Cofre paralelo

Governo usa bilhões do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos para inflar o caixa

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31 de março de 2017, 7h11

Direitos difusos são aqueles que pertencem à coletividade, a um grupo indeterminado de pessoas ligadas por uma circunstância, como consumidores afetados por um cartel ou indígenas que tiveram suas terras atingidas por barragens. As condenações por violações a esses direitos, no Brasil, resultam no pagamento de indenização ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos. No entanto, o valor arrecadado, que deveria servir para a reparação dos danos, tem sido usado para a União para inflar a conta do superávit primário.

Kittichai Songprakob/123RF
Kittichai Songprakob/123RF

Levantamento feito pela revista eletrônica Consultor Jurídico mostra que o Fundo recebeu R$ 1,9 bilhão nos últimos sete anos, mas menos de 3% disso foram aplicados nos fins determinados em lei. O dinheiro quase todo foi para os cofres da União, pela porta dos fundos.

Só em 2016, R$ 775 milhões chegaram ao Fundo. O dinheiro vem principalmente das multas aplicadas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) a empresas condenadas por formação de cartel, tendo origem também em condenações em ações civis públicas de responsabilidade por danos ao meio-ambiente, ao consumidor e aos investidores no mercado de valores mobiliários, por exemplo.

O Fundo pertence ao Ministério da Justiça e é gerido pelo Conselho Federal Gestor do Fundo de Defesa de Direitos Difusos. Na lei, seu objetivo declarado é “a reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico, por infração à ordem econômica e a outros interesses difusos e coletivos”.

Essa “reparação” deveria ser feita por meio de projetos (selecionados a partir de editais). Em 2016, oito projetos foram escolhidos e receberam R$ 2,2 milhões (clique aqui para conhecê-los). Isso significa que, levando em conta a arrecadação total, só 0,3% da verba foi usada para os fins previstos na lei. Descontando ainda o dinheiro usado para a manutenção do conselho gestor do fundo, “sobraram” mais de R$ 770 milhões, que viraram superávit primário, o resultado de todas as receitas do governo antes do pagamento da dívida pública.

O ex-presidente do conselho gestor do Fundo Fabrício Missorino Lázaro conta o que é feito com esse dinheiro: os valores que não são aplicados nos projetos nem compõem os gastos de custeio da secretaria-executiva do conselho. Vão para o orçamento geral do Ministério da Justiça, “que detém autonomia tanto para a liberação de recursos ao Conselho como para o redirecionamento dos recursos não utilizados a outras pastas que compõem o ministério”. Ou seja, o Ministério da Justiça faz o que quiser com a quantia.

Valores do FDD (em
milhões de reais)

Ano

Arrecadação

Valor usado pelo Fundo

2010

30,8

7,9

2011

41,4

8,9

2012

57,0

5,5

2013

120,2

3,6

2014

192,3

6,3

2015

563,3

3,8

2016

775,0

2,4

2017*

117,6

indisponível

Total*

1.897,6

38,4

* Valor apurado em março de 2017.

O jurista Lenio Streck, ex-procurador de Justiça do Rio Grande do Sul, após analisar o levantamento dos números feito pela ConJur, afirma: “O Ministério da Justiça deve muitas explicações”. “Temos tantas controladorias, procuradorias, tribunais de contas de tudo que é tipo e mesmo assim dão o drible da vaca na lei”, reclama.

O professor de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo Fernando Facury Scaff explica que a “permissão” para não usar o dinheiro para os fins a que o fundo se destina está no tortuoso artigo 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000). Pela norma, o Poder Executivo pode represar a previsão de gastos a fim de que sejam cumpridas as metas de superávit primário. Assim, basta alegar que o dinheiro é necessário para cumprir as metas para destinar ao FDD uma quantia ínfima do que é arrecadado.

Portas dos fundos
Fabrício Lázaro afirma que o FDD não é o único fundo a não aplicar o dinheiro arrecadado nas ações previstas em lei, lembrando questão recentemente enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal em relação ao Fundo Penitenciário (Funpen). A corte proibiu o contingenciamento do dinheiro do fundo e obrigou o governo a usá-lo na melhoria do sistema carcerário, conforme manda a lei.

A decisão do Supremo é de setembro de 2015. Em dezembro de 2016, o presidente Michel Temer autorizou, em medida provisória, o primeiro descontingenciamento do dinheiro do Funpen. Mas em "políticas de redução da criminalidade", "inteligência policial" e outras atividades sem ligação direta com o sistema penitenciário.

E a lista de fundos é longa, com arrecadações variadas e missões que dificilmente ocupam seu orçamento, como é o caso do Fundo Nacional do Meio Ambiente, do Fundo Nacional dos Direitos da Mulher, do Fundo Nacional de Segurança Pública, do Fundo Nacional da Criança e do Adolescente e do Fundo Nacional Anti-Drogas.

Nesses casos, bem como no FDD, a Lei Orçamentária Anual já traz o valor a ser destinado ao fundo e apenas essa quantia chega à conta gerida pelo conselho responsável por aplicar o dinheiro para os fins previstos por lei. A maior parte da verba sequer chega à conta.

Teresa Liporace, gerente de projetos do Instituto de Defesa do Direito do Consumidor (Idec) e conselheira suplente do conselho gestor do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, afirma que o contingenciamento é pauta constante das reuniões do conselho, mas não há nenhuma sinalização de mudanças. “Quando é solicitada liberação de parte dos recursos da Reserva de Contingência prevista no orçamento do FDD, a Secretaria de Orçamento Federal (vinculada ao Ministério do Planejamento) nega”, conta.

Juízes do próprio jogo
Pelo menos três vezes nos últimos sete anos o Fundo financiou projetos das próprias entidades que ocupam ou ocuparam cadeiras no conselho que decide onde aplicar as verbas. Juntas, elas abocanharam R$ 1,6 milhão.

Formação do Conselho
Gestor do FDD

Um representante da Secretaria Nacional do Consumidor, do Ministério da Justiça (Presidente)

Um representante do Ministério do Meio Ambiente

Um representante do Ministério da Cultura

Um representante do Ministério da Saúde, vinculado à área de vigilância sanitária

Um representante do Ministério da Fazenda

Um representante do Cade

Um representante do MPF

Três representantes de entidades civis: 
– Fórum Nacional de Entidades Civis de Defesa do Consumidor;
– Instituto “O Direito Por Um Planeta Verde”; e
– Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor

O conselho é formado por representantes do Ministério Público Federal e das pastas da Justiça, Meio Ambiente, Cultura, Saúde e Fazenda. Além de um representante do Cade. O conselho gestor conta também com três cadeiras para representantes de entidades civis, atualmente ocupadas pelo Fórum Nacional de Entidades Civis de Defesa do Consumidor; pelo Instituto O Direito Por Um Planeta Verde; e pelo Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon). Os dois últimos têm em comum terem sido fundados e presididos pelo ministro Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal Superior Eleitoral.

Em 2012, o Instituto O Direito Por Um Planeta Verde ganhou R$ 398 mil do fundo para tocar um projeto com uma descrição bastante complicada: “Divulgar o pagamento por serviços ambientais – PSA como um mecanismo de conservação ambiental; sistematizar experiências e avaliar o estado de implementação e a efetividade das sete normas estaduais que estabelecem o PSA no país (biodiversidade e retenção de carbono), aprovadas até o final de 2010 (AM, AC, ES, MG, SC, PR e SP), de forma a permitir uma avaliação crítica sobre a aplicação deste novo instrumento e, assim, contribuir para o aperfeiçoamento normativo em todas as esferas da federação”.

O caso não é exceção. O Idec, que também já teve assento no conselho gestor do fundo, conseguiu ter projetos financiados pelo FDD em 2015 e em 2011. No mais recente, obteve R$ 443 mil para criar uma “ferramenta web” de educação, informação e orientação ao consumidor. Já há seis anos, R$ 434 mil foram pagos para que a entidade desenvolvesse o projeto denominado “promoção da tutela do consumidor pelas agências reguladoras através da disseminação de informação e de direitos relacionados a produtos e serviços regulados aos cidadãos”.

Feliz aniversário
O próprio Cade, que é parte do conselho e responsável por angariar a maior parte da receita do fundo, já conseguiu R$ 405 mil para um projeto de comemoração dos 50 anos da entidade, em 2012. A finalidade era organizar a semana comemorativa pelo aniversário do Cade, “divulgando para a sociedade a importância do trabalho desenvolvido pela autarquia para a proteção do ambiente concorrencial e da ordem econômica, com vistas a garantir o adequado funcionamento dos diversos mercados”.

Representantes das entidades afirmam que, como as regras dos editais de seleção de projetos são claras, qualquer um dos entes participantes do conselho pode apresentar projetos e disputar com os outros interessados. Além disso, a prestação de contas de cada projeto é feita ao Fundo rigorosamente, sob pena de ter que devolver o dinheiro, contam.

“Para garantir que não haja qualquer conflito de interesse, é prática recorrente no Conselho do FDD que o proponente não seja relator nem vote projetos de seu interesse”, afirmou o Cade, por meio de sua assessoria de imprensa, à ConJur.

Sobre o projeto financiado, o Cade conta que, com o dinheiro, lançou uma campanha publicitária e um hotsite para disseminação da importância da proteção do ambiente concorrencial e da ordem econômica; promoveu uma cerimônia comemorativa e um seminário sobre defesa da concorrência, além de publicar o livro Cade 50 Anos, em formato impresso e digital, que registra a evolução da defesa da concorrência no Brasil.

O presidente do Instituto O Direito por um Planeta Verde, José Rubens Morato Leite, afirma que o estudo financiado com a verba do fundo serviu para dar subsídios para um marco regulatório nacional sobre o “pagamento por serviços ambientais”. Partes da pesquisa já foram publicadas e podem ser vistas no site do instituto. Além disso, conta, as análises dos dados levantados pela ONG foram usadas em diversos outros estudos.

Já Teresas Liporace, do Idec, afirma que a ONG quase não tem recursos oriundos de convênios com governo federal, porque a execução e o uso dos recursos são feitos por um sistema (Siconvi) que requer muito conhecimento específico e muitas horas de dedicação para operá-lo.

Ela explica o que foi feito nos dois projetos que foram financiados pelo FDD listados pela ConJur: O de 2011 “oportunizou ao Idec desenvolver e manter o banco de regulação, informando a todo o SNDC sobre a publicação de uma nova consulta pública e incentivando a participação dos seus membros com o envio de contribuições às agências reguladoras”.  Já o aprovado em 2015 teve a execução iniciada em janeiro de 2016, com término previsto para junho deste ano.  O principal produto será um portal com ferramentas de informação, orientação e autoconsulta, incluindo cursos gratuitos para o consumidor.

O ano do MP
Já 2016 parece ter sido o ano do Ministério Público no FDD. Projetos do MP em três estados ficaram com mais de metade do valor destinado a projetos pelo Fundo de Defesa dos Direitos Difusos. De R$ 1,9 milhão, R$ 384 mil foram para o Ministério Público da Bahia, em um projeto para “melhorar a prestação do serviço de fornecimento de água para os consumidores baianos”.

Outros R$ 347 mil aportaram no MP do Distrito Federal, para implantar o núcleo de geotecnologia na Secretaria de Perícias e Diligências. Já o Ministério Público do Acre ganhou R$ 271 mil para financiar “campanhas educativas para informar o consumidor sobre o consumo sustentável e a importância da alimentação saudável e do consumo seguro de alimentos”.

Antes de 2016, a última aparição de projetos do MP financiados pelo fundo havia sido em 2010, quando o MP-AC conseguiu ter outras duas ações selecionadas. O órgão recebeu R$ 195 mil para combater a poluição hídrica e R$ 146 mil garantir informação complementar sobre a fauna de mamíferos silvestres do estado a alunos de rede pública de Rio Branco.

Vale notar que o MP é o principal autor das ações civis públicas, de onde vem grande parte da arrecadação para o Fundo de Defesa de Direitos Difusos.

Projetos mais caros financiados pelo FDD, por ano

Ano

Valor solicitado

Interessado

Descrição do projeto

2016

R$ 384.000

Ministério Público da Bahia

Melhorar a prestação do serviço de fornecimento de água para os consumidores baianos, no que tange a qualidade e continuidade do abastecimento.

2015

R$ 443.750

Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC

Estruturação de uma ferramenta web de educação, informação e orientação ao consumidor para contribuir para a redução da assimetria de informações nas relações de consumo.

2014

R$ 443.750

Instituto de Pesquisa Ecológicas – IPÊ/SP

Promover a disseminação da cafeicultura orgânica através da implementação de ilhas de agrobiodiversidade (café com floresta) em assentamentos rurais da reforma agrária no Pontal do Paranapanema, Estado de São Paulo.

2013

R$ 443.379

Fórum Nacional das Entidades Civis de Defesa do Consumidor

Fortalecimento do Movimento Civil de Defesa dos Consumidores no Brasil.

2012

R$ 539.555

Secretaria de Governo do Mato Grosso do Sul

Formar brigadistas voluntários em técnicas de combate a incêndios florestais, fazer uma campanha educativa e fortalecer a Coordenadoria Estadual de Defesa Civil do Estado de Mato Grosso do Sul.

2011

R$ 588.091

Ecoa – Ecologia & Ação – MS

Promover a Melhoria na Saúde dos Povos Indígenas do Vale do Javari.

2010

R$ 348.640

Casa Civil do Governo do Estado do Rio de Janeiro

Preservação dos acervos das Casas de Detenção do Rio de Janeiro e Niterói existentes no Arquivo Público do Estado.

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