Contas à Vista

Você valoriza seu voto tal como valoriza o imposto que paga?

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

21 de março de 2017, 8h00

Spacca
Depois do mensalão, da “lava jato”, do petrolão, da primeira e da segunda lista de Janot está mais do que provado que o sistema político necessita de uma ampla reforma e que essa passará necessariamente pela mudança do sistema de financiamento das eleições. Em face do princípio da anualidade eleitoral (artigo 16, CF) essa modificação deverá estar em vigor até setembro deste ano, para valer para as eleições gerais de 2018.

Qual a importância do tema? Todos que trabalham com o Direito possuem uma fixação icônica, quase uma idolatria, pelo princípio da legalidade, isto é, por aquelas proposições que, uma vez aprovadas formalmente pelo Poder Legislativo, são sancionadas pelo Poder Executivo e se tornam lei, delimitando condutas, organizando a ação governamental e estabelecendo metas a serem cumpridas. Isso é destacado com mais ênfase em algumas áreas, como o direito penal, o direito tributário e o direito financeiro, para os quais vige o princípio da reserva legal, mais estrito do que o amplo princípio da legalidade. Aqui reside a essência da democracia representativa, que pressupõe que o povo elege seus representantes e eles criam as leis que irão estabelecer, dentre outras coisas, o que é ou não uma conduta criminosa, uma conduta que gera a obrigação de pagar tributos e a permissão para a realização de um gasto público.

Eis o ponto. Quem trabalha com o Direito conhece as leis (Constituição inclusa) e se orienta a partir delas. Porém, a questão eleitoral é que vai determinar quem poderá fazer parte desses órgãos políticos eletivos, que farão as leis. A depender dessa regulação eleitoral, esses órgãos poderão ser compostos da forma A ou B, resultando leis a partir de um ou outro perfil ideológico, ou ainda, leis melhores ou piores. Daí a importância de se analisar a questão eleitoral, pois é ela que determinará a paridade de armas da disputa. Um singelo exemplo revela o problema. Se as regras de financiamento eleitoral permitirem que as pessoas ricas utilizem todo seu dinheiro nas campanhas, sob o argumento de que o dinheiro é delas e por isso não se pode impedir seu uso, isso desequilibrará a disputa, uma vez que podem existir excelentes candidatos com muito menos recursos, e, com isso, suas chances diminuem. Tratei disso em outra coluna.  

Para ser efetivamente democrática a disputa eleitoral, as regras que a regulam devem ser includentes e permitir que a disputa se dê com verdadeira paridade de armas, pois só desta forma se poderá dizer que os eleitos são a cara do povo, ou seja, que representam a sociedade.

Nesse debate, existem propostas para todos os gostos. Há quem entenda que todas as (poucas) normas referentes às eleições deveriam ser retiradas da Constituição, tal como declarou o Ministro Gilmar Mendes dias atrás. Há quem defenda uma anistia para as doações recebidas pelo caixa 2 (lei aqui sobre o tema). Há quem entenda que existem caixas 2 diferentes de caixas 2, fórmula também exposta pelo ministro Gilmar e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a qual, confesso, me pareceu incompreensível. Outras propostas visam a criação de listas fechadas apresentadas pelos partidos políticos e financiamento exclusivamente público, através do Fundo Partidário.

Estou convencido que todos os problemas com o caixa 2 eleitoral são problemas de direito financeiro eleitoral, matéria central para a democracia real a ser implantada em nosso país.

O financiamento eleitoral pode ocorrer através de doações públicas ou privadas. As públicas decorrem de um Fundo Partidário abastecido por dotações orçamentárias, isto é, o governo separa uma parcela do que nós pagamos de impostos e reserva para o financiamento dos partidos políticos. E esses usam esse dinheiro público para financiar os candidatos aos cargos eletivos de acordo com suas estratégias eleitorais, que podem ser mais centradas nas eleições parlamentares, ou nas municipais, ou ainda nas presidenciais ou para o governo dos estados.

O financiamento privado pode ocorrer através de doações de pessoas físicas ou de pessoas jurídicas, ou por autofinanciamento. O STF já decidiu que as doações empresariais são inconstitucionais, motivo pelo qual esse modelo de financiamento não pode ser implantado sem alteração da Constituição.

O Brasil não tem tradição de financiamento através de pessoas físicas, e, com tanto escândalo e crise econômica, é muito duvidoso que tal modelo venha a ser disseminado em futuro próximo, de modo a se tornar significativo para o resultado eleitoral. É preciso estimular tal hábito.

O autofinanciamento é um problema, pois privilegia quem tem dinheiro próprio para uso nas campanhas, uma vez que os candidatos ricos, e que certamente possuem amigos ricos, é que terão mais condições de vitória. Nada contra que os ricos se candidatem — penso que isso é positivo — mas o autofinanciamento quebra a paridade de armas acima mencionada, essência da disputa eleitoral.

O fato é que os partidos políticos são pessoas jurídicas de direito privado, isto é, cada qual se organiza do modo que melhor lhe aprouver. Exatamente por isso que as cúpulas partidárias são pouco permeáveis a mudanças. Pode até alterar o cacique de plantão, mas a turma da cúpula é a mesma há muitos anos. Existem mesmo partidos que possuem donos, e que rotineiramente aparecem nas campanhas eleitorais. Quem lembra do José Maria Eymael, do PSDC, que foi figura carimbada nas eleições presidenciais durante muitos anos. Atualmente uma figura sempre presente nas eleições presidenciais é Levy Fidelix, do PRTB. É necessário que haja democracia partidária, o que inclui governança e transparência dos partidos.

Eis o risco da proposta que está com mais adeptos dentre os parlamentares: financiamento exclusivamente público, com listas fechadas. Essa fórmula fará com que os eleitores não votem mais nos candidatos, mas apenas nos partidos, que apresentarão listas com os candidatos. Quem estiver mais próximo da cabeça da lista acabará eleito. Não votaremos em candidatos, apenas nos partidos. Como quem fará as listas é a cúpula partidária, seguramente nela constarão, com destaque, a própria cúpula e seus amigos. Quando existem partidos fortes, com governança democrática e identificação ideológica, o sistema de listas fechadas pode funcionar, mas tal pressuposto não ocorre no Brasil, com 35 partidos políticos que não cumprem os requisitos acima.

Deve-se afastar qualquer cogitação de partidos políticos controlados pelo governo, mas é necessário existir alguma forma de regulação que obrigue o exercício da democracia partidária no Brasil. Afinal, sem ela, permaneceremos vendo o triste espetáculo atual.

Enfim, é preciso renovar as estruturas político partidárias, e não acabar com elas. Quais são as propostas a partir do modelo atual?

Uma alternativa é manter o financiamento público, acrescido do financiamento privado, através de doações de pessoas físicas, porém com um teto de R$ 1 mil por doador ou qualquer outro valor abaixo disso. Quem conquistar o apoio de mais doadores privados, levará vantagem, mantido também o atual teto de gastos por campanha.

O necessário e imprescindível controle eleitoral se tornará mais fácil se os doadores puderem abater essa doação do Imposto de Renda a pagar. É verdade que nem todos os doadores pagam imposto de renda, mas é uma forma de auxiliar o controle eleitoral.

Acabar com as coligações partidárias para as eleições proporcionais, a fim de dar mais identidade aos partidos. E não adotar essa ideia alienígena de listas fechadas. Poderiam ser listas abertas, mas isso é prosa para outra ocasião.

E necessário também retomar a ideia de fidelidade partidária, cassando o mandato de quem mudar de partido nas eleições proporcionais (STF, MS 26.602, 26.603, 26.604, julgadas em 04 de outubro de 2007), mesmo que seja para um novo partido (o que essas decisões permitiram). Desde essa decisão em 2007, oito novos partidos surgiram na cena política brasileira. A regra da fidelidade eleitoral para as eleições majoritárias deve seguir a mesma regra das proporcionais (o STF decidiu em sentido diverso na ADI 5081).

Enfim é necessário arejar o sistema partidário brasileiro, a fim de permitir a renovação da política e a ascensão de novos nomes, e não apenas de filhos ou parentes de políticos que já possuem ou possuíram mandatos — os exemplos se multiplicam.

Tenho um amigo que foi estagiário de meu escritório, depois se tornou advogado. Fez doutorado e livre docência na USP. E, após, entrou para a atividade política e foi candidato a deputado federal. Um dia perguntei-lhe: “O que houve?” E a resposta foi: “Cansei de aplicar o direito; quero fazer o direito”. Louvei a intenção. Já imaginou seu ativismo se ele optasse por ser membro do Poder Judiciário ou do Ministério Público?!. Não logrou êxito parlamentar até aqui, embora tenha obtido cargos de destaque no Executivo estadual. Prossegue na carreira política. Torço por ele.

É bom estarmos atentos a tudo isso, sob pena de se cumprir aquela previsão de Aristóteles: “O risco de quem se nega a governar é ser governado por alguém pior que ele.”

O amigo leitor se candidataria a um cargo eletivo pelas regras atuais? De minha parte, respondo com a música Plataforma do João Bosco e Aldir Blanc: “Não sou candidato a nada / Meu negócio é madrugada / Mas meu coração não se conforma…”

Para quem pretende permanecer apenas como votante e não como votado, pergunto: você valoriza seu voto tal como valoriza o imposto que paga?

Afinal, gostemos ou não, quem elegermos é que regulará a forma pela qual os impostos serão cobrados e o dinheiro público será gasto e é isso que acaba se transformando no Direito a ser aplicado.

O problema é que a modificação das regras eleitorais, inclusive as de financiamento eleitoral, estão sendo feitas pelo atual Congresso Nacional. Não estará na hora de ouvir o povo acerca do modelo de eleição de seus representantes? O Brasil, desde 1988, fez apenas um plebiscito (sobre sistema e forma de governo) e um referendo (sobre porte de armas), institutos em que o povo delibera; porém fez dois impeachment, instituto que é realizado sem o povo, apenas pelo Congresso. Porque não abrir o debate e fazer um plebiscito para ouvir o povo acerca das grandes linhas desse sistema eleitoral?

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    é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.

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