Opinião

Direito à antecipação de precatório prestigia função social da lei

Autores

5 de setembro de 2017, 6h04

O artigo 100, parágrafo 2º da Constituição Federal permite que:

Os débitos de natureza alimentícia cujos titulares, originários ou por sucessão hereditária, tenham 60 anos de idade, ou sejam portadores de doença grave, ou pessoas com deficiência, assim definidos na forma da lei, serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos, até o valor equivalente ao triplo fixado em lei para os fins do disposto no § 3º deste artigo[1], admitido o fracionamento para essa finalidade, sendo que o restante será pago na ordem cronológica de apresentação do precatório.

Esse direito já se encontrava previsto com a edição da EC 62/2009, tendo sido revogado pela EC 94/2016, para abarcar dentre os titulares de débitos de natureza alimentícia não só os originários, mas igualmente os decorrentes de sucessão hereditária.

O parágrafo 2º, do artigo 100 da Constituição Federal, estabelece duas condições para a concessão do pagamento preferencial: (a) ser o crédito de natureza alimentar; e (b) ser o titular do crédito maior de 60 anos, portador de doença grave ou pessoa com deficiência, prevista em lei, na data da expedição de precatório.

Dispõe ainda, que o limite estabelecido para o adiantamento é o valor equivalente ao triplo do fixado para a Requisição de Pequeno Valor (RPV).

A EC 30/2000 alterou o artigo 100 da CF e acrescentou o artigo 78 no ADCT, autorizando que cada ente federativo pudesse estabelecer seu próprio critério de pequeno valor, que corresponde: a) 60 salários mínimos, perante a Fazenda Federal (artigo 17, § 1º, da Lei 10.259/2001); b) 40 salários mínimos, ou outro valor definido em lei local, perante a Fazenda dos Estados ou do Distrito Federal (artigo 87, I, do ADCT); e c) 30 salários mínimos, ou outro valor definido em lei local, perante a Fazenda dos Municípios (artigo 87, II, do ADCT).

O deferimento dessa preferência constitucional não sugere pagamento imediato, nem fracionamento ou mesmo expedição de RPV dessa parte do crédito, mas tão somente a inclusão do crédito a ser adimplido em lista preferencial, a ser pago sob precedência a todos os demais créditos.

Discute-se, no entanto, a interpretação da norma acerca do prazo para o pagamento desse adiantamento preferencial: se o valor referente ao triplo deve ser pago ainda no mesmo exercício da expedição do precatório, ou se somente na ausência de ordem orçamentária é que se aplicaria o benefício da prioridade.

Isso porque o constituinte não esclareceu expressamente que o tal adiantamento preferencial se daria no mesmo exercício da expedição, de modo a compatibilizar da melhor forma a prevalência dos princípios e direitos fundamentais e a efetiva e adequada aplicação da lei.

É certo que o relevante zelo com os idosos e gravemente enfermos, devido ao frágil estado de saúde e de vida, embora em tese fosse abreviado em relação aos demais credores, motivou o constituinte a admitir o adiantamento de até três vezes o valor da RPV, devendo ser pago, por óbvio, no mesmo exercício de sua expedição, exatamente para socorrê-los em suas dificuldades provenientes da idade avançada ou doença, ainda em vida. No caso da Justiça Federal, essa antecipação equivaleria a cerca de R$ 168 mil, de acordo com o salário mínimo vigente. O restante do crédito, se houvesse, seguiria pelo rito da ordem cronológica.

Omitir essa preferência ofende diretamente a solidariedade dos entes federativos em colisão aos direitos fundamentais sobre aqueles de ordem patrimonial, pois o Estado não pode se furtar do dever de assegurar os meios imprescindíveis ao direito à vida e a saúde dos cidadãos.

O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do AgRg no RMS 41.510/RO, de relatoria do ministro Napoleão Nunes Maia Filho, assentou o entendimento de que o Poder Judiciário pode, sem que fique configurada violação ao princípio da separação dos Poderes, determinar a implementação de políticas públicas nas questões relativas ao direito constitucional à saúde e à vida. Esse entendimento pressupõe que, estando em choque o direito à vida ou saúde em contraposição aos interesses secundários do Estado, o juízo de ponderação que prevalece é o da preservação do direito à vida – "bem por demais valioso" –, não podendo, em hipótese alguma, ser tratado no plano meramente financista dos interesses estatais.[2]

Em resposta à Consulta 0005210-42.2012.2.00.0000, formulada pelo TJ-CE, o Plenário do CNJ firmou posicionamento de que, segundo a norma constitucional, o pagamento de parcela prioritária antes do restante do precatório não só é possível como é desejável: “Procedimento diverso, qual seja, efetuar o pagamento da parcela prioritária no mesmo momento da parcela não prioritária, significa não estabelecer nenhuma prioridade entre tais parcelas”, diz o voto do relator conselheiro Carlos Eduardo Dias, acompanhado por unanimidade pelos conselheiros da 6ª Sessão do Plenário Virtual.[3]

O parecer técnico esclareceu ainda que, nos casos de recebimento da parcela prioritária, o Fórum Nacional de Precatórios do Conselho Nacional de Justiça (Fonaprec) sugere que o tribunal elabore uma sublista de parcelas prioritárias, dentro da lista cronológica de precatórios alimentares, que também deve ser organizada em ordem cronológica e deve ser paga antes de todos os precatórios alimentares.

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em cumprimento à Resolução 115/2010 do CNJ[4], definiu que a Lista de Preferências, organizada pela Coordenadoria de Conciliação de Precatórios (COORPRE) — órgão vinculado ao Gabinete da Presidência — permite o pagamento de até 30 salários mínimos aos idosos, portadores de doenças graves e pessoas com deficiência detentores de débitos de natureza alimentícia, haja vista que no Distrito Federal, a Lei 3.624/2005 fixou em 10 salários mínimos o patamar máximo da RPV.

Conclui-se que o direito Constitucional à antecipação do crédito do precatório a todos aqueles que preencham um ou mais requisitos delineados no artigo 100, § 2º da Constituição Federal prestigia a função social da lei e a efetividade do bem final buscado pela judicialização do conflito. Barbosa Moreira propõe que “em toda a extensão da possibilidade prática, o resultado do processo há de ser tal que assegure à parte vitoriosa o gozo pleno da específica utilidade a que faz jus segundo o ordenamento.”[5]

O poder judiciário ao exercer o dever da preferência, no caso, afeiçoa a correta aplicação da lei e o fim almejado pela solução processual, nas falas de Giuseppe Chiovenda[6]: “O processo deve dar, quanto for possível praticamente, a quem tem um direito, tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tenha direito de conseguir."

O adiantamento preferencial, previsto no § 2º do artigo 100, desempenharia, então, o acontecimento dito extraordinário da benção Constitucional ao fazer "chover Maná[7] aos pés dos famintos”[8]


 

[1] §3° O disposto no caput deste artigo relativamente à expedição de precatórios não se aplica aos pagamentos de obrigações definidas em leis como de pequeno valor que as Fazendas referidas devam fazer em virtude de sentença judicial transitada em julgado.

[2] DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. PAGAMENTO DE PRECATÓRIO PREFERENCIAL. ART. 100, § 2º., DA CF/88. PREVALÊNCIA DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DO DIREITO À VIDA E À SAÚDE SOBRE O INTERESSE PATRIMONIAL. PRECEDENTE: RMS 46.155/RO, REL. MIN. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJE 28.9.2015). 1. O § 2º. do art. 100 da CF/88 delimita dois requisitos para o pagamento preferencial nele previsto, quais sejam: (a) ser o débito de natureza alimentícia; e (b) ser o titular do crédito maior de 60 (sessenta) anos de idade, na data de expedição do precatório, ou portador de doença grave. 2. Estabelece, também, que o limitador quantitativo do pagamento com preferência seria o valor equivalente ao triplo do fixado para a RPV, não esclarecendo se esse incidiria sobre cada precatório ou sobre a totalidade de créditos de um mesmo particular. 3. O crédito de natureza alimentícia é indispensável para a subsistência do titular, tendo fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana e visando à proteção de bens jurídicos da mais alta relevância, tais como a vida e a saúde. 4. A norma constitucional não elencou a impossibilidade de o beneficiário participar na listagem de credor preferencial por mais de uma vez no mesmo exercício financeiro, perante um mesmo Ente Político, não podendo, portanto, o exegeta restringir tal possibilidade. 5. Tema já apreciado por esta Primeira Turma no julgamento do RMS 46.155/RO (Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 28.9.2015), definindo-se o entendimento de que a limitação constitucional para o pagamento de créditos humanitários se refere a cada precatório, não ao credor. 6. Agravo Regimental do ESTADO DE RONDÔNIA a que se nega provimento. (AgRg no RMS 41.510/RO, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 15/10/2015, DJe 29/10/2015)

[3]http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/81642-pagamento-de-precatorios-a-partir-de-sequestro-deve-seguir-ordem-cronologica,

[4] Dispõe sobre a Gestão de Precatórios no âmbito do Poder Judiciário.

[5] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Efetividade do processo e técnica processual. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 329, 1995.

[6] (Do original: 'II processo deve dare per quanto è possíbile praticamente a chi ha um diritto tutto quello e próprio quello ch 'égli há diritto conseguire”) CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução de Paolo Capitanio. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2000. v. 1.)

[7] Maná (no hebraico: מָ‏ן man). O livro bíblico de Êxodo o descreve como um alimento produzido milagrosamente, sendo fornecido por Deus ao povo Israelita, liderado por Moisés, durante toda sua estada no deserto rumo à terra prometida. Segundo o Êxodo, após a evaporação do orvalho formado durante a madrugada, aparecia uma coisa miúda, flocosa, como a geada, branca, descrita como uma semente de coentro, e como o bdélio, que lembrava pequenas pérolas. Geralmente era moído, cozido, e assado, sendo transformado em bolos. Diz-se que seu sabor lembrava bolachas de mel, ou bolo doce de azeite. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Man%C3%A1.> Acesso em 01 set. 2017.

[8] (Do original: “LORENZO – Fair ladies, you drop manna in the way of starved people.”) Tradução: “LOURENÇO – Belas damas, fazeis chover Maná no caminho dos famintos.” SHAKESPEARE, William. The Merchant of Venice. Tradução de Wagner Schadeck Cambridge School Shakespeare: January 1, 2005, Act 5, Scene 1, Page 14.

Autores

  • Brave

    é advogada da Associação Nacional dos Servidores da Justiça do Trabalho (Anajustra) e do Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no Distrito Federal (Sindjus/DF). Membro do Ibaneis Advocacia e Consultoria.

  • Brave

    é advogada da Associação Nacional dos Servidores da Justiça do Trabalho (Anajustra) e do Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no Distrito Federal (Sindjus/DF). Membro do Ibaneis Advocacia e Consultoria.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!