Opinião

Projeto permite terceirização irrestrita apenas no trabalho temporário

Autor

  • Fernando Maciel

    é procurador federal em Brasília máster em prevenção de acidentes laborais pela Universidade de Alcalá (Espanha) especialista em Direito de Estado pela UFRGS e professor de pós-graduação em Direito do Trabalho e Previdenciário. Autor do livro Ações Regressivas Acidentárias (editora LTR).

29 de março de 2017, 7h32

A recente aprovação do Projeto de Lei (PL) 4.302/98 pela Câmara dos Deputados tem gerado acirrado debate entre os defensores e os opositores da “terceirização”. Enquanto aqueles defendem que a regulamentação da matéria acarretará maior segurança jurídica nas relações de trabalho, o aumento da produtividade empresarial e o incentivo a mais contratações de trabalhadores; esses últimos ponderam que a referida proposição normativa trará gravíssimas consequências em detrimento da classe trabalhadora, como por exemplo a redução/precarização dos direitos trabalhistas, a consequente redução salarial e um maior número de acidentes/doenças ocupacionais, em virtude do menor investimento em medidas de saúde e segurança do trabalho.

Conforme temos verificado nas manifestações que têm sido divulgadas amplamente na imprensa, internet e também nas redes sociais, tanto defensores quanto opositores partem da premissa de que o PL 4.302/98 normatizou o que podemos chamar de “terceirização irrestrita”, ou seja, aquela que poderia incidir tanto sobre as atividades-meio, bem como sobre as atividades-fim dos seguimentos empresariais. Eis aqui o ponto de discordância que nos motivou a escrever o presente artigo, o qual se limita a desenvolver uma reflexão crítica acerca da exata extensão dos efeitos da proposta legislativa, o que se busca fazer de forma neutra sem externar qualquer juízo valorativo (positivo ou negativo) acerca do instituto da terceirização, o que deixaremos para fazer em outra oportunidade.

Pois bem, não obstante o respeito que destinamos àqueles que pensam, falam e escrevem em sentido diverso, ousamos divergir do entendimento de que o PL 4.302/98 teria assegurado ao setor empresarial a possibilidade de adotar uma terceirização irrestrita, ou seja, aquela que venha a incidir sobre suas atividades-fim, para além dos casos de trabalho temporário.

Para alcançarmos esse entendimento devemos partir da exata delimitação do objeto da aludida proposição normativa, o que extraímos de sua respectiva ementa, nos termos do preconizado no artigo 5º da Lei Complementar 95/98[1], a qual dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis. Compulsando a ementa do PL 4.302/98[2] verificamos que o seu objeto é dividido em duas partes distintas, consubstanciada em seus dois primeiros artigos, visto que o terceiro e último dispositivo apenas estabelece a regra de vigência (a contar de sua publicação).

A primeira parte está materializada no artigo 1º do projeto, visando a alterar a redação de dispositivos da Lei 6.019/74, a qual disciplina o trabalho temporário nas empresas urbanas. A segunda parte, prevista no artigo 2º do PL, dispõe sobre as relações de trabalho na empresa de prestação de serviços a terceiros, ou seja, disciplina o instituto jurídico da terceirização, porém, salvo melhor juízo, assim não o faz de forma irrestrita como interpretado por alguns, conforme passaremos a demonstrar a seguir.

Ao promover alterações nos dispositivos já existentes na Lei 6.019/74, o artigo 1º do PL 4.302/98 (primeira parte do projeto) introduziu algumas novidades na disciplina normativa dos contratos de trabalho temporário, que nos termos da nova redação conferida pelo PL passa a ser aquele destinado a “atender à necessidade de substituição transitória de pessoa permanente ou à demanda complementar de serviço”[3].

Para o específico propósito que nos motivou a escrever esse artigo, insta referir que, ao dispor acerca do conteúdo do contrato de trabalho temporário, o artigo 1º do PL 4.302/98 acrescentou o § 3º ao artigo 9º da Lei 6.019/74, o qual preconizou de forma expressa que a referida modalidade contratual pode “versar sobre o desenvolvimento de atividades-meio e atividades-fim a serem executadas na empresa tomadora de serviços”. Com efeito, dúvidas não restam de que, em se tratando de uma relação contratual de trabalho temporário, é perfeitamente possível a utilização de trabalhadores temporários nas atividades-fim das empresas tomadoras de serviços.

Já no que se refere ao instituto da terceirização, denominado pelo PL 4.302/98 como “contrato de prestação de serviços a terceiros”, e previsto na segunda parte da aludida proposta normativa (artigo 2º), a redação conferida aos artigos 4º-A e 5º-A acrescidos à Lei 6.019/74 que, respectivamente, apresenta os conceitos de empresa prestadora de serviços a terceiros (terceirizada) e contratante (tomadora de serviços), estabelece contornos mais restritos no que tange ao objeto da terceirização. Isso porque, apesar de fazer referência à “prestação de serviços determinados e específicos”, não faz qualquer menção quanto à possibilidade de os serviços terceirizados poderem incidir sobre as atividades-fim da empresa contratante, ao contrário do que o fez de forma expressa quando tratou do contrato de trabalho temporário, previsto na primeira parte do projeto (artigo 1º).

Para alcançarmos a exata mens legis (espírito da lei) verbalizada no PL 4.302/98, com fulcro na doutrina de Carlos Maximiliano[4], devemos partir do princípio basilar de hermenêutica jurídica segundo o qual “a lei não contém palavras inúteis” (verba cum effectu sunt accipienda), ou seja, as palavras devem ser compreendidas como tendo alguma eficácia. Com efeito, o fato de o legislador ordinário ter feito expressa referência ao desenvolvimento de atividades-fim apenas nos contratos de trabalho temporário, previstos na primeira parte da proposta (artigo 1º), assim não o fazendo quando da disciplina normativa da terceirização prevista na segunda parte do PL (artigo 2º), tal circunstância possui um especial significado que deve ser considerado pelos intérpretes e aplicadores da norma.

Eis aqui o que podemos chamar de um silêncio eloquente do legislador, que conforme a doutrina de Norberto Bobbio[5] consubstancia uma lacuna normativa consciente e voluntária, a qual deve nortear a exata interpretação da mens legis. Nesse sentido, ao dispor acerca do silêncio eloquente no âmbito constitucional, Paulo Gustavo Gonet Branco, em obra conjunta com o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Ferreira Mendes[6], leciona que sua caracterização se verifica quando a

“hipótese concreta examinada pelo aplicador não foi inserida pelo constituinte no âmbito de certa regulação, porque o constituinte não quis atribuir ao caso a mesma consequência que ligou às hipóteses similares que tratou explicitamente”, de modo que “a omissão da regulação, nesse âmbito, terá sido o resultado do objetivo consciente de excluir o tema da disciplina estatuída”. Diferencia-se a figura, portanto, da mera “lacuna de formulação”, fruto de “apenas um lapso do constituinte, que não pretendera excluir a categoria de fatos em apreciação da incidência da norma”.

Dessa forma, considerando o silêncio eloquente praticado pelo legislador ordinário no PL 4.302/98, outra conclusão não pode ser alcançada senão o fato de que a subcontratação de serviços nas atividades-fim da empresa contratante somente pode se dar no âmbito dos contratos de trabalho temporário, inexistindo disciplina normativa no que tange à possibilidade de a contratação de serviços de terceiros (terceirização) alcançar as atividades-fim das empresas tomadoras de serviços.

Salvo melhor juízo, enquanto não sobrevier disciplina legal específica acerca da matéria, entendemos que esse vácuo normativo deve continuar a ser disciplinado pela Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho, a qual proíbe a terceirização das atividades-fim do tomador, cuja constitucionalidade está sendo apreciada pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 958.252.


[1] Art. 5º A ementa será grafada por meio de caracteres que a realcem e explicitará, de modo conciso e sob a forma de título, o objeto da lei.

[2] Altera dispositivos da Lei 6.019, de 3 de janeiro de 1974, que dispõe sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas e dá outras providências; e dispõe sobre as relações de trabalho na empresa de prestação de serviços a terceiros.

[3] Nos termos da redação original do artigo 2º Lei 6.019/74, o trabalho temporário era aquele destinado a “atender à necessidade transitória de substituição de seu pessoal regular e permanente ou à acréscimo extraordinário de serviços”

[4] Hermenêutica e Aplicação do Direito, 8ª. ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1965, p. 262.

[5] Teoria do Ordenamento Jurídico. São Paulo: Polis, 1989. p. 144.

[6] MENDES, Gilmar Ferreira; e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional, São Paulo: Saraiva, 2011, p. 100-1.

Autores

  • é procurador federal em Brasília, master em prevenção de acidentes laborais pela Universidade de Alcalá (Espanha) e autor do livro Ações Regressivas Acidentárias (editora LTR).

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