Limite Penal

Saldão penal e a popularização da lógica da colaboração premiada pelo CNMP

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

22 de setembro de 2017, 8h00

Spacca
A experiência da Justiça Negociada (em especial delação) no Brasil se formou não com base nas regras explícitas, mas em hábitos e práticas construídas intuitivamente por meio das regras negociais do mercado de compra e venda, no caso de informações. É sabido, inclusive pela conhecida experiência alemã, que a consolidação do instituto a partir da prática-forense gera inúmeros problemas em razão do conflito law in action com o law in book.

Os agentes procedimentais operam a partir da lógica econômica do custo/benefício, atendendo a motivações/recompensas individuais, na amplitude negocial que o jogo proporcionou[1]. Qualquer observador minimamente sério do fenômeno da delação já se deu conta de que se trata de uma experiência única, protagonizada pela operação “lava jato” e que gerou, no primeiro momento, perplexidade.

Do lado do delator, seu produto ou capital informacional deve interessar ao comprador estatal, associando-se na finalidade de obterem ganhos em face do acordo. Enquanto o Estado usa a fonte de informação contra o delator e terceiros, este beneficia-se do desconto ou isenção da pena. A capacidade de associação para o fim de buscarem o resultado favorável aos negociantes depende de um intrincado mecanismo de convergência, até o ponto em que há interesses recíprocos e capazes de gerar acordos. É preciso criar, a partir de um complexo emaranhado de situações, as condições de possibilidade da negociação e do posterior acordo. O pressuposto de acordo, todavia, é o nível de confiança da manutenção da palavra e dos termos pactuados.

Com o decorrer do tempo e reflexão democrática, há um esforço por redesenhar o dispositivo da delação (até porque construído a partir da práxis-forense, também sendo por essa via alterado) para garantir de um lado a eficácia na descoberta e responsabilização de condutas criminalizadas graves, especialmente a corrupção, bem assim estabelecer um standard normativo capaz de evitar o protagonismo negocial irrestrito, em que tudo passa a ser objeto de compra e venda. O momento é sensível, porque se trata de acomodação democrática de significantes inovadores do modo como se produz verdades, acordos, direitos e garantias, informada por lógica distinta.

De toda forma, a tendência é que o processo negocial cada vez mais sofra modulações em face da incidência de garantias fundamentais do submetido, ainda que não mais as pensadas pela modernidade continental e as categorias tradicionais do processo penal. Realinham-se os limites éticos de boa-fé, fair play, da vedação de comportamentos procedimentais contraditórios (venire contra factum proprium), atributos típicos do Estado Democrático de Direito. Isso porque a confiança depositada, com esteio normativo, pelo submetido – seja delator ou não – precisa contar com mecanismos mínimos de boa-fé em ato, a saber, no reconhecimento de poderes para contrair deveres e obrigações por parte dos que representam a coisa pública.

Acordo de não persecução e a lógica da negociação
O vaticinado “fim do processo vintage” que Alexandre Morais da Rosa vem indicando, com a substituição pela lógica consensual, de fato se verifica com a iniciativa do Conselho Nacional do Ministério Público na Resolução CNMP 181, de 7 de agosto de 2017 que, como instituição, estendeu a possibilidade de formalização de acordo de não persecução penal para todos os crimes (desde que não praticados com violência ou grave ameaça). Sem adentrar na análise da constitucionalidade/legalidade[2], queremos aqui referenciar a mudança pela qual o processo penal brasileiro passa. É interessante observar o giro paradigmático que a operação “lava jato” provocou na concepção de processo, pois, não por acaso, é nesse contexto que o órgão máximo administrativo do Ministério Público intentou permitir a seus membros o manejo do acordo.

A partir da lógica econômica do custo/benefício, esse elastecimento das formalidades processuais para a “formação da culpa” reflete-se para os demais delitos (sem violência ou ameaça à pessoa), ampliando a gama de investigados/acusados que podem contar com essa possibilidade; a justificativa relacional se faz diante do espetáculo da “lava jato”.

É a popularização do acordo penal, ainda que ao arrepio do Princípio da Legalidade e da usurpação da competência do Poder Legislativo para legislar sobre matéria processual penal (com o qual não concordamos). Saldão da liberdade, com a responsabilidade da reparação e/ou do cumprimento de requisitos. De iniciativa do próprio órgão acusatório, a benefício do acusado ou conduzido (o acordo pode ser feito na audiência de custódia) que poderá decidir, afinal, se o aceita ou não, devendo ser assistido por advogado.

Sempre questionamos o oferecimento de denúncias por parte do Ministério Público em que não há trade-off[3] — em que o custo do processamento é muito superior ao do resultado efetivo. Frisamos efetivo porquanto se trate de ações em que a possibilidade de localização do acusado era ínfima; testemunhas etc. O custo da “rolagem” do processo natimorto é altíssimo. A resolução do CNMP inova justamente por oferecer solução para diversas situações: a imensa gama de crimes “menores”, mas cujo efeito social não é de nenhuma maneira menor.

O critério é de exclusão: todos os crimes sem violência ou grave ameaça. Analisando a ampla gama de crimes, inclusive crimes cujos protagonistas sejam autoridades públicas, pode-se entrever, talvez, a tendência de absorver na lógica da delação premiada as condutas delitivas que não se enquadrem na organização criminosa. Mantida, todavia, a dinâmica da seleção e etiquetamento tão bem denunciada pela Criminologia Crítica (Baratta, Vera Andrade, Juarez Cirino dos Santos, Zaffaroni, Salo de Carvalho, dentre outros).

Ou seja, ainda que não se tenha processo penal, com todo o lastro de garantias constitucionais que lhe fundamentam, tem-se um negócio realizado pelo Estado, e exatamente nessa qualidade incidem inúmeros princípios. Se trata de um fato jurídico em que devem prevalecer os fundamentos principiológicos do ordenamento jurídico que regem a interação humana, ainda mais quando uma das partes é o próprio Estado.

Assim, toda a sorte de garantias tendentes a evitar a má-fé e o logro nas interações sociais aplicadas aos contratos em geral incidem nessa nova modalidade, ainda que o objeto do negócio seja a obtenção de informações e provas, ou mesmo a culpa. Voltaremos a analisar a Resolução em novas colunas, especialmente a importância de saber jogar o jogo conforme as recompensas do acusador, inclusive a produção de provas que poderá ser utilizada ou não em outros campos (administrativo ou civil).

Protagonismo dos negociadores
De qualquer forma, os representantes da coisa pública penal, também, devem prestar contas de seus atos a instâncias de controle. O paradoxo é o de que o controle, no caso da delação e do acordo de não-persecução, se dá a posteriori, tendo-se percorrido à margem da Jurisdição todo o percurso do procedimento. Com isso, exige-se cada vez mais lealdade e probidade dos negociadores em nome do Estado. Mas as regras que regulamentam os limites da delação e do acordo de não-persecução são muito opacas, dando ensejo ao protagonismo dos negociadores, gerando certa perplexidade aos observadores externos não iniciados no novo mecanismo de investigação e de acordos penais.

Os juristas desatualizados insistem em excluir os institutos da Justiça Negociada do ambiente processual brasileiro, lutando por manter a ilha moderna do processo penal e o fetiche pela decisão penal de mérito como o único mecanismo de descoberta e de produção de sanções estatais. Precisamos caminhar para construção de garantias mínimas sobre o conteúdo do objeto penal na nova perspectiva (irreversível, por enquanto) da Justiça Negocial, porque sem maiores discussões, a porta da manipulação e da seletividade penal permanecerá aberta.


[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Teoria dos Jogos e Processo Penal. Florianópolis: Empório Modara, 2017.
[2] CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. O acordo de não-persecução penal criado pela nova Resolução do CNMP. http://www.conjur.com.br/2017-set-18/rodrigo-cabral-acordo-nao-persecucao-penal-criado-cnmp; MOREIRA, Rômulo de Andrade. No país das Resoluções e  Enunciados, quem precisa de lei. http://emporiododireito.com.br/no-pais-das-resolucoes-e-dos-enunciados-quem-precisa-de-lei-por-romulo-de-andrade-moreira/
[3] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, especialmente Capítulo 9º.

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    é doutor em Direito Processual Penal, professor titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

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    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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