Ambiente Jurídico

Os danos potenciais com a aprovação do "PL do Veneno"

Autor

  • Eduardo Coral Viegas

    é promotor de Justiça no MP-RS graduado em Direito pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) especialista em Direito Civil mestre em Direito Ambiental palestrante ex-professor de graduação universitária atualmente ministrando cursos e treinamentos e integrante da Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente. Autor dos livros Visão Jurídica da Água e Gestão da Água e Princípios Ambientais.

21 de julho de 2018, 8h00

Spacca
Nos últimos dias de junho, a Comissão Especial da Câmara dos Deputados enfim aprovou o “PL do Veneno”, como é conhecido o PL 6.299/02, ao qual estão apensados outros 29 projetos de lei. O texto agora seguirá para os plenários da Câmara e do Senado.

O assunto é extremamente polêmico, tanto que o projeto de lei tramita há mais de 15 anos. Para a bancada ruralista, o objetivo é modernizar a legislação e o setor. O relator da matéria na comissão, deputado Luiz Nishimori, destacou: “Queremos modernizar, estamos apresentando uma das melhores propostas para o consumidor, para a sociedade e para a agricultura, que precisa dos pesticidas como precisamos de remédios”[1].

A oposição na Câmara sustenta a inconstitucionalidade da proposta, na esteira de manifestações do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União.

Mas não foram apenas esses segmentos que se posicionaram sobre a matéria. Existem dezenas de notas técnicas criticando o projeto de lei, inclusive da Anvisa e do Ibama, órgãos que atualmente desempenham papel fundamental no registro e controle dos agrotóxicos.

As mudanças que se pretende introduzir na legislação brasileira são inúmeras, começando pelo próprio nome, com a eliminação da denominação “agrotóxico”, o que já configuraria uma inconstitucionalidade aparente.

O artigo 220, parágrafo 4º, da CF, deixa claro que “a propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso” (grifamos).

A intenção do constituinte é garantir proteção ao consumidor contra produtos tóxicos, nocivos, tais como o tabaco, as bebidas alcoólicas e os agrotóxicos. A substituição do nome agrotóxico por “defensivos fitossanitários” ou mesmo “pesticidas” viola essa intenção protetiva disposta na Constituição, podendo dar ao consumidor a ideia de que ele está consumindo um produto de menor toxidade, apesar de a mudança ter sido apenas de nomenclatura.

Mas essa é das alterações de menor impacto. Há outras tantas que repercutem bem mais no contexto da produção alimentícia nacional e, por consequência, na saúde dos brasileiros e na proteção ambiental.

O Brasil já é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo[2], mesmo contando com uma legislação razoavelmente protetiva da saúde e do meio ambiente, a qual está em vias de ser revogada. A Lei 7.802/89 estabelece o seguinte:

§ 6º Fica proibido o registro de agrotóxicos, seus componentes e afins:
c) que revelem características teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas, de acordo com os resultados atualizados de experiências da comunidade científica;
Essa regra é substituída no PL em discussão o art. 4º, § 3º, verbis:
Fica proibido o registro de produtos fitossanitários, de produtos de controle ambiental e afins que, nas condições recomendadas de uso, apresentem risco inaceitável para os seres humanos ou para o meio ambiente, ou seja, permanece inseguro mesmo com a implementação das medidas de gestão de risco (grifamos).

Atualmente, a Anvisa já realiza análise e avaliação de risco. Na primeira etapa, a avaliação se constitui na identificação do perigo. Caso nesse momento se identifique, por exemplo, que há indicativo de efeitos cancerígenos, o produto não tem seu uso autorizado no Brasil. Se não constatado esse desfecho, passa-se às demais etapas da avaliação de risco.

Mas o enfoque que o PL dá ao processo é diverso. A análise de risco é substituída pela análise do perigo, porquanto, se o risco for “aceitável”, o produto poderá ser registrado, comercializado e empregado no Brasil. Estamos diante do abandono do princípio da precaução e, com isso, lidando com evidente retrocesso socioambiental.

A um só tempo, portanto, o PL infringe os princípios da precaução e da vedação de retrocesso socioambiental, no que apresenta vícios de inconstitucionalidade.

Os danos potenciais com sua aprovação vão muito além. O PL estabelece que os pedidos de registro e suas alterações deverão ocorrer, quanto a produtos novos, em 12 meses; e, para as demais alterações, em 180 dias. Se os responsáveis não concluírem suas análises nesses prazos, sofrerão pena de responsabilidade.

Trata-se, evidentemente, de prazos extremamente exíguos, sobretudo considerando-se a complexidade de se colocar no mercado um produto que pode gerar danos a milhares ou a milhões de pessoas e ao meio ambiente, e frente às dificuldades estruturais dos órgãos públicos na atualidade.

Ademais, por vezes um órgão necessita de informações prévias do outro para que possa iniciar suas atividades, e o tempo global é concedido a todos para manifestação final sobre o processo de registro. Não há prazos para cada órgão!

Ao lado da responsabilização acima mencionada, surge a figura do “registro temporário” para os produtos que estejam registrados para culturas similares em pelo menos 3 dos 37 países-membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico que adotam, nos respectivos âmbitos, o Código Internacional de Conduta sobre a Distribuição e Uso de Pesticidas da FAO.

Ocorre que a situação do produto em um ou alguns países pode variar totalmente de quando é introduzido em outro. Sua toxidade é influenciada por diversos fatores, além das propriedades físico-químicas e cinéticas comuns aos agrotóxicos. Como destaca a Fiocruz em sua nota técnica sobre o PL, “características genéticas, socioculturais, epidemiológicas e edafoclimáticas, por exemplo, interferem diretamente na toxidade e variam entre os países”[3].

Anote-se que essa autorização precária para emprego do agrotóxico no Brasil pode gerar danos irreparáveis, porquanto sabemos que, se no futuro os órgãos responsáveis indicarem toxidade bastante para justificar a recusa de seu registro, os impactos causados aos consumidores dos produtos contaminados por tais substâncias ou o meio ambiente já estarão consolidados, sendo impossível o restabelecimento do status quo ante.

Outra inovação é o rompimento do sistema de avaliação tripartite para a concessão de registro de agrotóxicos no país. Atualmente, a autorização estatal para emprego do agrotóxico depende de manifestação favorável do Ministério da Saúde, do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).

No Ministério da Saúde, a Anvisa é responsável por avaliar a toxidade e efeitos do produto à saúde humana. No MMA, o Ibama realiza a avaliação ecotoxicológica. Por fim, no Mapa é realizada a avaliação de eficácia agronômica. Porém, a alteração legal prevê que o órgão federal responsável pelo setor da agricultura será o registrante único dos produtos fitossanitários e afins.

Conforme a nota técnica da Anvisa, a proposta é que:

Não haja mais avaliação e classificação de produtos pela área da saúde e meio-ambiente, mas apenas uma ‘homologação’ da avaliação realizada pelas empresas registrantes. Assim, entendemos que essa proposta claramente desconsidera a responsabilidade e dever do Estado em reduzir, por meio de políticas públicas, o potencial de dano à saúde oriundo da exposição a agrotóxicos e afins[4].

A nota técnica do Ibama, nos mesmos moldes de inúmeras outras, sustenta que as modificações introduzidas diminuem as garantias para a defesa e proteção à saúde e ao meio ambiente em prol do interesse econômico.

Segundo o órgão ambiental, a função homologatória atribuída aos órgãos públicos federais relativamente ao que for apresentado pela iniciativa privada interessada no registro de agrotóxicos depõe contra o interesse público e a indelegabilidade do poder de polícia atribuído ao setor regulado.

Conforme o Ibama, “não pode o Estado renunciar aos seus mecanismos de avaliação e controle prévio de substâncias nocivas ao meio ambiente, contentando-se apenas com o ato homologatório de uma avaliação conduzida pelo particular, distante do interesse público”[5].

O Brasil já é considerado um país extremamente permissivo em face da liberação e uso de agrotóxicos. Tanto é assim que diversos produtos dessa natureza são utilizados aqui embora sejam vedados nos Estados Unidos e na Europa em razão dos riscos que causam. Dos 50 agrotóxicos mais utilizados no país, 22 são vedados nos países europeus[6].

Se já é assim, por qual razão existe um grande risco de ser aprovada uma legislação ainda mais flexível e, paralelamente, prejudicial à vida, à saúde e ao meio ambiente, ou seja, a direitos fundamentais que deveriam ser respeitados pelo ordenamento jurídico brasileiro e pelos órgãos públicos responsáveis por zelar por seu cumprimento?

O PL foi apresentado em 2002 pelo atual ministro da Agricultura, Blairo Maggi. Alguns anos atrás, quando era governador de Mato Grosso e ostentava o status de maior produtor de soja do mundo, Maggi foi eleito o “Motosserra de Ouro” em pesquisa promovida pelo Greenpeace[7].

Segundo o maior jornal de finanças da Europa, o britânico Financial Times, 46% da Câmara dos Deputados brasileira e mais de 1/4 dos senadores compõem a bancada ruralista[8].

Talvez essas informações expliquem os motivos do andamento de propostas dessa natureza neste momento histórico, e não causará admiração que o PL hostilizado venha a ser aprovado pelo parlamento e chancelado pelo Executivo, permitindo que tenhamos facilitado o registro de novos agrotóxicos e, assim, que seja ampliada a utilização desses produtos químicos no Brasil.


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    é promotor de Justiça no MP-RS, graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Civil e mestre em Direito Ambiental. Foi professor de graduação universitária e atualmente ministra aulas em cursos de pós-graduação e extensão. Integra a Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente. É autor dos livros Visão Jurídica da Água e Gestão da Água e Princípios Ambientais.

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