Opinião

Complexidade da guerra fiscal de ICMS exige saída organizada (I)

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23 de março de 2017, 9h00

O pior para uma empresa beneficiada por incentivos questionáveis do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) não é perder seu incentivo angariado de forma irregular, em parte e nem mesmo no todo, mas saber se o mesmo acontecerá com seu concorrente. Guerra do ICMS não é só um problema tributário, acima de tudo é uma questão de concorrência exacerbada.

Foi muito fácil embarcar nessa guerra de incentivos: em essência, bastava descobrir e comparar incentivos oferecidos por outros estados. Será muito complicado desembarcar da guerra fiscal porque não se deveria dela sair ou reduzir isoladamente, sob risco de abrir o diferencial para os incentivos concedidos pelos estados ou recebidos elas empresas concorrentes.

Se, para entrar na guerra, bastava procurar os diferentes estados e, no limite, sempre se esperava conseguir algum benefício equivalente ou próximo daquele que um contribuinte recém-instalado já conseguira. Já para sair da guerra, há uma incerteza monumental, menos pelos aspectos legais em si (afinal, todos envolvidos há muito sabem de sua fragilidade legal e do posicionamento recorrente do Supremo Tribunal Federal nesta matéria), mas pelas condições econômicas e de competitividade (afinal, não se sabe se o concorrente terá o benefício reduzido na mesma proporção ou até mesmo se ele também perderá um incentivo que lhe ameaçam tirar abruptamente).

O objetivo deste artigo é defender que, diante dos desafios e complexidades que a guerra fiscal de ICMS originou, é premente buscar uma saída nacional, coordenada e simultânea para todos os contribuintes e fiscos estaduais, evitando-se as consequências indesejáveis de atos unilaterais dos atores institucionais.

De tempos em tempos, a agenda de julgamentos do Plenário do STF contempla a inclusão de ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) relacionadas aos incentivos fiscais de ICMS concedidos unilateralmente pelos Estados, isto é, sem sua submissão ao Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), conforme determinam os artigos 155, § 2°, XII, “g”, da Constituição e 2º, § 2º, da Lei Complementar 24 de 1975. Nesse sentido, as ADIs 2.663 e 3.796 foram apreciadas pelo STF em 8/3/2017 e a ADI 5.244 está prevista para ser julgada pelo STF na sessão desta quinta-feira (23/3).

A inclusão desses processos em pauta chama a atenção, principalmente, porque a pacificação da questão relacionada aos incentivos fiscais de ICMS está em debate no Congresso Nacional (PLP 54/2015 e PLS 407/2015) e, sob certo aspecto, no próprio STF, em razão da pendência de apreciação da Proposta de Súmula Vinculante (PSV), segundo a qual “qualquer isenção, incentivo, redução de alíquota ou de base de cálculo, crédito presumido, dispensa de pagamento ou outro benefício fiscal relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do Confaz, é inconstitucional” (PSV 69).

A questão é complexa e necessita de uma solução discutida que permita acabar com a guerra fiscal, preservar a segurança jurídica daqueles contribuintes que acreditaram na palavra do Estado e não causar novos desvios concorrenciais entre as empresas.

Diante da necessidade de se garantir a segurança jurídica e em função dos efeitos econômicos que o fim abrupto das desonerações causa, há, com o escólio de respeitável doutrina,[1] vários pedidos de modulação dos efeitos da aludida proposta de súmula, realizados por diversas entidades representativas da sociedade civil.

É preciso observar que o Brasil possui um sistema tributário caracterizado por regressividade, má-distribuição da carga, baixo retorno social, baixo estímulo a investimentos, entre outros vícios que tornam a tributação injusta,[2] segundo os “Indicadores de Equidade do Sistema Tributário Nacional”. Agravante deste contexto é exatamente a Guerra Fiscal existente entre os estados relativamente ao ICMS.

Apesar das disposições legais e constitucionais, os estados têm ignorado a necessidade de submissão de seus incentivos de ICMS ao Confaz, concedendo-os unilateralmente com vistas à atração de empreendimentos para seus territórios, geralmente sob a justificativa de reduzir as desigualdades regionais.[3]

Não se desconhece que o Supremo Tribunal Federal possui mais de quarenta julgados em sede de controle abstrato de constitucionalidade declarando a inconstitucionalidade de benefícios ou incentivos fiscais de ICMS, seja qual for a sua espécie, na hipótese de ausência de celebração de Convênio-Confaz.

Sob os auspícios da Constituição Federal de 1988, essa postura do STF teve início em 27 de setembro de 1989, quando o Plenário deferiu medida liminar na ADI- MC 84/MG (Rel. Min. Sydney Sanches, Pleno, DJ 6.10.1995)[4] para suspender a eficácia de normas da Constituição de Minas Gerais que estabeleciam a não incidência de ICMS sobre encargos financeiros incorporados ao valor da operação em vendas a prazo, saídas de leite “in natura” para consumo em operações internas, assim como isenção para microempresa.

Na ocasião, o Supremo vislumbrou a presença de verossimilhança das alegações do Estado de Minas Gerais[5] para a concessão da liminar, “uma vez que a própria Constituição Federal diz que, com relação às isenções de tributos e aos incentivos de benefício fiscal, tal matéria deva ser regulada mediante deliberação dos Estados-membros e do Distrito Federal, para que não haja, como posto na inicial, um desequilíbrio tributário entre um Estado e outro, fazendo com que até o equilíbrio econômico dos estados federados se desfaça em benefício de um Estado apenas”.[6] Referida liminar, concedida em 1989, veio a ser confirmada no julgamento de mérito da ação direta, em 1996.[7]

Mais de duas décadas depois, em 2015, o Supremo manteve a mesma linha decisória quando do julgamento da ADI 4.481.[8] Nessa assentada, foram declaradas inconstitucionais algumas normas da Lei 14.985/2006, do Estado do Paraná, que, em essência, previam o parcelamento do ICMS em até quatro anos, sem o pagamento de juros ou correção monetária, e a concessão de créditos fictícios de ICMS, de modo a reduzir artificialmente o valor do tributo.

Seguindo a jurisprudência do tribunal, o voto do relator, ministro Roberto Barroso, reafirmou que “a concessão unilateral de benefícios fiscais relativos ao ICMS, sem a prévia celebração de convênio intergovernamental, nos termos da LC 24/1975, afronta o artigo 155, § 2º, XII, “g”, da CF”,[9] considerando que “a razão de ser da referida exigência consiste na preservação do equilíbrio da tributação entre os entes da Federação, dada a relevância do regime do ICMS para a manutenção da harmonia do pacto federativo”.[10]

Apesar da manutenção do entendimento de que são inconstitucionais os incentivos fiscais concedidos sem amparo em Convênio do Confaz, em 2014 o Supremo inovou ao modular os efeitos de seu julgado para frente (ex nunc), isto é, para que a inconstitucionalidade não atingisse os fatos concretos realizados à luz da legislação então declarada inconstitucional.

Com efeito, até o final de 2014, a jurisprudência do tribunal era firme no sentido de não admitir “a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade em casos de leis estaduais que instituem benefícios sem o prévio convênio exigido pelo artigo 155, parágrafo 2º, inciso XII, da Constituição Federal”.[11] Essa vedação à concessão de efeitos prospectivos de suas decisões fundamentava-se no argumento de que “a modulação dos efeitos temporais da declaração de inconstitucionalidade no presente caso consistiria, em essência, incentivo à Guerra Fiscal, mostrando-se, assim, indevida”[12] — ressalvados dois casos em que, por questões de excepcional interesse público, foi concedida uma sobrevida limitada à legislação impugnada.[13]

Na ADI 4.481, o Supremo validou a adoção de efeitos prospectivos, considerando que “a norma em exame vigorou por oito anos, com presunção de constitucionalidade, de modo que a atribuição de efeitos retroativos à declaração de inconstitucionalidade geraria um grande impacto e um impacto injusto para os contribuintes”.[14] Segundo o Relator, referida modulação decorreria de uma ponderação “entre a disposição constitucional tida por violada e os princípios da boa-fé e da segurança jurídica”. A concessão de efeitos prospectivos às decisões relacionadas à guerra fiscal de ICMS foi reiterada pelo STF quando da apreciação das ADIs 2.663 e 3.796 em 8/3/2017.

Clique aqui para ler a segunda parte do artigo.


1 FUNARO, Hugo. Guerra fiscal: efeitos jurídicos da aprovação da proposta da Súmula Vinculante 69 pelo STF. CONJUR, 2014. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-out-03/hugo-funaro-efeitos-juridicos-aprovacao-sumula-vinculante-69#_ftn1>. Acesso em: 11 mar. 2016, p. 1; RIBEIRO, Maria de Fátima. Guerra fiscal: a súmula vinculante e a cobrança retroativa de tributos e multas. In: QUEIROZ, Mary Elbe (Org.). Tributação em foco: a opinião de quem pensa, faz e aplica o direito tributário. 1. ed. Recife: CEAT IPET FOCO FISCAL, 2013, v. 1, p. 461; SCAFF, Fernando Facury. Guerra fiscal e súmula vinculante: entre o formalismo e o realismo. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Org.). Grandes questões atuais do direito tributário. v. 18. São Paulo: Dialética, 2014, p. 107; ANDRADE, Fábio Martins. Justiça tributária: modulação de súmula contra guerra fiscal é necessária. CONJUR, 2012. Disponível em:< http://www.conjur.com.br/2012-mai-23/modulacao-sumula-guerra-fiscal-necessaria>. Acesso em: 11 mar. 2016, p. 1.

2 “A justiça do Estado Social de Direito apoia-se em três fundamentos: no princípio da igualdade, no princípio do Estado Social e no princípio da liberdade” (TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça fiscal e princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 17-18).

Vide também: BRASIL. Presidência da República. Observatório da Equidade. Indicadores de Equidade do Sistema Tributário Nacional. Brasília: Presidência da República, Observatório da Equidade, 2009, p. 21-22.

3 A Constituição Federal – CF determina a redução da pobreza e das desigualdades sociais e regionais como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil (art. 3º, III da Constituição) e princípio da ordem econômica (art. 170, VII, da Constituição).

4 ADI 84 MC, Relator(a):  Min. SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, DJ 06-10-1995 PP-33126 EMENT VOL-01803-01 PP-00001

5 É curioso notar que a referida ADI foi proposta pelo Governador do Estado de Minas Gerais contra a Assembleia Constituinte do mesmo Estado.

6 Voto do Relator, Min. Sydney Sanches, fl. 12 do acórdão.

7 ADI 84, Relator(a):  Min. ILMAR GALVÃO, Tribunal Pleno, DJ 19-04-1996 PP-12210 EMENT VOL-01824-01 PP-00001.

8 ADI 4481, Relator(a):  Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-092 PUBLIC 19-05-2015

9 Idem.

10 Idem.

11 ADI 3794 ED, Relator(a):  Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-036 PUBLIC 25-02-2015.

12 Idem.

13 ADI 429, Relator(a):  Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-213 PUBLIC 30-10-2014 e ADI 4628, Relator(a):  Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno DJe-230 PUBLIC 24-11-2014.

14 Voto do Relator, ADI 4481, p. 9-10.

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    é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo, mestre pela Ludwig-Maximilians-Universität de Munique e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

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    é economista, contabilista, doutor em economia pela Universidade de Campinas, mestre pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor do curso de mestrado do Instituto Brasiliense de Direito Público e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas. Coordenou a equipe técnica responsável do governo federal que elaborou o projeto de Lei de Responsabilidade Fiscal.

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    é advogado, mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), especialista em Direito Tributário e sócio da Advocacia Dias de Souza.

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