Opinião

Liminares sobre auxílio-moradia comemoram três anos

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12 de setembro de 2017, 7h38

Há três anos, em 15 de setembro de 2014, o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, proferiu isoladamente decisões liminares que concederam irrestritamente o famigerado auxílio-moradia a todos os juízes brasileiros no valor mensal de R$ 4.377,73.

Desde então, o referido magistrado tem se negado a permitir que seu tribunal aprecie suas decisões, seja para referendá-las, seja para reformá-las, em descumprimento da regra expressa constante do inciso IV do artigo 21 do Regimento Interno do seu tribunal.

Em artigo publicado no ano passado para registrar o biênio de tais decisões liminares, buscamos trazer à discussão pública um problema bastante grave. Indagamos à época “como a sociedade se tornou refém e inteiramente indefesa diante de uma decisão unipessoal de apenas um ministro do STF, dada em usurpação da competência do colegiado?” (leia aqui [1]). Na ocasião, pontuamos que a falta de controles efetivos sobre as condutas funcionais dos membros do STF indicaria que nosso sistema jurídico encontra-se sobremodo doente, e que os ideais da cidadania, em rigor, não passam de ideais.

De um ano para cá, nada ou quase nada mudou… para melhor, verdade seja dita. Bem pelo contrário, o quadro de disfuncionalidade institucional agravou-se a ponto de ser captado pela Fundação Getúlio Vargas, na edição de 2017 do Índice de Confiança na Justiça. Conforme noticiado pela Conjur (ler aqui [2]), o percentual da população que considerava o Ministério Público e o Judiciário “confiáveis” oscilou respectivamente de 44% e 30% (em 2016) para 28% e 24% (em 2017).

Para além da péssima reputação desde sempre partilhada pela classe política ocupante de cargos no Legislativo e no Executivo, a novidade que salta aos olhos da pesquisa da Fundação Getúlio Vargas é a percepção de que também o sistema de justiça brasileiro encontra-se, aos olhos da população, igualmente doente. E isso apesar do retumbante sucesso de público da operação “lava jato” e do sempre recorrente discurso retórico de que, no Brasil, “as instituições estão funcionando”, repetido inúmeras vezes dolosamente por “autoridades” e “especialistas” para confundir a sociedade e conformá-la, entorpecida, numa situação em que a cidadania nada vale.

É evidente que as liminares sobre auxílio-moradia não determinaram sozinhas tamanho processo de deslegitimação social das nossas instituições. E, bem vistas as coisas, essas liminares inserem-se num antigo processo de enfraquecimento do Legislativo e do Executivo, paralelamente ao fortalecimento desmedido do Judiciário, que pouco a pouco foi assumindo as funções de legislar, de fiscalizar e de escolher as políticas públicas, desbalanceando a equação dos Poderes[3].

Aliás, as decisões do ministro Luiz Fux vieram ao mundo como uma criativa reação a comportamentos no mínimo controversos da chefia do Executivo que, nos anos anteriores, achara-se competente para ajustar discrionariamente as propostas orçamentárias do Judiciário, em usurpação de uma tarefa tipicamente legislativa. Em 2011, por exemplo, em razão dos ajustes unilaterais promovidos pelo Executivo, diversas demandas judiciais foram promovidas por entidades representativas do Judiciário e do Ministério Público [4], anunciando o agravamento de uma crise político-institucional que explodiria anos mais tarde no âmbito da qual se insere a concessão monocrática do auxílio-moradia em 2014.

Com efeito, descurando que a Constituição só permite que o Executivo promova ajustes nas propostas orçamentárias do Judiciário nos estritos casos de inadequação com a lei de diretrizes orçamentárias, as alterações executivas unilaterais de 2011 foram justificados, nos autos da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 240, diante “do iminente agravamento da crise econômica internacional, com reflexos no Brasil, por questão do equilíbrio orçamentário e pela indispensabilidade da implementação de políticas públicas essenciais nos âmbitos da saúde, educação e redução da miséria”, elementos esses que poderiam ser sustentados com grande probabilidade de sucesso pela ampla maioria parlamentar de que dispunha o governo de então no Congresso Nacional.

Uma vez frustradas as propostas orçamentárias do Judiciário logo no seu nascedouro por ato unilateral do Executivo, o reajuste na remuneração dos magistrados, que deveria ocorrer por lei, discutida pelo Legislativo, precisava, de alguma outra forma, ser aprovado. E foi, como se viu, na forma das decisões judiciais unilaterais que, em 2014, concederam o muito debatido e repudiado auxílio-moradia, que até mesmo no âmbito da magistratura é admitido como uma forma transversa de obter o esperado reajuste que não fora possível obter de forma ortodoxa[5].

Não deveríamos nos espantar, portanto, com a profusão de auxílios de todas as sortes que foram sendo concedidos aos membros do Judiciário e do Ministério Público nos últimos anos, pois o observador da crise orçamentária-institucional dos primeiros anos da década de 2010 já poderia antever que a temeridade do Executivo não ficaria sem a devida reação. Mais cedo ou mais tarde ela viria, com a mesma intensidade e com sentido oposto, como explica a Física. O auxílio-moradia, nesse contexto, não passa do produto mais célebre de uma gravíssima crise político-institucional que abarca rigorosamente todos os poderes e funções do Estado brasileiro.


[3] A propósito do tema, um dos autores desse artigo defendeu em texto publicado na Conjur a necessidade de aprovação de emenda constitucional que garanta expressamente ao Legislativo o poder de sustar atos normativos de quaisquer poderes e funções estatais que exorbitem da função regulamentar, como forma de aperfeiçoar o sistema de freios e contrapesos: http://conjur.com.br/2015-ago-25/congresso-poder-derrubar-atos-normativos-judiciario.

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