Pilar da igualdade

"Reforma tributária precisa recuperar justiça do Imposto de Renda"

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26 de maio de 2019, 8h12

Spacca
A reforma tributária em discussão na Câmara dos Deputados (PEC 45/2019) acaba com IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS e, em substituição, cria o Imposto sobre Operações com Bens e Serviços. Porém, a proposta não mexe no Imposto de Renda – medida imprescindível para se restaurar a justiça do sistema tributário, segundo o professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Sergio André Rocha, sócio do Sergio André Rocha – Advocacia & Consultoria Tributária. Desde janeiro, ele integra a comissão de reforma tributária do estado do Rio.

Para o tributarista, uma reforma tributária eficaz deve se basear em três pilares: simplificação, previsão da economia do futuro e justiça. Ao se concentrar apenas na tributação sobre consumo, a PEC 45/2019 corre o risco de queimar os cartuchos de uma reestruturação fiscal sem fazer com que ricos paguem proporcionalmente mais impostos do que pobres.

Em entrevista à ConJur, Sergio André Rocha explicou os objetivos da comissão de reforma tributária do Rio, declarou que incentivos fiscais podem ser úteis, se devidamente fiscalizados e defendeu a criação de um tribunal para julgar os casos tributários que hoje são de competência do Supremo Tribunal Federal.

Leia a entrevista:

ConJur — Quais são os principais objetivos da comissão de reforma tributária do Rio de Janeiro?
Sergio André Rocha —
A comissão tem diversas metas. A mais ambiciosa é contribuir com propostas para a reforma do sistema tributário em todas as suas esferas. A gente sempre fala em sistema tributário, então se quisermos fazer uma reforma total, não dá para focar só em questões estaduais, específicas do estado do Rio de Janeiro. Temos que olhar para o sistema como um todo.

ConJur — E o que isso quer dizer?
Sergio Rocha — 
Há três grandes pilares para a discussão de uma reforma tributária. O primeiro, que é mais debatido, é a simplificação. Não há a menor dúvida de que o sistema precisa ser simplificado. Mas uma reforma tributária não pode ser só sobre simplificação.

O segundo pilar, que é o mais esquecido, é a justiça do sistema. Da mesma maneira que o sistema é complexo, ele é injusto, por causa desse alto peso da tributação do consumo, que atinge pessoas que não deveriam suportar esse custo. Uma das grandes áreas de pesquisa sobre tributação foca na tentativa de recuperar a capacidade de arrecadação e de distribuição de carga tributária do Imposto de Renda.

ConJur — Em que sentido?
Sergio Rocha — 
O IR é um imposto em crise, mas ainda é o melhor instrumento de divisão justa de carga tributária. Portanto, da perspectiva de justiça, a revitalização do IR enquanto instrumento de distribuição justa de carga tributária, é muito importante.

ConJur — E qual é o terceiro pilar?
Sergio Rocha — 
O futuro. Uma das grandes críticas que se faz ao sistema tributário brasileiro, e que é uma crítica correta, é que ele foi forjado tendo como referência a economia industrial. Não foi estruturado para a economia digital. Por isso é importante olhar para frente, a reforma tem de ser feita para o futuro. Uma reforma total precisa lidar com a complexidade e com as questões do futuro, que a cada dia se tornam cada vez mais o presente.

ConJur — A CCJ da Câmara acaba de dar parecer favorável à substituição de cinco impostos por um imposto sobre valor agregado, ou sobre bens e serviço. Qual a sua opinião sobre o IBS?
Sergio Rocha — 
Projetos como esse colocam em choque diversos atores. Essa reforma coloca em linha de conflito potencial a União e os demais entes federativos, provoca disputas entre os estados entre si, os municípios entre si, entre municípios e estados, entre contribuintes e o Estado latu sensu e entre os próprios contribuintes (por exemplo, o setor de serviços vai ter um aumento significativo de carga tributária com o IBS).   

Essa proposta de criação do imposto sobre operações com bens e serviços já vem sendo debatida há muito tempo, especialmente pela equipe do Centro de Cidadania Fiscal, cuja seriedade e empenho ninguém duvida. No início dos trabalhos da nossa comissão, nós definimos que seria adotada como premissa a manutenção do ICMS, sem adesão do estado do Rio de Janeiro ao IBS. Não creio que seja uma posição fechada do governador do Rio, mas foi a orientação que tivemos. Sendo uma comissão do estado, não faria sentido levar adiante uma proposta que o estado, até segunda ordem, não quer.

ConJur— Por que não?
Sergio Rocha —
Um dos principais problemas do IBS é a sua relação com o pacto federativo. A aprovação dessa PEC inevitavelmente vai gerar um contencioso no Supremo Tribunal Federal. Sempre se entendeu que a outorga de competências tributárias relevantes a estados e municípios era inerente à sua autonomia federativa. Inclusive, esta parece ser a premissa do IBS, ao tentar afastar as críticas que lhe haviam sido dirigidas prevendo maior atuação de estados e municípios.

ConJur — A ideia da PEC é que cada um defina sua própria alíquota, por meio de lei aprovada no Legislativo local.
Sergio Rocha  — 
A PEC prevê três alíquotas, a da União, a dos estados e a dos municípios. Estados e municípios poderiam alterar suas alíquotas. Só que ela precisa ser a mesma para todos os produtos e serviços. Se for entendido que a competência tributária é inerente à autonomia federativa, surge outra pergunta difícil: dar liberdade para estados e municípios definirem a própria alíquota, mas sendo obrigatoriamente a mesma para todas as mercadorias e serviços, é suficiente? Parece mais fácil convencer que a autonomia federativa não está ligada à competência fiscal. No fundo, o que o IBS faz é mexer com a competência tributária dos estados e municípios, e até hoje não vi nenhum estado ou município relevante apoiar a proposta.

Outra preocupação é que o IBS é um tributo complicado e que gerará uma hipercomplexidade no curto prazo. A PEC trabalha com uma transição de 10 anos. É como uma reforma na sua casa com você morando nela: quando ficar pronta, vai ser boa; enquanto ela durar, vai ser ruim, muito ruim. Nos primeiros anos, as empresas terão que lidar com todas as complexidades conhecidas e mais um tributo. Essas concessões que foram feitas aos estados e municípios, com a premissa de evitarem os questionamentos federativos, tornaram o IBS um imposto complexo. Se ele fosse federal, seria simples. Mas essa reforma não entrega a melhora no ambiente de negócios durante este mandato. Pelo contrário.

ConJur — Quais os principais pontos que devem ser abordados por uma reforma ampla?
Sergio Rocha — A primeira coisa é repensar o IR. É um dos pontos que me preocupa com o foco no IBS. Essa reforma pode acabar queimando a largada e tendo um protagonismo maior do que outras. Se a gente fosse efetivamente fazer uma reforma total, com calma, pensando nos três pilares, não dá para não fazer uma reforma do IR. Recuperar a justiça do Imposto de Renda é essencial.

ConJur — Como?
Sergio Rocha —
São várias medidas. Nas últimas semanas, falaram em eliminar as deduções de saúde. Não é por aí. Recuperar a justiça do Imposto de Renda não é massacrar ainda mais a classe média. Gosto da ideia — que hoje é inviável pela nossa situação fiscal — de aumentar a faixa de isenção. É uma medida concreta de distribuição de renda. Há pessoas que não deveriam pagar IR porque o que recebem é necessário para custear o essencial da família e hoje pagam. Mexer na faixa de isenção é fundamental.

ConJur — O Sindifisco também costuma falar na correção das faixas.
Sergio Rocha — 
Hoje o Imposto de Renda não consegue alcançar os altos rendimentos. A gente tem que trabalhar com o IR considerando a renda consumida, um imposto sobre gastos, que é visto como uma das melhores formas de alcançar contribuintes de maior poder aquisitivo. Normalmente o que diferencia as classes mais ricas das classes mais pobres é o padrão de consumo. Se a gente conseguisse de alguma maneira ter um adicional de Imposto de Renda ou um tributo sobre a renda que considerasse como renda tributável o patrimônio gasto, seria uma forma de recuperar a justiça. O fato é que quem ganha mais precisa pagar mais imposto. Isso é inevitável. E a melhor forma de fazer isso talvez não seja por meio da tributação de dividendos pura e simples, porque isso só vai estimular o empresário a deixar de distribuir lucros, a comprar ativos e usufruir pessoalmente por meio da pessoa jurídica. E aí se ressuscita a figura da distribuição disfarçada de lucros, e se vai ter um problema monumental de compliance e fiscalização.

ConJur — O que acha de criar um imposto sobre grandes fortunas?
Sergio André Rocha — É preciso começar a pensar no que fazer para que o topo da pirâmide pague mais impostos. Um imposto sobre grandes fortunas não pode servir para tributar a viúva que herdou um apartamento, que em valores de mercado vale R$ 2 milhões. Ele tem que ter incidência muito limitada, e regras antiabuso e formas e evitar a saída do país, como os tributos de saída: se o sujeito tirar a fortuna dele do país, tem de pagar um imposto. É muito comum isso em outros países. Agora, tem que pensar muito antes de criar um imposto como esses. Tudo indica que é um tributo de arrecadação limitada, orçamentariamente irrelevante. Ele teria mais uma função simbólica do que uma função arrecadatória relevante.

ConJur — Fora isso, seria desejável diminuir a tributação sobre o consumo em geral?
Sergio Rocha —
Uma das críticas que eu venho fazendo ao IBS é que ele é um super imposto sobre consumo. Se a gente tem uma crítica constante de que essa tributação é injusta porque é regressiva, não faz sentido criar um supertributo, um super IVA. Há quem afirme que poderá haver mecanismos de devolução de imposto para determinadas faixas de renda. Mas isso não é concreto, e com esse nosso aperto orçamentário, não me surpreenderia nada se nunca acontecesse. Também seria bom reduzir a abrangência do PIS e da Cofins, que cresceram de maneira exagerada. Em termos de desenho, não desgosto da proposta que o Marcos Cintra, secretário especial da Receita Federal, vem falando de um imposto sobre movimentações, embora ache que ele ainda não conseguiu explicar bem o que é o tal imposto, qual seria a sua base de incidência e como ele se diferencia da finada CPMF. Agora, teria que ser um tributo com uma alíquota baixa, perto do que era a alíquota da CPMF.

ConJur — Vários países da Europa têm um IVA.
Sergio Rocha — Não sou contra criar um IVA nacional. Mas não desgosto da ideia de manter o ICMS e o ISS. Não são tributos inadministráveis, como se diz. Estão aí há décadas, já têm jurisprudência. Grande parte do problema do ICMS e do ISS não é necessariamente um problema legislativo, é judicial. Como tudo é constitucionalizado, o Supremo cuida dos conflitos. E demora muito para dar a resposta, especialmente no campo do conflito de competência. Um dos grandes temas que está pendente de julgamento no Supremo é a incidência ou não de ICMS sobre o download de software. É um caso sobre uma lei do Mato Grosso da década de 1990. Estamos indo para 2020 e o Supremo não consegue pautar o caso. Se tem um tema diretamente relacionado à economia digital que é constitucionalizado, e a corte constitucional demora 20 anos para julgá-lo, é inútil, o sistema está quebrado. 

Uma ideia que poderia ser considerada para destravar o sistema é a criação de um tribunal constitucional tributário, que absorvesse a competência do STF neste campo. Se tivéssemos uma corte constitucional, específica para matéria tributária, julgando os conflitos de competência de forma célere, teríamos um ambiente de maior segurança e estabilidade. Nem todos os problemas tributários são questões de mudança de lei.

ConJur — O Rio está no regime de recuperação fiscal da União desde o fim de 2017. Isso limita as possibilidades de reforma tributária no estado?
Sergio Rocha —
A gente não está considerando isso. Até porque não faz parte do nosso trabalho nenhuma renúncia fiscal. É verdade que a gente presta atenção em algumas leis que o estado tem ou está discutindo. Questionamos se faz sentido manter algumas medidas. Por exemplo, o estado do Rio hoje tem dois grandes polos de contencioso com o setor de petróleo e gás: a incidência do ICMS na extração e a taxa de fiscalização do setor. Faz sentido manter esses dois pilares, que geram contencioso e que têm uma perspectiva de êxito baixa para o estado lá na frente? Não há resposta fácil, mas esses são típicos casos que a gente coloca na mesa para tentar discutir. No final, o resultado do nosso trabalho é propositivo. A gente não tem nenhum poder de implementação. Pode ser que, no final, o estado decida não implementar nenhuma das sugestões.

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