Opinião

A prescrição penal como limite da emendatio libelli

Autores

  • Rafael Araripe Carneiro

    é doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade Humboldt de Berlim professor e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Improbidade Administrativa do IDP. Sócio-fundador do Carneiros & Dipp Advogados.

  • Igor Lacerda de Vasconcelos

    é advogado do Carneiros Advogados graduado pela Universidade de Brasília. Possui formação complementar em “Criminal Justice Studies” pelo Waterford Institute of Technology na Irlanda.

23 de março de 2017, 6h49

O instituto da emendatio libelli possui previsão expressa no artigo 383 do Código de Processo Penal e autoriza que o juiz, sem modificar a descrição dos fatos contida na denúncia ou queixa, atribua-lhes nova capitulação jurídica, ainda que disso resulte a aplicação de pena mais grave ao acusado. Não se trata de instituto voltado somente ao juiz de primeira instância. A jurisprudência vem admitindo a emendatio libelli em segundo grau, impondo-se apenas que, em caso de recurso exclusivo da defesa, não seja agravada a situação do réu em função da proibição de reformatio in pejus (HC 201.343/STJ, rel. min. Sebastião Reis Júnior, DJe 10/10/2014; HC 104.047/STJ, rel. min. Felix Fischer, DJe 3/11/2008).

Questão interessante diz respeito à possibilidade de modificar a capitulação legal originalmente estampada na denúncia, por meio da emendatio libelli, para imputar crime mais grave, quando já transcorrido o prazo prescricional pela pena máxima em abstrato [que é aquela considerada antes do trânsito em julgado para a acusação] do crime indicado na inicial acusatória. Isso porque a nova qualificação jurídica dos fatos geralmente repercute na pena máxima cominada e, por consequência, no prazo prescricional.

Suponhamos uma denúncia que narre crime de roubo, mas capitule os fatos como furto. Nesse caso, o julgador pode entender que a qualificação jurídica dos fatos da denúncia não foi correta e condenar o acusado pelo crime de roubo (artigo 157 do CP), cuja pena máxima é de 10 anos, enquanto que o crime de furto (artigo 155) possui pena máxima em abstrato de 4 anos. Tem-se, assim, significativa alteração do prazo prescricional, que passa de 8 (furto) para 16 anos (roubo), nos termos do artigo 109 do Código Penal.

A partir daí, surgem importantes questionamentos: qual deve ser o prazo considerado para o cálculo da prescrição pela pena máxima em abstrato? O do crime originalmente capitulado na denúncia ou do crime da condenação? A resposta nem sempre é simples, e uma análise em perspectiva pode mostrar as vicissitudes que o tema propõe.

As repercussões da emendatio libelli na contagem do prazo prescricional
Ainda que o réu se defenda dos fatos apresentados na denúncia, não do tipo penal a ele imputado, a prescrição pela pena em abstrato deve ser averiguada com base na capitulação legal proposta na denúncia recebida pelo juiz. Em outros termos, caso o magistrado ou tribunal atribua nova qualificação jurídica aos fatos descritos pela acusação para imputar crime mais grave ao réu por meio da emendatio libelli, até esse exato marco temporal deve ser observado o prazo prescricional estabelecido pelo tipo penal originalmente capitulado na denúncia.

Essa tese foi acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça na petição incidental nos EDcl no AREsp 689.468/SP, rel. min. Rogério Schietti, julgada no dia 14/2/2017, quando a 6ª Turma, por unanimidade, extinguiu a punibilidade do denunciado por crimes de telecomunicações. Apesar da já avançada fase processual (embargos de declaração no agravo regimental no agravo em recurso especial), o STJ acolheu a preliminar de mérito da prescrição, pois entendeu tratar-se de questão de ordem pública, reconhecível de ofício a qualquer momento e em qualquer grau de jurisdição. Confira-se trecho do acórdão:

“Preliminarmente, a defesa sustenta que, como foi imputada ao réu, na denúncia, a suposta prática do delito previsto no art. 70 da Lei n. 4.117/1962, por duas vezes (uma na forma tentada e uma consumada), a prescrição pela pena em abstrato deve ser analisada com base na reprimenda prevista nesse dispositivo legal.

(…)

À vista do exposto, por ser matéria de ordem pública, que pode ser apreciada em qualquer fase processual, reconheço a ocorrência da prescrição da pretensão punitiva e declaro, por conseguinte, extinta a punibilidade do embargante no que aos delitos apurados nos autos” (trecho do acórdão no EDcl no AREsp. 689.468/SP, rel. min. Rogério Schietti, j. 14/2/2017).

A situação fática posta no caso era a seguinte: o Ministério Público Federal ofereceu denúncia pelo crime de instalação ou utilização irregular de telecomunicações, previsto no artigo 70 da Lei 4.117/62, que é crime de menor potencial ofensivo, com pena máxima de 2 anos e prazo prescricional de 4 anos (artigo 109, V, do CP). O acusado foi absolvido em primeira instância e o MPF requereu, em sede de apelação, a condenação pelo crime de desenvolvimento clandestino de telecomunicações, nos termos do artigo 183 da Lei 9.472/97, cuja pena máxima em abstrato é de 4 anos, e o prazo prescricional é de 8 anos (artigo 109, IV, do CP).

O Tribunal Regional Federal da 3ª Região deu provimento à apelação para condenar o réu, em segunda instância, pela prática do crime mais grave previsto no artigo 183 da Lei 9.472/97, o que afastaria a extinção da punibilidade pela prescrição com base na pena máxima em abstrato do crime capitulado na denúncia, do artigo 70 da Lei 4.117/62.

Sucede que a decisão da corte regional de atribuir nova qualificação jurídica dos fatos — imputando crime mais grave — ocorreu após o exaurimento do prazo prescricional com base na capitulação jurídica da inicial acusatória. Assim, o STJ concluiu pelo reconhecimento da extinção da punibilidade, por não ser possível ignorar o crime originalmente capitulado na denúncia.

Essa interpretação jurídica confirma as premissas estabelecidas pela corte em precedente datado de 2011, quando foi fixada a tese de que, “embora seja provisória a classificação dada pelo Ministério Público na denúncia, a prescrição pela pena em abstrato deve ser averiguada com base na capitulação nela proposta e recebida pelo Magistrado” (HC 121.743/RN, 5ª Turma, rel. min. Laurita Vaz, DJe 7/2/2011). Nesse caso, o STJ refutou o aditamento da denúncia com nova classificação jurídica dos fatos após verificada a prescrição com base nos crimes originalmente capitulados.

A emendatio libelli e seus limites frente aos marcos interruptivos da prescrição
Os que defendem a posição de que é possível a emendatio libelli mesmo após o transcurso do prazo prescricional do crime elencado na denúncia afirmam que o réu se defende dos fatos que lhe são imputados, e não de sua capitulação jurídica, o que conferiria ampla liberdade ao julgador para utilizar, como parâmetro de contagem do prazo prescricional, o tipo penal que no seu entender melhor se adeque à situação fática dos autos.

Contudo, a nova capitulação legal, além de poder provocar prejuízos à defesa técnica do acusado diante da surpresa, não pode ignorar os marcos interruptivos da prescrição, dispostos taxativamente no artigo 117 do Código Penal, que dispõe:

“Art. 117 – O curso da prescrição interrompe-se: 

I – pelo recebimento da denúncia ou da queixa; 

II – pela pronúncia; 

III – pela decisão confirmatória da pronúncia;  

IV – pela publicação da sentença ou acórdão condenatórios recorríveis; 

V – pelo início ou continuação do cumprimento da pena; 

VI – pela reincidência”.

Dessa forma, a prescrição será regulada pela pena máxima em abstrato do delito previsto na exordial acusatória, até que sobrevenha novo marco interruptivo da prescrição nos termos do artigo 117 do CP. Essa interpretação é a que melhor se coaduna com os princípios constitucionais da segurança jurídica e do devido processo legal, sob pena de se permitir novas capitulações legais com o intuito primário de afastar a prescrição em prejuízo ao réu.

Assim, caso a denúncia tenha sido oferecida e recebida com determinada definição jurídica, caberá ao julgador observar o prazo prescricional pela pena máxima em abstrato deste delito, antes de proceder a qualquer alteração na qualificação jurídica dos fatos.

A prescrição é matéria prejudicial que impede a análise do mérito da ação penal, inclusive em grau de recurso, o que exige constante atenção aos prazos prescricionais. O entendimento perfilhado pela melhor doutrina ressalta o caráter prejudicial da prescrição. Veja-se:

“A prescrição (…) constitui-se em matéria preliminar, isto é, impede a análise do mérito da ação penal, seja pelo juízo natural, seja em grau de recurso. Logo, em caso de prescrição não há falar em absolvição ou condenação, apenas em extinção da punibilidade. Nessa esteira, dispunha a Súmula 241 do extinto Tribunal Federal de Recursos: “A extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva prejudica o exame de mérito da apelação criminal” (Masson, Cleber. Prescrição Penal como Direito Fundamental: correlação lógica entre limites estatais ao direito de punir. In Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana, p. 817).

Em conclusão, a tese jurídica que opera em favor da defesa é a de que, transcorrido o prazo prescricional com base na pena máxima em abstrato do crime imputado na denúncia recebida, deve-se reconhecer a extinção da punibilidade, não podendo o juiz ou tribunal condenar o acusado por crime mais grave que viesse a afastar a prescrição. O novo enquadramento legal não tem o condão de retroagir para superar a prescrição que tenha se consumado antes da efetivação da emendatio libelli.

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