Olhar Econômico

Não cabe penalização dos que buscam uma gestão mais eficiente

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

30 de março de 2017, 9h00

Spacca
João Grandino Rodas [Spacca]Estudando-se a administração pública no Brasil, verifica-se que, desde as primeiras décadas do século passado, sucederam-se três sistemas de gestão: patrimonialista/clientelista (anterior a 1930); gestão burocrática (Getúlio Vargas, inspirado em Max Weber) e Estado gerencial (introduzido por Bresser-Pereira, no governo Fernando Henrique Cardoso).

A eficácia do modelo gerencial depende: (i) da descentralização do Estado, que, por meio de servidores públicos, executará somente tarefas relacionadas com a própria finalidade estatal, encarregando terceiros dos demais serviços, incluindo os sociais; e (ii) maior autonomia de gestão e consequente relativização da rigidez regulamentar, apanágio do sistema de gestão burocrática.

De certa forma, coexistem com o Estado gerencial, atualmente, ao menos traços dos sistemas anteriores, muito embora tudo devesse convergir para a modernização e eficiência do Estado.

Falando-se em eficiência, note-se que a Emenda Constitucional 19 de 1998, incluiu a eficiência entre os princípios norteadores da administração pública (legalidade, moralidade, impessoalidade e publicidade). A eficiência implica que o agente público se utilize de todos os meios, desde que legais, para cumprir as atribuições, em prol do bem comum.

O caso a seguir é ilustrativo do que acaba de ser dito. Certo município, para não interromper serviços essenciais, necessitava contratar a locação de veículos leves e caminhões para várias finalidades, incluindo o traslado de munícipes, portadores de doenças crônicas, de suas casas para hospitais. Diante dessa necessidade, o gestor municipal, por se tratar de emergência, optou por intentar contratação por período determinado, na modalidade de convite, prevista no inciso III, do artigo 22 da Lei 8.666/1993. Diligentemente, pari passu, o gestor iniciou também a concorrência, descrita no inciso I do mesmo artigo 22, para período posterior.

A empresa X venceu o convite e teve seu contrato efetivado, por prazo determinado, em razão de ter apresentado as melhores condições, dentre as três propostas regulamentares. Para demonstrar a necessidade do serviço, em apenas um mês, foram realizados quase cinco mil atendimentos. Cerca de três meses após a celebração do citado contrato, a mesma empresa X sagrou-se vencedora da concorrência.

Indivíduo desafeto da gestão municipal ingressou com Ação Popular em face da Empresa X e do gestor municipal, requerendo a interrupção dos serviços contratados pela modalidade convite, alegando ilegalidade e lesividade na contratação, bem como prejuízo ao erário.

A referida ação popular foi julgada improcedente ante a ausência de comprovação do prejuízo efetivo ao patrimônio público, sendo considerado legal o contrato administrativo e, inclusive, benéfico à coletividade.

As partes recorreram ao Tribunal de Justiça, sobrevindo acórdão que reformou a decisão, com fundamento presumido de má-fé e dano ao erário, em razão da modalidade de licitação escolhida, qual seja o convite. Presentemente, espera-se o regular seguimento do recurso especial, inobstante o filtro utilizado para seu recebimento seja, por vezes, demasiadamente estreito.

Em se tratando de estudo de caso, neste ponto, é necessário reexaminar os fatos em sua globalidade, para se decantar os argumentos passíveis de serem apresentados ao Superior Tribunal de Justiça. Dentre esses, poderiam ser esgrimidos os seguintes:

i. Em momento algum apreciou-se questão relacionada à perda de objeto da ação popular. A lei que disciplina tal instituto é clara ao delimitar a finalidade da ação no tocante à anulação ou à declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio. Ora, se o contrato esvaiu-se em cerca de três meses, os alegados atos ilegais e lesivos já teriam desaparecido do mundo fático. Contudo, quase uma década após findo o contrato, ainda se discute a presente ação, não se reconhecendo a inequívoca falta de interesse de agir do autor popular.

ii. Em 2ª instância, o dano ao erário e a má-fé da empresa X foram presumidos. Os atos administrativos têm como atributo a presunção de legitimidade e a boa-fé deve ser presumida; inobstante a má-fé necessite ser comprovada. Essas são regras básicas norteadores de nosso sistema jurídico.

iii. Em breve análise, a alegada lesividade dependeria de comprovação documental de que os preços pagos pela municipalidade à empresa X seriam superiores aos valores correntes e justos.

iv. A condenação da empresa X, que efetivamente prestou cinco mil atendimentos em um lapso de 30 dias, à devolução dos valores pagos pela municipalidade, implicaria em enriquecimento sem causa do ente público. Tal enriquecimento é vedado em nosso ordenamento, estendendo-se tal entendimento não somente aos particulares, mas também aos entes públicos, por serem as regras do direito civil aplicadas ao caso, mesmo que  complementarmente.

v. Eivada de vícios e obscuridades, a decisão de 2º grau merece  ser reformada pelo STJ, por ter havido afronta à legislação que rege a ação popular, por não ter sido comprovado dano ou prejuízo ao erário e por não ter havido má-fé da empresa X, a que o direito vigente não concede a escolha da modalidade licitatória, pois tal incumbência é exclusiva do gestor público.

A Administração Pública vem passando por mudanças significativas na forma de gestão, a partir de finais do passado século; sendo imperioso romper rotinas. A adoção de uma nova mentalidade, capaz de contribuir para a construção de uma nova administração pública, deve buscar eliminar resquícios de burocratismo. Assim, não cabe a penalização dos que busquem, nos limites da legalidade, uma gestão mais eficiente e eficaz.

Todo agente público deve realizar suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional. Dessa forma, diminuiriam as frustrações sociais decorrentes da falta de resposta do poder público.

O novo modelo deve buscar a prestação dos serviços públicos sociais essenciais à população, visando a adoção de todos os meios legais para a satisfação do bem comum. No caso examinado, seria inadmissível que o gestor municipal tivesse deixado de contratar os serviços de transporte, pondo vidas em perigo.

Por outro lado, é cada vez mais frequente a deturpação da nobre natureza da ação popular, por vezes proposta por razões político-ideológicas, sem real comprovação de dano ao patrimônio público. Cabe ao poder judiciário preservar a segurança jurídica essencial, não somente por medida de justiça, mas também para que haja investimentos no país, mormente nos empreendimentos em que o setor público participa. Para tanto, há que se dar o devido valor ao princípio da eficiência que, embora positivado com dignidade constitucional, praticamente, necessita o reconhecimento, que somente, o judiciário pode dar.

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    é professor titular da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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