Segunda Leitura

Manutenção e forma do tribunal do júri no Brasil merecem ser reavaliadas

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

26 de março de 2017, 8h00

Spacca
O Tribunal do Júri faz parte da tradição de nosso sistema de Justiça. Já era previsto no artigo 151 da Constituição de 1824 e, curiosamente, dava-se competência não apenas para julgar infrações penais, como também conflitos cíveis.

No Código de Processo Criminal do Império, de 1832, sua competência abrangia uma grande quantidade de delitos. Por exemplo, acusados de crime de falência eram julgados pelo Júri. Havia Júri de acusação e outro de sentença. O papel do juiz de Direito era de mero presidente dos atos processuais.

A criação da Justiça Federal após a proclamação da República, previu, da mesma forma, o Júri Federal, conforme artigo 40 do Decreto 848, de 1890. Mantido na Constituição de 1934, a Carta Constitucional de 1937 silenciou a seu respeito, porém o Decreto-lei 167, de 1938 previu-o expressamente.

Mantido nas demais Constituições, chegou à de 1988, com total soberania, dentro dos direitos e garantias individuais, artigo 5º, inciso XXXVIII.

O processo e julgamento pelo Júri é regulado pelo artigo 406 e seguintes do Código de Processo Penal de 1941, com as alterações da Lei 11.689, de 2008. Sua competência é restrita aos crimes de homicídio doloso, infanticídio, indução, instigação ou auxílio ao suicídio e aborto.

O Tribunal do Júri é considerado instrumento importante no regime democrático, porque permite aos acusados serem defendidos por seus iguais. Tulio Zuca no artigo “Tribunal do Júri”, ensina que “Nesta seara, a instituição do júri figura essencialmente como uma garantia, e, secundariamente, como um direito, uma vez que por meio do Tribunal do Júri, busca-se assegurar e proteger a fruição de direitos meramente declaratórios. Faz-se, portanto, necessário à integral dignidade da pessoa humana na vida social”.[1]

Em que pese a tradição do Júri no Direito brasileiro, cabe perguntar se esta forma de julgamento atende as necessidades da sociedade brasileira no seu atual estágio de desenvolvimento. Vejamos:

A mudança de comportamento da sociedade.
Em 1941, quando o nosso CPP foi editado, a população brasileira, na sua maior parte, vivia na zona rural, o lazer era limitado e o tempo mais longo. Era comum a prática de visitas, leituras, estudo de música e outros hábitos agora raros.

Naquela sociedade, os julgamentos pelo Tribunal do Júri despertavam enorme interesse. O Júri era onde os grandes advogados criminalistas se tornavam conhecidos, sempre envolvidos em uma auréola de charme e reconhecimento social. Frases de efeito, agilidade no raciocínio, palavras em latim, mantinham a plateia atenta, muitas vezes madrugada a dentro.

Este mundo não existe mais. O entretenimento passou à TV, aos computadores que tudo exibem e às viagens que se tornaram muito mais frequentes. Os julgamentos pelo Júri só atraem a atenção nos casos de grande repercussão.

Os advogados criminalistas migraram para os crimes econômicos, que, além de mais rendosos, garante-lhes espaço na mídia.  Os jurados não têm mais tempo e nem interesse em participar de julgamentos, precisam cuidar de sua sobrevivência em um mundo altamente competitivo.

O discutível interesse do réu
A defesa do julgamento pelo Júri sempre se baseou no argumento de ser mais democrático, mais favorável ao acusado, pois os seus iguais o entenderiam melhor que o juiz togado. Para Marlos Ricardo Lima Chaves“… o fato do júri ser composto por homens leigos, menos distantes das mudanças ocorridas na sociedade e, logo, mais aptos a fazer com que a lei se adapte aos caso concreto e não que a realidade se adeque a norma, representa uma segurança para aqueles que serão submetidos a julgamento, visto que o juiz togado seria menos afeito a essa adaptação e mais rígido em suas decisões, tornando-se, dessa forma, mais distante do povo”.[2]

No entanto, atualmente isto é, no mínimo, discutível. Os preocupados com a defesa do cidadão diante do Estado, denominados garantistas, observam que  a influência da mídia pode prejudicar a presunção de inocência do acusado[3] e também levar à condenação com base nos antecedentes, ainda que sem sentença condenatória transitada em julgado (Direito Penal do autor).

O discutível interesse do Ministério Público
Do fato à sentença no processo dos crimes submetidos ao Tribunal do Júri há uma tramitação digna do século XIX. Uma testemunha pode ser ouvida três vezes, Polícia, Justiça e no Júri. Sentença de pronúncia pode ser objeto de recurso em sentido estrito ao Tribunal de Justiça, STJ e STF. Mesmo que sejam absurdos, tomarão quatro ou mais anos. Tudo isto apenas para dizer que o réu pode ir a julgamento. A inclusão na pauta, com todas as formalidades, garante mais uns meses. O adiamento por qualquer causa, assegura a entrada do ano novo. Uma vez julgado, novamente o longo trajeto, TJ, STJ e STF, que manejados habilmente, podem significar mais dez anos.

Mas isto não será nada se os fatos tratarem de homicídio no trânsito, onde se alega dolo eventual. Vejamos um exemplo. O então deputado estadual Fernando Ribas Carli Filho, em 7 de maio de 2009, dirigindo um carro blindado, em Curitiba, segundo consta a 161 e 173 km por hora, atingiu o veículo em que estavam Gilmar Yared,  de 26 anos, e Carlos Murilo de Almeida, de 20, que morreram na hora.[4] Até hoje não foram submetidos a julgamento pelo Tribunal do Júri. Não por culpa do Judiciário, mas sim do sistema processual, cujo grau de ineficiência é de tal ordem que dispensa comentários. Se um dia forem julgados e o Júri desclassificar para crime culposo, a prescrição será inevitável.

A imparcialidade dos jurados na atualidade
Os jurados tem ─ é devem sem dúvida ter ─ absoluta independência e consequente imparcialidade. Claro que eles sofrem, principalmente nas cidades médias e pequenas, a influência dos relacionamentos. Mas isto não é um problema, é decorrência inevitável da vida em sociedade. E um juiz também não está livre disto, dependendo da sua maneira de conduzir a vida.

Há, todavia, um fator novo. Cada vez mais organizações criminosas assumem protagonismo, inclusive promovendo julgamentos. Em Itanhaém, SP, segundo o jornal A Tribuna, de Santos, dois suspeitos de furtar casa de membro do PCC estavam em vias de serem eliminados, medida esta “decidida em sessão do tribunal do crime, na quarta feira a tarde”.[5]

Os “condenados” foram salvos pela ação rápida da Polícia. Mas, se os suspeitos forem pronunciados e submetidos ao Tribunal do Júri, terão os jurados coragem de examinar os fatos com isenção? Sem medo?

A desmoralização do Tribunal do Júri
O julgamento solene no Tribunal Popular, sofre, nos últimos tempos, de uma prática que o desqualifica como instituição, qual seja, o advogado abandona o julgamento. Um exemplo, Tribunal do Júri em Curitiba, dia 31 de março de 2016, com ”Alessandro Meneghel, acusado de matar a tiros o policial federal Alexandre Drummond Barbosa”.[6] Mas, não só advogados. Em Brasília, “O julgamento do fundador da companhia aérea Gol, o empresário Nenê Constantino, acusado de homicídio, foi interrompido nesta segunda-feira (20/3) porque o Ministério Público abandonou o júri”.[7]

Se o advogado ou promotor de Justiça deixa o Plenário o juiz não tem como prosseguir, porque jamais terá alguém, no ato, para substituí-lo. Fenômeno inimaginável no século passado, tem servido para tornar o Júri ainda mais ineficiente.

À vista de todo o exposto, registre-se que as ponderações  aqui feitas não tem a pretensão de serem consideradas verdades absolutas. Busca-se, mais do que tudo, suscitar o debate. Afinal, persistem as razões que levaram o Brasil a adotar, em 1824, o julgamento pelo Tribunal do Júri? Em caso positivo, deve continuar da forma como está?


[1] https://tuliozuccaadvogados.jusbrasil.com.br/artigos/152001221/tribunal-do-juri, acesso em 25/3/2017.

[2] Tribunal do júri: garantia da sociedade ou do réu? https://marlonchaves.jusbrasil.com.br/artigos/121944087/tribunal-do-juri-garantia-da-sociedade-ou-do-reu, acesso 24/3/2017.

[3] Annemaxmille Mendes Quezado Ferrández, A INFLUÊNCIA DA MÍDIA NO TRIBUNAL DO JÚRI À LUZ GARANTISMO PENAL E DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO PENAL, em http://www.trf3.jus.br/biblioteca/trabAcad/TCCAnnemaximilleMendesQuezadoFerrandez.pdf, acesso em 25/3/2017.

[4] http://g1.globo.com/pr/campos-gerais-sul/noticia/2015/05/acidente-provocado-por-ex-deputado-e-que-matou-jovens-completa-6-anos.html, acesso em 25/3/2017.

[5] DIG salva condenados por tribunal do crime. A Tribuna, Santos, 24/3/2017, A-11.

[6] http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/advogado-abandona-tribunal-e-julgamento-e-cancelado-bywkqldutoiat3i8kw4imnqm8, acesso 25/3/2017.

[7] http://www.conjur.com.br/2017-mar-21/mp-abandona-juri-julgamento-nene-constantino-adiado?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook, acesso 22/3/2017.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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