Opinião

Cenário atual requer que o STF convoque magistrados instrutores

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24 de março de 2017, 8h50

*Artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo desta sexta-feira (24/3) com o título A hora e a vez da Justiça.

A excepcionalidade do momento político que o Brasil atravessa, além dos danos de ordem econômica e social que provoca, reveste-se de profundo cunho moral, com efeitos diretos sobre a governabilidade e a credibilidade das instituições. É, afinal, a elite dirigente do país que está no banco dos réus.

A legislação determina que esses agentes públicos de primeiro escalão — presidente da República, deputados federais, senadores, ministros de Estado — sejam julgados no Supremo Tribunal Federal. Trata-se do foro por prerrogativa de função, mais conhecido por foro privilegiado, concebido para resguardar os mais altos cargos do Estado — e não necessariamente seus ocupantes.

O legislador, certamente, não imaginou nem um cenário como o atual, com um volume colossal de inquéritos, para além da capacidade estrutural da mais alta corte do país, nem a extensão de seus beneficiários, claramente excessiva, a reclamar redução.

O resultado é que o clamor da sociedade por justiça corre o risco de não ser atendido. Não ao menos em prazo razoável, o que leva a incorrer naquilo que Ruy Barbosa considerava “injustiça qualificada e manifesta”, qual seja, “a justiça atrasada”.

São hoje mais de 500 processos (inquéritos e ações penais), de competência originária, em trâmite no STF, que se avolumam em decorrência das investigações em curso, complexas e numerosas.

A diretriz constitucional da duração razoável do processo não pode, em hipótese alguma, ser negligenciada, sob pena de descrédito da própria Justiça. Mas isso tem ocorrido — e pode piorar. Basta ver o volume de delações de executivos da Odebrecht, além do de outras empreiteiras, em situação análoga, ainda em curso, envolvendo agentes públicos com assento no foro por prerrogativa de função.

Esse cenário impõe aos ministros do STF, que não é tribunal penal, uma intensidade de atuação incompatível com a estrutura disponível, com reflexos em sua rotina de Corte Constitucional.

Diante da impossibilidade de solução em curto prazo, já que depende de debate e alteração legislativa, o Supremo Tribunal deve contar com a convocação de magistrados instrutores, para que a justiça se concretize. A demora na prestação jurisdicional agrava o ambiente psicossocial adverso, que tem transtornado o país.

O efeito mais deletério se dá na predisposição manifesta contra a atividade política, em que alguns começam a considerá-la um mal em si mesmo, e não ela própria vítima da má conduta de alguns agentes públicos. O combate, porém, convém não esquecer, é contra a corrupção, não contra a política.

Não se pode permitir que o saneamento moral da vida pública — indispensável e inadiável — sirva de pretexto para o advento de tiranias, qualquer que seja a ideologia que pretenda fundamentá-las, à direita ou à esquerda. Seria mais imoral e lesivo ainda para o país. Crise política se resolve dentro da política; os males da democracia só encontram remédio dentro da ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, observando-se o devido processo legal e a plena defesa.

Se a Justiça não pode ser lenta, e não pode, também não pode ser sumária, desprezando os seus ritos.

A justa indignação com que a sociedade brasileira recebe essas delações — gravíssimas, sob todos os aspectos — não pode ser objeto de manipulação por correntes extremistas que amaldiçoam a política para melhor dominá-la. É preciso que haja serenidade e bom senso para que não se caia na armadilha do autoritarismo.

Não se pode ignorar o clamor das ruas, mas também não se pode ignorar a facilidade com que ele é passível de manipulação, sobretudo em tempos de internet, com suas redes sociais, que permitem pulverizar e manipular a informação — e mexer com o emocional das pessoas. Mais que nunca, os ritos judiciais precisam ser observados. É preciso, antes de mais nada, separar o joio do trigo.

Os delitos relatados são de teor e gravidade diferenciados e como tal têm de ser tratados, sob pena de igualar os desiguais. A cada qual o seu quinhão. O momento histórico oferece oportunidade pedagógica única, que, dentro da lei e da ordem, há de propiciar uma graduação cívica sem precedentes à cidadania brasileira.

Não defendemos corruptos. Achamos que todos, sem exceção, devem responder por seus atos, observado o devido processo legal, em que o direito de defesa seja plenamente respeitado.

A justiça não é um espetáculo, um show. Compreende-se a expectativa com que a sociedade aguarda a responsabilização dos agentes públicos que delinquiram. Mas o papel dos operadores do Direito — aí incluídos juízes, procuradores e advogados — é o de moderador, que, ao contrário do que alguns supõem, nada tem que ver com acobertar delitos, mas, sim, expô-los com absoluta clareza e segurança. E isso não se pode dar de maneira sumária. Não existe justiça sumária.

A própria representação da Justiça — os dois pratos da balança — pressupõe acusação e defesa, mediante os fatos contidos nos autos. O vazamento de delações atropela esse rito e condena o réu por antecipação. É a balança de um prato só.

Pouco importa que, na sequência, o réu seja inocentado: os danos já se terão mostrado irreversíveis. E aprendemos, ainda nos bancos escolares, que não há maior revés para a justiça — revés sobretudo moral — que a condenação de um inocente. A advocacia brasileira, nesses termos, vive um dos maiores desafios de toda a sua história: lutar pela justiça sem permitir que, em seu nome, haja injustiça.

O papel do STF é vital. Mas para que o exerça é preciso que funcione. E isso, diante da insuficiência estrutural que decorre da presente conjuntura, não lhe oferece alternativa senão a que sugerimos: requisitar, dentro do que a lei lhe faculta, todos os recursos humanos disponíveis da magistratura, para que atenda à demanda que aí está. A hora é da (e de) Justiça.

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