestões para alterações na legislação.

Em última análise, o decreto tem potencial de trazer ainda mais desafios e incertezas para todos os agentes que contribuem para o cenário cultural brasileiro. 

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    é advogada do escritório Rubens Naves, Santos Júnior Advogados e atua em demandas consultivas com foco em Direito Administrativo, Terceiro Setor e outros setores estratégicos.

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