Opinião

STF e STJ divergem a respeito do crime de dispensa ilegal de licitação

Autor

  • Raul Marques Linhares

    é advogado criminalista doutorando e mestre em Direito Público sócio do Ritter Linhares Advocacia Criminal e Consultoria e parecerista especialista em lavagem de dinheiro.

6 de setembro de 2017, 7h49

No dia 30 de agosto deste ano, foi deflagrada pela Polícia Federal mais uma operação (cancela livre) investigando a ocorrência, dentre outros crimes, de dispensa/inexigibilidade ilegal de licitação, o que teria ocorrido no Rio Grande do Sul, mas com mandados de busca e apreensão cumpridos também no Paraná e em São Paulo.

Tipificada no artigo 89 da Lei de Licitações,[1] essa prática delitiva, além de não ser incomum no país, é também o reflexo de entendimentos divergentes nos tribunais superiores. Além de se encontrar opostos posicionamentos em relação à necessidade de um especial fim de agir para a configuração do crime (intenção de lesionar o erário), o principal ponto de debate é a natureza dessa figura delitiva em relação à necessidade ou não de produção de um resultado específico, qual seja a lesão ao erário.

A própria doutrina, ao tratar do tema, assume a complexidade dessa matéria. O desembargador federal Leandro Paulsen, por exemplo, após entender que o tipo penal inexige qualquer resultado material e que, por isso, se estaria diante de um crime formal (contudo, referenciando autores adeptos de ambos os posicionamentos), admite que “[…] há bastante controvérsia sobre esse ponto.”[2]

Essa mesma controvérsia se estende ao Judiciário brasileiro, destacadamente às cortes superiores, já que no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal se encontram posicionamentos opostos em relação à matéria.

No Superior Tribunal de Justiça, parece prevalecer o entendimento no sentido de que é indispensável a lesão ao erário para a configuração do crime de dispensa/inexigibilidade ilegal de licitação, caso contrário sequer se poderia pensar em tipicidade objetiva por ausência de requisito essencial. Em decisão proferida em ação de habeas corpus, julgada no dia 3 de agosto do presente ano, foi consignado pelo ministro Reynaldo Soares da Fonseca que “O crime de fraude à licitação exige não só o prejuízo ao erário, mas também o dolo específico.”[3]

Esse entendimento é reiterado na 5ª Turma do STJ, destacando-se, aqui, também a decisão proferida no recurso em Habeas Corpus 49.627/RN, no qual houve o trancamento da ação penal por inépcia da denúncia. Na inicial acusatória, o Ministério Público defendeu a desnecessidade de comprovação do prejuízo ao erário e do dolo específico para a configuração do crime licitatório.[4] Diante disso, em decisão unânime, o ministro relator manifestou o mesmo entendimento anteriormente transcrito, reportando-se a julgado da Corte Especial desse tribunal, nos seguintes termos:

“Com efeito, no julgamento da Ação Penal originária 480/MG, em 29/3/2012, a Corte Especial acolheu, por maioria, a tese de ser imprescindível a presença do dolo específico de causar dano ao erário e a demonstração do efetivo prejuízo para a tipificação do crime previsto no artigo 89 da Lei 8.666/1993.”[5]

É interessante notar que, nessa decisão, foi feita menção expressa, pelo ministro relator (seguido à unanimidade por seus pares), ao entendimento “firme” do Supremo Tribunal Federal no mesmo sentido (pela necessidade de demonstração do prejuízo ao erário).[6]

Entretanto, quando do julgamento de outra ação de Habeas Corpus (384.302/TO), igualmente da 5ª Turma (composição idêntica à da decisão anterior,[7] mas, agora, sob relatoria do ministro Ribeiro Dantas), julgado apenas 19 dias antes da decisão anteriormente mencionada, afirmou-se entendimento completamente oposto. Nesse julgado, conquanto se trate de caso relativo ao artigo 90 da Lei de Licitações,[8] fez-se referência também expressa à “jurisprudência dominante” do Supremo Tribunal Federal em relação ao artigo 89 da Lei, agora no sentido da desnecessidade de comprovação do prejuízo ao erário para a consumação do delito. Nos termos da ementa da decisão:

“5. Advirta-se que sequer é possível invocar jurisprudência relativa ao crime de dispensa ou inexigibilidade ilegal de licitação (Lei n. 8.666/1993, art. 89, caput), haja vista ser a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal no sentido da desnecessidade da prova do dano ao erário, mas apenas o dolo específico de causar prejuízo ao erário.”[9]

Embora tenha sido adotado, no prazo de 19 dias e pelos mesmos ministros, dois entendimentos opostos, não se deve descuidar de que o objeto principal da decisão proferida no Habeas Corpus 384.302 (no qual se afirmou a desnecessidade de lesão ao erário) não era propriamente o artigo 89 da Lei de Licitações, mas o seu artigo 90 — analisando-se o artigo 89 de maneira reflexa. Além disso, predomina nesse tribunal o entendimento de que o prejuízo ao erário é um elemento essencial do delito em exame, o que ocorre não só em julgados da 5ª Turma.[10]

No Supremo Tribunal Federal, por sua vez, transparece uma divisão de entendimentos entre a 1º e a 2ª turmas, cada qual seguindo um sentido diferente.

Primeiramente, em julgamento da 2ª Turma,[11] o relator, ministro Gilmar Mendes, firmou seu entendimento pela necessidade de comprovação tanto do dolo específico, quanto da lesão ao erário para a configuração do crime licitatório. Em suas palavras: “[…] para configuração da tipicidade material do crime do artigo 89 da Lei 8.666/93, são necessários elementos adicionais. A jurisprudência interpreta o dispositivo no sentido de exigir o prejuízo ao erário e a finalidade específica de favorecimento indevido como necessários à adequação típica”[12]

A ministra Cármen Lúcia manifestou o mesmo entendimento[13] e os demais ministros (Celso de Mello, Dias Toffoli e Teori Zavascki) apenas acompanharam o voto do relator, não se pronunciando expressamente a respeito da matéria.

Por sua vez, em julgamento da 1ª Turma, a ministra Rosa Weber entendeu por ser desnecessário o prejuízo ao erário: “O delito do artigo 89 da Lei 8.666/93 exige, além do dolo genérico — representado pela vontade consciente de dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses legais —, a configuração do especial fim de agir — consistente no dolo específico de causar dano ao erário. Desnecessário, contudo, o efetivo prejuízo patrimonial à administração pública.”[14]

Nesse mesmo julgamento, também o ministro Marco Aurélio deixa claro que desimporta ter havido qualquer prejuízo para a Administração Pública. Ou seja, que o crime se consuma com a simples dispensa ilegal de licitação, mesmo que os preços nele praticados sejam os de mercado, por isso entendendo se tratar de crime formal.[15]

Os demais ministros que participaram do julgamento (Luís Roberto Barroso, Edson Fachin[16] e Luiz Fux), em seus votos, não problematizam a matéria aqui analisada, mas a exigência ou não de dolo específico para a tipificação.

Apesar dessa divisão de entendimentos entre ambas as turmas do STF, mesmo na 1ª Turma, que fixou entendimento pela natureza formal do crime licitatório, se encontra sinal de que a ocorrência de prejuízo ao erário é, mesmo que involuntariamente, lavada em consideração.

Em recente julgamento sobre essa temática (datado do dia 18 de abril de 2017), no Inquérito 3.753, foi rejeitada a denúncia por ausência de dolo específico. Contudo, o ministro relator, Luiz Fux, em algumas passagens de seu voto, demonstra valorar a inexistência de comprovação de prejuízo ao erário, conquanto não tenha declarado entender ser esse um elemento essencial do tipo. Em suas palavras, analisando a existência ou não de lesão: “[…] o Laudo Pericial elaborado pelo INC (fls. 863/880) não foi conclusivo quanto à discrepância de preços alegada na inicial. A título de exemplo, o Laudo comparou preços de softwares com capacidades distintas de processamento de dados e deixou de afirmar que o preço pago pela Secretaria de Educação, considerada a especificidade do software adquirido, estava ou não acima do preço de mercado. Ausente, portanto, qualquer indício material neste sentido.”[17]

Ou seja, inclusive onde o entendimento predominante parece ser o de que é formal o delito do artigo 89 da Lei de Licitações, encontram-se raciocínios que levam a crer que se trataria, na verdade, de um delito material, com a exigência da produção de uma lesão ao erário para que se possa afirmar a sua consumação — o que se verificaria, por exemplo, na discrepância de preços cobrados em relação àqueles praticados pelo mercado.

Nesse contexto, a operação cancela livre, deflagrada pela Polícia Federal no Rio Grande do Sul, além da própria complexidade que geralmente envolve os casos investigados no âmbito de contratos com a Administração Pública, nasceu e se desenvolverá cercada por incertezas jurídicas, o que é fruto da pluralidade de entendimentos (doutrinários e jurisdicionais) a respeito, por exemplo, do crime de dispensa/inexigibilidade ilegal de licitação.


[1] Lei 8.666/93, Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade: Pena – detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa. Parágrafo único. Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.

[2] PAULSEN, Leandro. Crimes Federais. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 162.

[3] HC 392.509/PR, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 03/08/2017, DJe 16/08/2017.

[4] Em suas palavras: “É cediço que o tipo penal estampado no artigo 89 da Lei 8.666/1993 traduz crime de mera conduta, não havendo a exigência, para a sua caracterização, da comprovação de especial fim de agir, é dizer, dolo específico de fraudar o erário ou de causar prejuízo à Administração. Com efeito, o crime se perfaz com a contratação da obra ou serviço sem licitação, isto é, com a mera dispensa ou afirmação de que a licitação é inexigível fora das hipóteses previstas em lei, tendo o agente a consciência dessa circunstância; não se exigindo qualquer resultado naturalístico para a sua consumação.”

[5] RHC 49.627/RN, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 20/06/2017, DJe 30/06/2017.

[6] “Assim, não obstante a ausência de disposição legal expressa, a jurisprudência desta Corte e do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que o tipo penal inscrito no art. 89 da Lei 8.666/1993 exige ‘o prejuízo ao erário e a finalidade específica de favorecimento indevido como necessários à adequação típica […].” (RHC 49.627/RN, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 20/06/2017, DJe 30/06/2017).

[7] Composição no julgamento do HC 49.627/RN, pena necessidade de demonstração do prejuízo ao erário: Ministros Reynaldo Soares Da Fonseca, Ribeiro Dantas, Joel Ilan Paciornik, Felix Fischer e Jorge Mussi. Composição no julgamento do HC 384.302/TO: Ministros Ribeiro Dantas, Joel Ilan Paciornik, Felix Fischer, Jorge Mussi e Reynaldo Soares da Fonseca.

[8] Lei 8.666/93, Art. 90. Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação: Pena – detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

[9] HC 384.302/TO, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 01/06/2017, DJe 09/06/2017.

[10] Exemplificativamente, veja-se decisão recente da Sexta Turma dessa Corte: “O Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento de que, para a configuração do crime de dispensa ou inexigibilidade de licitação fora das hipóteses legais – art. 89 da Lei n. 8.666/93 -, exige-se a presença do dolo específico de causar dano ao erário e do efetivo prejuízo à Administração Pública.” (AgInt no REsp 1582669/MG, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 30/03/2017, DJe 07/04/2017).

[11] AP 683, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 09/08/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-041 DIVULG 03-03-2017 PUBLIC 06-03-2017.

[12] Apesar de que, no presente caso, tenha sido verificado o prejuízo ao erário, já que realizada a contratação por valor aproximado de R$ 57.000,00 e, posteriormente, com a contratação de empresa diversa, para o mesmo objeto foi estabelecido o preço de, aproximadamente, 16.000,00. Apesar do prejuízo, ainda assim se decidiu pela inexistência de crime, por atipicidade da conduta, já que não foi demonstrado o dolo específico de causar prejuízo ao erário.

[13] “Ao interpretar esse dispositivo legal, o Supremo Tribunal Federal assentou que, para a caracterização de conduta penal relevante, além dos elementos constantes no art. 89 da Lei n. 8.666/1993, deve-se demonstrar a ocorrência de prejuízo ao erário e o dolo específico do agente em causar o dano.” (AP 683, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 09/08/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-041 DIVULG 03-03-2017 PUBLIC 06-03-2017).

[14] AP 580, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 13/12/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-139 DIVULG 23-06-2017 PUBLIC 26-06-2017.

[15] “Pouco importa tenha havido – e, no caso concreto, explicitou a Relatora que não houve –, ou não, prejuízo econômico-financeiro para Administração Pública. Pouco importa que o valor do contrato tenha observado os de mercado. Basta a ocorrência de dispensa para ter-se a incidência do preceito.” (AP 580, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 13/12/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-139 DIVULG 23-06-2017 PUBLIC 26-06-2017).

[16] Que em outro julgamento, expressa o mesmo posicionamento: “O crime do art. 89 da Lei 8.666/90 é formal, consumando-se tão somente com a dispensa ou inexigibilidade de licitação fora das hipóteses legais. Não se exige, para sua configuração, prova de prejuízo financeiro ao erário, uma vez que o bem jurídico tutelado não se resume ao patrimônio público, mas coincide com os fins buscados pela Constituição da República, ao exigir em seu art. 37, XXI, “licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes”. Tutela-se, igualmente, a moralidade administrativa, a probidade, a impessoalidade e a isonomia.” (AP 971, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, Primeira Turma, julgado em 28/06/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-217 DIVULG 10-10-2016 PUBLIC 11-10-2016).

[17] Em outra passagem: “A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal vem cristalizando a concepção de que, para o recebimento da denúncia por crimes licitatórios, é necessário demonstrar o dolo do Administrador de fraudar a lei, ou seja, a consciência de que a dispensa ou inexigibilidade, naquela situação, era proibida, e concomitantemente a vontade livre e consciente de causar o enriquecimento ilícito do contratado, com dano para o erário.” (Inq 3753, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 18/04/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-113 DIVULG 29-05-2017 PUBLIC 30-05-2017).

Autores

  • é advogado criminalista. Integrante do projeto de pesquisa Estado e Política Criminal: a expansão do Direito Penal como forma de combate ao terrorista. Coautor do livro O Crime de Terrorismo – Reflexões Críticas e Comentário à Lei de Terrorismo de acordo com a Lei n. 13.260/2016

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