Observatório Constitucional

Medidas Provisórias estaduais: processo legislativo e normas obrigatórias

Autor

  • Carlos Bastide Horbach

    é advogado em Brasília professor doutor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP e professor do programa de mestrado e doutorado em Direito do UniCEUB.

25 de março de 2017, 8h02

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Poucos temas do constitucionalismo brasileiro pós-1988 mereceram tanta atenção, tantos estudos e tantas críticas quanto a medida provisória. Sucedâneo do decreto-lei das constituições de 1967 e 1969 — entendido como mais um dos “entulhos autoritários” a serem expurgados na constituinte —, o instituto da medida provisória converteu-se, nos quase 29 anos de vigência do atual texto constitucional, num dos mais importantes instrumento de governo de que dispõe o Chefe do Executivo, em especial nos processos de crises sucessivas pelas quais passa o Legislativo brasileiro.

Entretanto, há um aspecto do regime das medidas provisórias que não mereceu, em regra, uma atenção especial, qual seja, o da utilização desse instrumento no âmbito estadual e, também, no âmbito municipal. Essa discussão, relacionada diretamente com o poder de auto-organização dos entes federados, apresenta-se ainda mais intrigante quando associada à farta jurisprudência do STF sobre as normas de observância obrigatória, em especial aquelas que regem o processo legislativo.

Todas as regras condicionantes da autonomia estadual podem ser classificadas como “normas de observância obrigatória” para os Estados, as quais são assim sistematizadas por Léo Ferreira Leoncy:

“Na Constituição de 1988, os limites à autonomia dos Estados-membros se apresentam sob múltiplas formas e funções. Vêm consagrados (a) ora expressamente (normas expressas), (b) ora implicitamente (normas implícitas); aparecem sob a formulação (c) ora de um mandamento (normas mandatórias), (d) ora de uma vedação (normas vedatórias).

Por outro lado, há também uma variedade de normas em que tratou o constituinte federal de estabelecer limites aos Estados. Assim, para se enumerar apenas as categorias mais conhecidas, é possível apontar (a) os princípios constitucionais sensíveis, (b) as normas de preordenação constitucional, (c) as normas federais extensíveis e (d) os princípios constitucionais estabelecidos”.[1]

Genericamente, pode-se concluir que normas de observância obrigatória — literalmente reproduzidas ou não no direito local — são aquelas editadas pelo poder constituinte federal cujo conteúdo implique limitação à autonomia estadual.

Algumas dessas normas são expressas no texto constitucional federal, como os princípios sensíveis do artigo 34, outras, porém, dependem do labor interpretativo do Supremo Tribunal Federal, que como intérprete da Constituição assume — como é da sua essência de tribunal da federação — seu papel de definidor da federação real e efetiva, da dinâmica federativa brasileira.

Exemplo dessa atividade prospectiva do STF na definição das normas de observância obrigatória se deu com a discussão acerca da aplicação, ou não, aos Estados das regras de processo legislativo constantes da Constituição Federal. Tal “problema foi suscitado ante o silêncio da Constituição atual sobre o assunto, enquanto a Carta passada expressamente determinava que as regras sobre processo legislativo deveriam ser guardadas também nos Estados”.[2]

No início da vigência da Constituição de 1988, os julgados indicavam a dúvida quanto à matéria e sinalizavam no sentido da não-extensão das regras constitucionais de processo legislativo aos Estados, como se pode verificar, por exemplo, na apreciação, pelo Plenário da Suprema Corte, da ADI 56 (MC, relator ministro Célio Borja, DJ de 04.08.1989). Neste precedente, o tribunal, seguindo o voto do relator, indeferiu a medida liminar pleiteada pelo Governador do estado da Paraíba exatamente por não encontrar na Constituição o dispositivo “que torna obrigatória para os Estados a observância das normas dos seus artigos 61, II, a e b e 63, I”.

E ainda concluía o ministro Célio Borja: “Tal omissão decorre da inexistência, na lei fundamental em vigor, das numerosas regras de simetria compulsória entre as ordens jurídicas da União e dos Estados que repontavam na Carta de 1967, na redação de sua Emenda nº 01/69”.

Entretanto, essa inicial tendência de afastamento da rígida vinculação entre normas constitucionais federais e estaduais — tal como operada pelo artigo 200, caput, da Emenda Constitucional 1/69[3] — não se manteve. Logo em seguida, o STF assentou que as normas de processo legislativo previstas na Constituição Federal aplicam-se a todos os entes federados, num movimento jurisprudencial que se manifesta, por exemplo, no julgamento da ADI 89 (relator ministro Ilmar Galvão, DJ de 20.08.1993).

Essa orientação tolhe duplamente o poder constituinte estadual, que se vê impedido de estabelecer normas próprias de criação do direito local e igualmente não pode disciplinar matérias cuja iniciativa não esteja sob a competência parlamentar, como é o caso do regime jurídico dos servidores públicos.

Essa restrição do direito local apresenta-se especialmente incisiva no que toca ao processo legislativo. No campo da produção das normas estaduais, as imposições do STF à ordem jurídica local descem a detalhes. Por exemplo, o estado não pode exigir, em sua Constituição, que determinada matéria seja objeto de lei complementar, quando a Constituição Federal exige apenas lei ordinária; tal como decidido na ADI 2.872, relator para acórdão ministro Ricardo Lewandowski, DJ de 05.09.2011. Por outro lado, deve-se observar, no estado, a regra segundo a qual o projeto de iniciativa reservada do Chefe do Poder Executivo não pode ser alterado por emendas parlamentares que acarretem aumento de despesas, como assentado no julgamento da ADI 2.170, relator ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 09.09.2005. Não pode ainda o estado alterar, em sua Constituição, o quorum de aprovação de matérias legislativas fixado na Constituição Federal, de acordo com o entendimento fixado na ADI 486, relator ministro Celso de Mello, DJ de 10.11.2006, em que se declarou a inconstitucionalidade de norma da Constituição do Estado do Espírito Santo que previa uma maioria de 4/5 dos deputados estaduais para aprovação de emendas constitucionais. Já na apreciação da medida cautelar na ADI 1.160, relator ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 19.05.95, o STF asseverou que não pode a Constituição estadual estender o rol de competências de iniciativa legislativa privativa para além daquelas fixadas na Constituição Federal.

Há ainda outro aspecto interessante decidido pelo Supremo no que toca à reprodução, em nível estadual, das normas federais de processo legislativo, como se pode verificar no acórdão da ADI 1.546, relator ministro Nelson Jobim, DJ de 06.04.2001. Nesse feito, o Procurador-Geral da República impugnou o artigo 29 da Constituição do Estado de São Paulo, que criava uma exceção à regra do artigo 67 da Constituição Federal, segundo a qual “a matéria constante de projeto de lei rejeitado somente poderá constituir objeto de novo projeto, na mesma sessão legislativa, mediante proposta da maioria absoluta dos membros de qualquer das Casas do Congresso Nacional”.

Todos esses exemplos demonstram que, em nome da preservação da separação de poderes consagrada no texto constitucional, as mais diferentes regras de processo legislativo constantes da Constituição Federal — das mais importantes às mais comezinhas — são de reprodução obrigatória pelos estados-membros, que incorrem em inconstitucionalidade quando delas se afastam, inovando no plano de suas próprias constituições.

Nesse quadro, muito se discutiu nos primeiros anos de vigência da Constituição de 1988 acerca da legitimidade da previsão, nas constituições estaduais, do instituto da medida provisória. Alegavam os defensores da possibilidade de conferir aos Governadores o poder da decretação de urgência que o texto atual não reproduzira a vedação constante do regime constitucional pretérito, que expressamente impedia que os estados consagrassem, em suas ordens jurídicas, o decreto-lei. Assim, o que não era vedado ficaria à disposição livre do poder constituinte decorrente. Esse, aliás, foi o fundamento do voto condutor no julgamento, pelo Supremo, da medida cautelar ADI 812, relator ministro Moreira Alves, DJ de 14.05.93.

Tal orientação foi chancelada com o advento da Emenda Constitucional n. 5, de 1995, que deu nova redação ao § 2º do artigo 25 do texto constitucional federal, que passou a afirmar que “cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei, vedada a edição de medida provisória para a sua regulamentação (grifos não originais). Ora, se a exploração do gás canalizado é matéria a ser regulamentada por meio de lei estadual e a Constituição Federal veda a utilização de medida provisória para tal fim, essa medida provisória somente pode ser uma medida provisória estadual.

Entretanto, mesmo certo que os estados poderiam ter no seu processo legislativo o instituto da medida provisória, não estava certo como se daria a adaptação do modelo federal ao plano estadual; o que somente foi esclarecido pela jurisprudência do STF no julgamento da ADI 425, relator ministro Maurício Corrêa, DJ de 19.12.2003; na qual era questionada a constitucionalidade de leis tocantinenses derivadas da conversão de medidas provisórias estaduais, o que fez com que a matéria mais ampla da constitucionalidade da adoção desse modelo em nível estadual fosse analisada em preliminar ao mérito.

As conclusões desse julgado foram assim sistematizadas por José Levi Mello do Amaral Júnior, expressando o regime das medidas provisórias estaduais:

“Assim, a medida provisória estadual – se acaso prevista como fonte do direito estadual – deve: a) ser ensejada apenas e tão-somente por casos de relevância e urgência; b) observar as limitações materiais postas em nível federal e aplicáveis na esfera estadual; c) ser submetida à apreciação parlamentar para conversão em lei, inclusive com a possibilidade de apresentação de emendas parlamentares; e d) possuir regime de prazos no mínimo tão rigoroso quanto àquele adotado em nível federal”.[4]

Ante tal perspectiva, sendo a decretação de urgência uma exceção na separação de poderes, o padrão federal seria caracterizador do máximo de competências legislativas que poderiam ser dadas ao Chefe do Executivo, podendo a Constituição estadual – na sua autonomia – reproduzir literalmente esse padrão ou fixar regras em que tais competências fossem mais restritas, mas nunca – porém – definir poderes que ultrapassassem aqueles do Presidente da República.

Haveria, de tal forma, um poder de escolha do estado-membro entre ter, ou não, a medida provisória no rol das espécies normativas estaduais; bem como entre transplantar o modelo federal para o ordenamento estadual ou desenhar outro, em que os poderes legislativos do Governador do Estado fossem menos amplos que os do Presidente da República.

Essa construção, todavia, é posta em xeque por posterior julgado jurisprudência do STF. No julgamento da ADI 2.391, relatora ministra Ellen Gracie, DJ de 16.03.2007; a Suprema Corte parece ter fixado que o padrão federal das medidas provisórias é, na sua integralidade, de reprodução obrigatória para aqueles estados que optaram por conferir a seus Governadores esse poder de decretação de urgência.

A ação direta em questão impugnava, exatamente, os dispositivos da Constituição do Estado de Santa Catarina que, em sua redação original, regulavam as medidas provisórias, reproduzindo as normas da Constituição Federal anteriores à Emenda Constitucional n. 32, de 2001.

Tendo a ação sido ajuizada em janeiro de 2001 e apresentando como um dos parâmetros de controle o artigo 62 da Constituição Federal em sua redação inicial, houve quando da apreciação da ação, em 18.06.2006, uma discussão acerca da perda de objeto do feito. Isso porque a jurisprudência do STF é pacífica em considerar prejudicada a ação direta quando modificado, por emenda constitucional superveniente ao ajuizamento, o padrão de controle.

Concluíram os ministros, na apreciação dessa questão, que a ação poderia ser julgada em relação ao caput do artigo 51 da Constituição catarinense, que reproduzia, com pequenas alterações, o caput do artigo 62 da Constituição Federal. Entretanto, consideraram que a EC 32 revogara os §§ 1º, 2º e 3º do mesmo artigo 51 do texto constitucional catarinense, que passaram a estar em desconformidade com as normas federais. Essa revogação indicada pelo STF levou a Assembleia de Santa Catarina a adaptar sua redação ao novo modelo federal, como visto no item anterior deste trabalho.

Ou seja, o prazo de trinta dias previsto originariamente pelo constituinte catarinense foi considerado revogado pela Suprema Corte, assim como o foram todos os demais aspectos em dissonância com a EC 32, de 2001. O padrão federal das medidas provisórias é, portanto, de observância obrigatória.

Diante dessa decisão e tendo em vista toda a jurisprudência do Supremo sobre normas de processo legislativo, é impossível não questionar a correção do entendimento segundo o qual a previsão das medidas provisórias em nível estadual é uma faculdade do constituinte local. Isso porque, não se pode olvidar, as medidas provisórias são institutos de processo legislativo, ou — como ensina José Levi Mello do Amaral Júnior, citando o ministro Moreira Alves — são atos bifrontes: ato normativo provisório para os destinatários de suas normas e projeto de lei de conversão para o Congresso Nacional.[5]

Lembrando que as normas de processo legislativo são de observância obrigatória por que — para utilizar as palavras do ministro Ilmar Galvão no precedente antes citado — são corolários da separação dos poderes. Indaga-se: há característica mais marcante e mais debatida da separação de poderes brasileira do que a possibilidade de o chefe do Executivo editar medidas provisórias com força de lei? A resposta no sentido de reconhecer o tema das medidas provisórias como central na caracterização da separação de poderes no Brasil faz com que, na lógica da jurisprudência do Supremo, seja esse modelo impositivo aos estados-membros.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).


[1] Léo Ferreira Leoncy. Controle de constitucionalidade estadual – As normas de observância obrigatória e a defesa abstrata da Constituição do Estado-membro, São Paulo: Saraiva, 2007, p. 14.
[2] Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco. Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Saraiva, 2007, p. 766.
[3] “Art. 200. As disposições constantes desta Constituição ficam incorporadas, no que couber, ao direito constitucional legislado dos Estados”.
[4] José Levi Mello do Amaral Júnior. Medida provisória e sua conversão em lei. A Emenda Constitucional n. 32 e o papel do Congresso Nacional, São Paulo: RT, 2004, p. 218.
[5] José Levi Mello do Amaral Júnior. Medida provisória e sua conversão em lei, p. 122-123.

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