Embargos Culturais

O caso do caminhoneiro congelado e o Direito do Trabalho nos Estados Unidos

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

26 de março de 2017, 8h00

Spacca
A morte de Antonin Scalia (1936-2016) abriu uma vaga na Suprema Corte dos Estados Unidos. Barack Obama não conseguiu indicar o sucessor de Scalia, ainda que tivesse pela frente quase um ano de mandato. Não contava com maioria segura no Congresso e preferiu não arriscar. Donald Trump, seguro de que tem o número suficiente de votos, indicou Neil Gorsuch, que vem sendo escrutinado pelo Senado.

Gorsuch nasceu no Colorado (29 de agosto de 1967), em ambiente católico (inclusive estudou em colégio de jesuítas). Formou-se em Harvard (em 1991, foi colega de Obama). É doutor em Filosofia do Direito pela Universidade de Oxford, onde foi orientado por John de Finnis (conhecidíssimo jusnaturalista); defendeu tese que tratava da eutanásia. Ligado ao Partido Republicano, advogou, trabalhou com o Advogado-Geral no tempo de George W. Bush, foi assessor na Suprema Corte (fora law clerk de Anthony Kennedy) e é juiz em tribunal regional federal (10º Circuito, com sede em Denver, Colorado). Enfrenta agora violenta oposição, por parte dos senadores democratas.

Nesse contexto de enfrentamento os democratas colocaram os holofotes sobre uma polêmica decisão de Gorsuch em rumoroso caso, que tem como pano de fundo o direito do trabalho nos Estados Unidos. Trata-se do caso metaforicamente lembrado como o caso do caminhoneiro congelado[1]. O que houve?

Alphonse Maddin era um motorista de caminhão que trabalhava para a empresa TransAm. Em uma congelada noite de janeiro, dirigindo em temperaturas muito baixas, Maddin percebeu que as rodas da parte de trás do caminhão travaram. Parou na estrada, telefonou para a empresa, relatou o ocorrido e foi informado de que deveria esperar e que não poderia deixar a carga, isto é, não poderia seguir dirigindo apenas a parte da cabine. O aquecimento interno também não funcionou, Maddin dormiu por duas horas, e acordou com sensação de congelamento nos pés e com dormência no tronco. Desesperado, Maddin soltou a parte de trás do caminhão, que ficou estacionada na estrada, e seguiu caminho, buscando ajuda. Depois de quinze minutos a ajuda chegou e Maddin dirigiu de volta ao local dos fatos. Por ter temporariamente abandonado a carga Maddin foi despedido da empresa.

Junto a uma comissão administrativa, Maddin questionou a demissão. Nos Estados Unidos a regulamentação das relações de trabalho é mínima. Não há um código ou uma consolidação de normas trabalhistas. O contrato de trabalho implementa-se informalmente mediante vontade das partes, a chamada regra at will; patrões e empregados são relativamente livres para pactuarem. Em princípio, a União regulamenta matéria trabalhista vinculada a comércio entre os estados, temas mais específicos são tratados pelos próprios estados, como seguro, segurança, salário-mínimo, horas de trabalho, regras para contratação. Em 1935 aprovou-se o NLRA-National Labor Relations Act, também chamado de Wagner Act, que regulamentou relações trabalhistas que afetavam o comércio, dentro do espírito do programa New Deal, com objetivo velado de se eliminarem práticas competitivas destrutivas. Formatou-se agência federal regulamentadora responsável pelas relações trabalhistas, inclusive com competência exclusiva para julgar e compor conflitos, fazendo o papel de uma justiça laboral. Com a criação dessa agência, sedimentou-se que as cortes convencionais, do judiciário, limitam-se a deterem competência para o judicial review em matéria laboral. Os tribunais ficaram relegados ao controle de constitucionalidade e ao duplo grau dos julgamentos feitos agência. Maddin obteve o reconhecimento de que não podia ser despedido, justamente porque entre salvar a própria vida ou salvar a carga do caminhão optou pela vida.

A empresa judicializou a questão, impugnando a decisão administrativa. Dois juízes do 10º Circuito (cuja sede é em Denver, no Colorado) opinaram favor de Maddin. Neil Gorsuch, no entanto, decidiu em favor da empresa, e por isso vem sendo duramente questionado pelos democratas. Maddin invocou uma lei que proibia que empregador demitisse empregado que se deixasse de operar um veículo porque tivesse uma razoável preocupação de que pudesse correr sérios riscos em questões de segurança.

Gorsuch interpretou literalmente a regra, enfatizando que Maddin não teria deixado de operar o veículo, justamente porque dirigiu a cabine do caminhão. Gorsuch assentou que a Maddin a empresa oferecera duas opções: ou esperava ou arrastava o caminhão. Maddin não teria optado de acordo com as opções do empregador, e por isso a demissão estava de acordo com a lei.

Essa percepção literal do direito, que os norte-americanos denominam de textualismo ou de originalismo, da qual Scalia era o mais aberto adepto, é o tendão de Aquiles e ao mesmo tempo o trunfo de Gorsuch, na animada discussão que embala os norte-americanos nesse caso. Para nós brasileiros, o assunto suscita um grande estranhamento. Anima-nos o processo de indicação e escolha de quem vai ocupar a vaga em Washington. Ao mesmo tempo, intriga-nos uma decisão em matéria trabalhista que parece se distanciar de alguns padrões humanitários que supostamente seguimos. Gorsuch foi voto vencido.


[1] TransAm Trucking v. Administrative Review Board, 833 F. 3d 1206.

Autores

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    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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