Opinião

ADI 5.595 e o real papel do controle de constitucionalidade

Autor

  • Vanice Valle

    é professora da Universidade Federal de Goiás visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School pós-doutora em administração pela Ebape-FGV doutora em Direito pela Universidade Gama Filho procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

22 de setembro de 2017, 7h20

Os leitores da ConJur já tiveram oportunidade, desde a notícia inaugural em 31/8[1] e também por meio dos artigos de Fernando F. Scaff[2], Élida Graziane[3] e Ingo Sarlet[4] de tomar conhecimento do deferimento pelo ministro Ricardo Lewandowski de medida cautelar para suspender os efeitos dos artigos 2º e 3º da Emenda Constitucional 86, eis que (em síntese que não faz jus à argumentação ali desenvolvida) violadores do princípio de vedação ao retrocesso social no que toca à proteção ao direito fundamental à saúde.

A decisão é especialmente significativa em si, e no que traduz de uma possível tendência no âmbito do Supremo Tribunal Federal, de recepção de um aspecto do debate em torno da efetividade dos direitos fundamentais, que restava negligenciado, a saber, aquele do financiamento da dimensão prestacional derivada destes mesmos direitos.

O tema já me ocupou em ocasião anterior onde indiquei que o espaço do orçamento público era aquele negligenciado no esforço de efetividade dos compromissos de transformação propostos pela Carta de 1988 por meio dos direitos fundamentais.[5] A notícia veiculada nos textos dos autores já referidos — de um debate em torno da subsistência de objeto do controle abstrato de constitucionalidade tendo em conta a promulgação no curso do debate da Emenda 95/16 que teria modificado o paradigma eleito ao controle — me permite abordar um traço que entendo deva caracterizar em especial essa nova tendência da corte na defesa da Constituição, a saber, a necessária resiliência no exercício da jurisdição constitucional em abstrato, especialmente no tema do direito financeiro.

O sistema brasileiro de controle abstrato de constitucionalidade foge do modelo mais frequente, e adota vias de ação específicas para seu exercício — ADI, ADIO, ADC, ADPF. A opção soa em alguma medida anacrônica, eis que atrai um possível viés de formalismo quanto à adequação da medida manejada, que se revela incompatível com um sistema que, pretendendo a tutela em abstrato da constitucionalidade das leis, protege a integridade do ordenamento jurídico e, portanto, reforça a lógica de previsibilidade e estabilidade reclamadas pela segurança jurídica. Excessivo apego ao formalismo no que toca às vias de ação no exercício do controle abstrato pode conduzir ao adiamento de um debate em torno de iniciativa legislativa viciada de raiz (nisso se incluindo emendas constitucionais) pela simples circunstância de que, num sistema complexo, optou-se pela via de ação equivocada. Essa tendência já se verificou na corte em passado mais remoto, com decisões puramente extintivas de demandas provocadoras do controle abstrato, pela simples inadequação formal da demanda proposta.

No tema do direito financeiro, a questão pode se revelar ainda mais sensível. Isso porque os fenômenos pretendidos regrar pelas normas reguladoras da dimensão financeira da ação estatal são muitas vezes dinâmicos — e assim, a sucessão de normas é possível, se não comum. O debate indicado por Fernando F. Scaff, Elida Graziane e Ingo Sarlet em torno da subsistência do interesse processual no controle de constitucionalidade da Emenda 86/2015, eis que supostamente alcançada pela Emenda 95/2016 traduz exatamente esse tipo de ocorrência. Em tempos de crise econômica e fiscal, sucedem-se as emendas constitucionais, e depois de ajuizada a ADI 5.595, tem-se a promulgação da Emenda 95 antes que se tenha alcançado a já requerida manifestação judicial.

A abordagem dessa temática, a meu sentir, pressupõe uma compreensão teleológica do sistema de controle de constitucionalidade, especialmente aquele que se desenvolve na modalidade abstrata. Cuida-se nesse terreno, de assegurar meios de debate no que toca à coerência interna do sistema de normas; e isso se faz não só para manter a sua higidez e coesão sistêmica, mas também para orientar a produção normativa futura. A legitimidade do exercício da jurisdição constitucional em abstrato repousa também no que ela potencializa de relações de colaboração entre Judiciário e Legislativo; o primeiro indicando ao segundo qual seja a sua esfera de não-decidibilidade, quais sejam as escolhas que a Constituição não lhe permite fazer. É nesse tipo de relação que se tem materializado, não a negação do princípio do equilibro entre os poderes, como denunciado pelos contrários à jurisdição constitucional; mas a consagração da harmonia entre eles, segundo componente do preceituado no artigo 2º CF.

Sensível a essa compreensão do papel da jurisdição constitucional em abstrato, tem o STF flexibilizado o sistema, com a aplicação do princípio da fungibilidade entre as demandas que o integram, tudo para viabilizar o conhecimento e o debate do tema proposto pelo arguente, independente da perfeita adequação formal entre a via de ação manejada e aquela que se revelaria mais adequada no momento de apreciação da demanda pela corte.

Proclamando a fungibilidade, já se empreendeu à conversão de ADIO em ADI; e a partir do artigo 23 da Lei 9.868/99, proclama-se intercambiáveis também a ADC e ADI. A superveniência de alteração no paradigma evocado pela ADI 5.595 como base do controle poderia sugerir a remessa do debate ao campo da ADPF — modalidade subsidiária para o controle de constitucionalidade em abstrato. Essa possibilidade já se teve por analisada pelo STF. Os precedentes no tema são pelo menos dois: 1) a ADI 4.180[6], ajuizada originalmente como ADPF e processada como ação direta de inconstitucionalidade eis que os preceitos fundamentais indicados como violados oportunizariam a ação específica; e 2) a ADI 4.163[7], onde se discutia a inconstitucionalidade de preceito de Constituição estadual, contrastado com dispositivo constitucional federal alcançado por emenda no curso do processamento. As duas decisões expressam uma revisão de tendência anterior, mais apegada ao formalismo.[8] Examinando a ADI 4.163, destacou o ministro Cesar Peluzo, ter-se na hipótese da modificação do paradigma de controle, o domínio típico de incidência do caráter subsidiário da ADPF, tudo em perfeita harmonia com o prestígio à ordem jurídica objetiva. A aplicação do princípio da fungibilidade, e o processamento como ADPF revelar-se-ia meio eficaz de sanar a violação à integridade do sistema normativo, dirimindo a controvérsia com os efeitos amplos e gerais que são típicos da ação abstrata.

O raciocínio pró-fungibilidade das ações de controle abstrato em favor da preservação da integridade do sistema parece ainda mais adequado quando se cogita de debate em torno da atividade financeira do Estado, onde a tendência à dinâmica das normas decorre do próprio modelo constitucional quando delineia a tríade orçamentária.

É certo que não se tem na ADI 5.595 uma discussão de norma infraconstitucional — donde sempre se poderia sustentar que o tema da dinâmica não se poria com a mesma intensidade. É a realidade dos fatos que se incumbe de refutar o argumento, eis que a Emenda controlada (86) data de 2015, e a alegada modificação no paradigma decorre da Emenda 95, datada de 2016.

De outro lado, a aplicação também à ADI 5.595 dos precedentes já havidos no campo da fungibilidade determinaria pelo menos dois efeitos práticos muitos relevantes para a preservação da constituição como sistema, com direito fundamentais devidamente sustentados por uma adequada moldura da atividade financeira do Estado.

O primeiro efeito seria o enfrentamento de uma questão que é prejudicial lógica a todas as medidas de ajuste fiscal que se tem em curso, que é aquele dos limites à atividade legislativa relacionados à eventual incidência do princípio da vedação ao retrocesso social. Ainda que não se extraísse da ADI 5.595 uma ampla matriz de compreensão dessa intrincada relação entre vedação ao retrocesso e as rudes realidades dos fenômenos econômicos (que não se compadecem da constituição); a preservação do debate permitirá um início de construção incremental, de uma melhor compreensão dessa mesma interseção.

Segundo efeito relevante pode ser a apuração de valores intertemporal e constitucionalmente vocacionados ao custeio das ações de saúde, e não afetos a essa mesma finalidade por força da vigência da sistemática controlada, a saber, aquela trazida pela Emenda 86. Esse não é um resultado desimportante quando se tem em conta que especialmente no campo da saúde, despesas de custeio andam par e passo com aquelas de capital. Assim, não é o já transcurso dos exercícios orçamentários onde se carreou à saúde recursos em menor monta que dispensa o debate; saldos identificados em favor de Estados e Municípios podem oportunizar o investimento em manutenção e renovação de uma rede pública sempre pressionada pela procura, ademais da repercussão inegável sobre a base de cálculo do piso federal em saúde para os próximos 19 anos.

Não deve impressionar a quem se aproxima do importante debate trazido pela ADI 5.595, o argumento formalista da perda de objeto por superveniência de alteração no paradigma. O tema se resolve pela aplicação de precedentes já constituídos na matéria, que privilegiam o controle sobre a forma. Isso aliás, é o que se pode reclamar de uma Corte Constitucional, sempre tão ciosa em afirmar a aplicabilidade dos direitos fundamentais — e que não pode negligenciar da verdade auto evidente de que essa proclamação reclama financiamento.

De outro lado, esse ingresso no mundo do direito financeiro por uma Corte Constitucional até bem pouco tempo avessa a esse debate deve se dar sob forte influência de pelo menos dois signos: visão sistêmica e ação dialógica.

A visão sistêmica — isso bem o sabe qualquer aprendiz de direito financeiro — é premissa para a sua compreensão. A atividade financeira do Estado não se desenvolve numa miríade de ações individuais; ela é um todo com profundas interseções recíprocas, onde o excesso de um lado determina a falta de outro. Por isso, não se pode tratar o tema do financiamento da saúde sem ter em conta que a matriz de regência que ali se construa se aplicará e afetará outras áreas igualmente revestidas de jusfundamentalidade.

A ação dialógica deve marcar igualmente essa nova fronteira do controle judicial da ação pública. Já se afirmou acima o caráter necessariamente relacional da equação de finanças públicas; antecipar os efeitos das decisões (e com isso afastar-se como possibilidade aquelas que na visão geral se ponham como nefastas) afigura-se como um componente indispensável não só para a correção da prestação jurisdicional que se entrega, mas sobretudo para que a oferta da jurisdição não reste puramente retórica, ou pior ainda, regressiva.


[2] SCAFF, Fernando Facury. Emenda orçamentária 86 foi declarada inconstitucional. E daí?. CONJUR, 5 de setembro de 2017, disponível em <http://www.conjur.com.br/2017-set-05/contas-vista-emenda-orcamentaria-86-foi-declarada-inconstitucional-dai>, acesso em 18 de setembro de 2017.

[3] PINTO, Elida Graziane. STF reconhece o "direito a ter o custeio adequado de direitos" na ADI 5.595. CONJUR, 12 de setembro de 2017, disponível em <http://www.conjur.com.br/2017-set-12/contas-vista-stf-reconhece-direito-custeio-adequado-direitos-adi-5595>, acesso em 17 de setembro de 2017.

[4] SARLET, Ingo Wolfgang. ADI 5.595 e a garantia do custeio dos direitos – uma vitória de Pirro? CONJUR, 15 de setembro de 2017, disponível em <http://www.conjur.com.br/2017-set-15/direitos-fundamentais-adi-5595-garantia-custeio-direitos-vitoria-pirro.

[5] VALLE, Vanice Regina Lírio do Valle. Função administrativa e orçamento: o espaço negligenciado de efetividade dos direitos fundamentais. in GUERRA, Sergio e FERREIRA JR., Celso Rodrigues (coord.). Direito Administrativo: estudos em homenagem ao Professor Marcos Juruena Villela Souto. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2015, p. 397-418.

[6] ADI 4180, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 11/09/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-195 DIVULG 06-10-2014 PUBLIC 07-10-2014)

[7] ADI 4163, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 29/02/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-040 DIVULG 28-02-2013 PUBLIC 01-03-2013

[8] ADI 3648, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, decisão monocrática, julgado em 28/01/2009, publicação DJe-024 DIVULG 04/02/2009 PUBLIC 05/02/2009

Autores

  • Brave

    é professora de pós-graduação da Universidade Estácio de Sá, vinculada à linha de pesquisa Direitos Fundamentais e Novos Direitos. Visiting Fellow no Human Rights Program da Harvard Law School. Pós-doutora em Administração pela EBAPE/FGV-Rio. Doutora em Direito pela Universidade Gama Filho. Procuradora do Município do Rio de Janeiro.

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