Opinião

Ideologização da Justiça facilita afronta a direitos humanos

Autor

  • Paulo Tamer Junior

    é advogado criminal em São Paulo e Barcelona especialista em Direito Constitucional pela PUC-SP membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa e especialista em Tribunal do Júri.

8 de outubro de 2017, 9h00

Há algumas semanas apresentei, em grupo de pesquisa sobre Direito Penal e Jusnaturalismo, breve resenha sobre o quanto estudado na obra Hitler e os Alemães de Eric Voegelin. Na oportunidade, fiquei responsável por cuidar de capítulo da referida obra destinado a analisar o Rechsstaat — em português, Estado de Direito.

Tentarei narrar alguns dos conceitos básicos analisados naquela obra filosófica, bem como descrever o temor que me acometeu por vislumbrar, com absoluta clareza, as similaridades na operação do Direito Penal entre aquele regime facínora e a realidade da justiça penal brasileira.

Em primeiro lugar deve-se atentar para a conceituação feita pelo autor do que seria a Segunda Realidade. Assim, explica o autor, aqui da forma como entendido, a existência de uma segunda realidade, tomando o lugar da verdade real, tendo como fato incipiente a conspurcação das virtudes morais por elementos de cunho ideológico (strictu sensu).

Segundo o autor, tal fato ocorre devido a premissas estabelecidas através do apelo político de grandes oradores à necessidades vinculadas ao tempo vivido por aquele povo, bem como amarguras, valores e carências, mas, especialmente levadas às suas últimas consequências em razão da carência moral-educacional daquela sociedade, não oferecendo resistência moral à ideologização da justiça instalada naquele contexto.

Neste sentido, aproveitou-se o regime Nacional-Socialista da turbulência política existente na Alemanha para, dando alento ao sentimento de revanchismo — fruto das pressões internacionais que sobrepujavam aquela nação em decorrência da derrota sofrida na Primeira Grande Guerra — fazer surgir palavras de ordem, as quais seriam responsáveis por balizar a aplicação da justiça, tal como o quanto esperado pela nação daquele regime instalado. Dentre estas pode-se destacar o “orgulho alemão” e a “necessidade histórica”.

Dadas as razões existenciais da Segunda Realidade, deve-se explicar no que consiste. Pois bem, a Segunda Realidade é um lugar comum, ou tópos, ou seja, uma espécie de fim ou premissa, não necessariamente real, que deve estar para além da corretude, da justiça, da liberdade e, inclusive, da vida ou dignidade, pois o futuro a ser construído através daquela, segundo seus defensores, seria mais justo e feliz.

Assim, imperioso desmistificar a ideia criada a respeito da dificuldade encontrada em julgar os perpetradores das atrocidades cometidas por aquele regime. Diz-se muito que a referida dificuldade deu-se, pois os médicos que praticavam a eutanásia, os militares que realizavam os assassínios nas câmaras de gás ou nos pelotões de fuzilamento, o faziam embasados em previsões legais da época.

Entretanto, cotejando a história com um pouco mais de atenção, vê-se que, na realidade, nada de legal existia naqueles horrendos atos perpetrados, na verdade todos os que laboravam para o Terceiro Reich, referiam-se, para embasar seus atos, a ordem administrativa do Führer, que normalmente possuía conteúdo absolutamente divorciado da Constituição Alemã vigente, a qual, à época, ainda continha previsão obrigando o Estado Alemão a respeitar a dignidade humana.

Ora, se assim foi, como então escaparam de certeira condenação? Alegavam em sua defesa a necessidade histórica existente para a tomada daquelas atitudes. O espanto não se dá na alegação, mas no fato da magistratura alemã aceitar a “necessidade histórica” como circunstância justificadora daqueles atos.

Em outra esfera, nenhum ato de divergência poderia ser esperado da população alemã, há muito anestesiada pela ideologização das virtudes morais, acreditando que quaisquer meios justificariam o fim a ser alcançado, qual seja: o suposto bem comum.

Portanto, para que fique claro, tudo, absolutamente tudo, pode ser relativizado, inclusive dignidade, vida e liberdade, se o escopo de tal ato for o tópos criado pela ideologização da justiça. O raciocínio é simples: todos os homens merecem dignidade, basta que eu deixe de assim ver, enquanto seres humanos, grupos específicos para que possa lhes retirar a dignidade.

Naquele contexto, e por conta disto, padeceram judeus, ciganos, homossexuais, deficientes físicos e tudo que viesse a surgir como entrave ao lugar-comum.

A bem da verdade, trata-se da própria essência da religião civil, pois claramente tentativa de imanentizar o Eschaton — expressão utilizada pelo autor em outra obra de sua autoria chamada Nova Ciência Política — tendo em vista que aquele suposto bem comum buscado, de acordo com o que se capta nas entrelinhas dos discurso de seus arautos, é imanente, pois trata-se de tentativa moderna em conjecturar futuro intrínseco a história do homem, e escatológico, pois traz consigo a fidúcia de que ocorrerá independente dos rumos ou meios utilizados para seu alcance, ideia envolta em certa natureza profética.

Dito isto, explico o temor que me acometeu quando realizava esta análise crítica da história desenvolvida por Voegelin:

Operando o Direito Penal no Brasil, especialmente na cidade de São Paulo, percebo a relativização de direitos historicamente conquistados, tais como a Presunção de Inocência e o Status Libertatis.

Assim, para que fique claro, não parto do pressuposto que as barbaridades por vezes advogadas pelo parquet e efetivadas pela magistratura possam ser interpretações de quem milita e advoga no lado oposto do processo supostamente democrático. Ao contrário disso, faço análise absolutamente isenta, sem a defesa cega da liberdade muitas vezes sustentada por quem advoga teses defensivas nos juízos criminais, o que torna a situação ainda mais assustadora.

A afronta aos direitos supra referidos não acontece de forma sutil ou bem camuflada, ao contrário, acontece à luz do dia através de éditos judiciais que parecem esquecer-se que além de fundamentados, devem ser idôneos e probos, deixando evidente o juízo prudencial desenvolvido pelo magistrado.

Vê-se réus, que não deveriam provar sua inocência, trazerem testemunhas de que aquele não estava no local dos fatos, trazendo a indicação dos verdadeiros perpetradores, seus endereços e, inclusive, fotografias dos reais criminosos, tendo, em seu desfavor a crença cega e surda de seu acusador, fundamentada nas ilegalidades cometidas em solo policial. Neste caso, o prêmio dado a estes perseguidos por isto que quer chamar-se de Justiça é a condenação mais branda, mas ainda a condenação. Afinal de contas, na dúvida, deve-se preservar a “ordem pública” e a “sociedade ordeira paulistana”.

Eis aí o que no Brasil, e neste tempo, configuram os tópos de ideologização da Justiça que nos impedem de ver a verdade real: de que para a aplicação do Direito não basta o conhecimento do abstrato e geral da lei, mas necessário associá-lo ao aprendizado das virtudes morais para que, auxiliadas pela prudência — significando aqui a experiência prática de vida do operador — garantam verdadeiramente o quanto conquistado em termos de direitos fundamentais.

Caso contrário, ainda que a dignidade, a vida e a liberdade estejam em letras garrafais na Constituição, não passarão de termos vazios e sem aplicação real. Foi assim que refleti. No mais, meu profundo respeito a todos que pensarem diferente de mim.

Autores

  • Advogado Criminalista, com principal foco em Tribunal do Júri. Bacharel em Direito pela Faculdade do Pará. Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa.

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