Ideias do Milênio

"O problema de um país rico é que ele só é rico para algumas pessoas"

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18 de março de 2017, 9h12

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Ken Loach [Reprodução]
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Entrevista concedida pelo cineasta britânico Ken Loach, ao jornalista Silio Boccanera, para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças (17h30), quartas (15h30), quintas (6h30) e domingos (14h05).

Eu, Daniel Blake, ganhador em 2016 da Palma de Ouro — prêmio máximo do Festival de Cannes —, é o filme mais novo de Ken Loach. O veterano diretor britânico, hoje com 80 anos, já tinha vencido em Cannes dez anos antes com Ventos da Liberdade.

Os dois filmes confirmam Loach como um dos diretores mais ostensivamente políticos na primeira divisão do cinema internacional contemporâneo. Daniel Blake expõe as barreiras sociais e burocráticas dos mais necessitados de ajuda no sistema assistencial de um país rico, o Reino Unido.

O filme teve boa recepção de público, inclusive no Brasil, onde a plateia com frequência aplaudia de pé ao final. Não ganhou indicação nenhuma para o Oscar, mas recebeu o prêmio Bafta em seu país como melhor filme britânico do ano. Loach aproveitou a ocasião de gala a seu estilo para acusar o governo britânico de indiferença aos que dependem dos benefícios sociais, como o personagem Daniel Blake. "É o tipo de brutalidade que deixa de fora as crianças refugiadas que prometemos ajudar. Isso é uma desgraça", afirmou.

O Milênio foi ao Soho, bairro boêmio de Londres conhecido pelos muitos restaurantes, bares e sexshops, mas também sede de empresas produtoras de cinema e TV, como a Sixteen Films, de Ken Loach, onde o encontramos para uma conversa sobre cinema e política.

Silio Boccanera — Seu novo filme, Eu, Daniel Blake, está em cartaz no Brasil e recebeu boas críticas, mas eu ouvi uma reação peculiar e gostaria de saber sua opinião. As pessoas disseram: “Veem os problemas do sistema previdenciário? Se isso acontece num país rico, que esperança temos de ele ser adotado num país pobre? É uma ideia interessante.
Ken Loach —
Bem, o problema de um país rico é que ele só é rico para algumas pessoas. Ainda existe um grupo grande de pessoas pobres. Isso por um motivo que conhecemos muito bem, mas nos recusamos a admitir, o de que a nossa sociedade é capitalista e baseada num modo de produção capitalista, o que gera pessoas muito ricas e cria uma classe trabalhadora grande e exploradora. E os mais pobres entre os trabalhadores, os mais vulneráveis, devem ser punidos por sua pobreza porque devem entender que a culpa é deles. Estar desempregado é culpa sua, ser pobre é culpa sua. Você não é competente, você é preguiçoso. Porque, se a culpa não é do pobre, é do sistema. E não querem que você desafie o sistema. Então há um motivo ideológico para que os pobres achem que a pobreza é culpa deles. E, em relação a sermos uma sociedade rica, há pessoas aqui… Esses números são de 2015. Instituições de caridade doam muita comida. Um milhão e cem mil cestas básicas foram doadas a famílias naquele ano por apenas um grupo de instituições, porque essas famílias estavam passando fome. Reflita sobre isso. Não somos um país rico para todos. Somos um país rico para quem está no topo, e há uma pobreza desesperadora na base.

Silio Boccanera — O seu filme conta a história de um carpinteiro que precisa do sistema e enfrenta dificuldades para conseguir os benefícios. O Partido Conservador sempre apoiou com relutância, se é que apoiou, esse sistema.
Ken Loach —
Ele não apoia.

Silio Boccanera — Ele não apoia, mas às vezes finge apoiar.
Ken Loach —
É, só finge.

Silio Boccanera — Mas o Partido Trabalhista nem sempre o apoiou. Se pensarmos nos governos de Gordon Brown e Tony Blair, eles também não apoiavam o sistema.
Ken Loach —
Não. Bem… O Partido Trabalhista sempre foi social-democrata. Ou seja, ele apoia a ideia do capitalismo de compartilhar as migalhas que caem da mesa com a classe trabalhadora. E as mudanças positivas do pós-Guerra, com o Estado de Bem-Estar Social, foram implementadas para permitir que o capitalismo funcionasse melhor, com uma mão de obra segura, saudável, que morasse bem, que se sentisse segura. Então enquanto que, por um lado, existe uma retórica de sociedade igualitária, a política do Partido Trabalhista sempre foi a de fazer o capitalismo funcionar de uma forma um pouco mais justa do que de outra forma. É aí que está a falha, porque o capitalismo se desenvolve com o aumento da competição, com a formação de monopólios e com a compra de empresas familiares por grandes corporações. Conforme as grandes corporações crescem, elas competem umas com as outras e, ao fazerem isso, desvalorizam a mão de obra, porque precisam aumentar seus lucros, então querem uma mão de obra barata e vulnerável. Quando a mão de obra fica vulnerável, surgem o desemprego, as condições ruins de trabalho, o trabalho temporário, e os trabalhadores ficam mais vulneráveis. Esse é o problema. E os trabalhistas seguem essa linha. O slogan de Blair da primeira campanha que o levou ao poder era: “Trabalho significa negócios”. E achávamos que ele ia arregaçar as mangas e trabalhar, mas nada disso. O “negócio” eram as grandes empresas.

Silio Boccanera — Devo ter a ousadia de perguntar sobre Trump?
Ken Loach —
Acho que o fato de ele ser uma pessoa desagradável de certa forma está ligado ao encanto dele, porque, quando as pessoas que estão com raiva e insatisfeitas ouvem seus sentimentos refletidos de volta para elas numa linguagem rude, isso de certa forma permite que elas também sejam rudes e cruéis. Mas acho que por baixo disso e o que é tão ambíguo em relação a Trump é que ele está fingindo falar em nome da classe trabalhadora quando na verdade fala em nome do capital. É o velho pão e circo. “Vamos diverti-lo para que pense que estamos do seu lado, mas na verdade vamos ferrar você.”

Silio Boccanera — O fato de um bilionário achar que pode falar pela classe trabalhadora já é incomum.
Ken Loach —
Sim, claro, mas a política da coisa é mais séria. Sim, tudo em relação a ele é rude, feroz e desagradável, mas politicamente ele vai permitir que o capital aumente ainda mais a exploração.

Silio Boccanera — O alvo mais constante deste cineasta irredutível e suas convicções socialistas é seu próprio país. O Reino Unido, onde nasceu em ambiente e família de classe trabalhadora, já adulto sob a influência marxista, a visão política de Loach virou à esquerda. E ao começar a carreira de diretor na televisão, depois no cinema, nunca separou arte e ideologia. Em suas obras de ficção, ele denuncia continuamente as mazelas que vê na realidade do capitalismo mundial.

Seu filme de 1966 para a TV, Cathy Come Home, se tornou um clássico por tratar dos problemas da Previdência Social. Eu, Daniel Blake volta ao mesmo assunto. A situação está piorando, apesar de que em 1966 o Reino Unido certamente era mais pobre do que hoje?
Ken Loach —
Hoje está muito pior. Um dos principais motivos é que, depois da guerra… Cathy Come Home é de meados da década de 1960 e, naquela época, a consciência da guerra ainda estava presente na mente das pessoas. Nós a mantivemos presente, e essa consciência dizia que o bem comum era o que almejávamos. Trabalhávamos para o bem comum, para o benefício de todos. Então, apesar do problema de moradia dos anos 1960, nós nos julgávamos coletivamente responsáveis por ele. Tudo isso mudou quando Thatcher foi eleita. O bem comum foi substituído pela ganância particular, pelo individual. Deixou de ser coletivo. Nas famosas palavras dela: “Não existe sociedade, apenas indivíduos e famílias.” Isso levou ao surgimento de: “Você não me interessa. Só me importo comigo.”

Silio Boccanera — Mas as coisas estão piorando. Você fica desanimado?
Ken Loach —
Pessoalmente, não. Há tantas centenas de milhares de pessoas que não têm a sorte de fazer filmes, mas que trabalham com comunidades para ajudar as pessoas. Então por que eu ficaria desanimado? Eu diria que há milhões de pessoas que fazem o que podem nestes tempos sombrios.

Silio Boccanera — Mas no sentido de que: “Fico fazendo filmes, batendo na mesma tecla, mas não parece melhorar.”
Ken Loach —
Muda o tempo todo. A chegada de Jeremy Corbyn e John McDonnell foi algo extraordinário. Todo mundo era contra eles. Procure em qualquer jornal. Até o Guardian, chamado de esquerdista, foi hostil a Corbyn. A BBC também foi. Pesquisas mostram como eles são hostis. Mesmo assim, meio milhão de pessoas se filiaram ao Partido Trabalhista para apoiá-lo.

Jeremy Corbyn é o atual líder do Partido Trabalhista. É criticado internamente pelo posicionamento “exageradamente à esquerda”

Silio Boccanera — Os seus filmes, deste último até o primeiro, mostram não só a solidariedade e os problemas das pessoas, mas as mostra reagindo. A resistência é importante?
Ken Loach —
As pessoas reagem. Acabamos de ver uma grande disputa em uma companhia ferroviária privada, a Southern Rail. Novamente, a empresa estava tentando cortar a mão de obra de uma forma que afetaria a segurança. Os maquinistas se opuseram. Essa disputa expôs uma fraqueza: um sindicato fez um acordo apesar da oposição de outro sindicato. É aí que precisamos de solidariedade: os dois sindicatos têm de negociar juntos. Não devem permitir que falem com um de cada vez. Mas sim, há resistência. As pessoas sempre resistem.

Silio Boccanera — Os seus filmes seguem uma linha de questões sociais que obviamente não é a que predomina no circuito comercial. O foco maior é na ação, em revistas em quadrinhos, em adaptações, efeitos especiais, super heróis… Acha que eles estão vencendo?
Ken Loach —
Quem?

Silio Boccanera — Esses grupos que produzem esse tipo de filme. Vencendo no sentido de serem predominantes.
Ken Loach —
É claro que o cinema comercial é predominante porque controla as salas de exibição. É a lei do mercado. Se o grande capital investe em grandes produções, elas viram mercadorias, como o McDonald’s. O McDonald’s certamente está ganhando de um bom restaurante pequeno que vende comida de qualidade feita pelo próprio dono. É claro que eles parecem maiores. O Starbucks parece maior do que um pequeno café administrado por um amante de café. Eles são maiores, mas isso é o capitalismo. Eles investem, julgam a mercadoria de acordo não com critérios objetivos, mas de acordo com o que vai lucrar mais. O jogo é assim.

Silio Boccanera — Os hábitos dos espectadores também incluem a TV, que foi onde você começou. Trabalhou muito para a TV. E parece haver uma nova tendência de dramas de qualidade na TV, pelo menos é o que os críticos acham. Você concorda? Vê a TV indo nessa direção e se afastando do entretenimento puro?
Ken Loach —
Não. Acho que, assim como o cinema comercial, eles refinaram a fórmula. Refinaram o processo, o estilo e o conceito. E então forçam os projetos a se encaixarem nesse conceito. Pegam assuntos atuais, como maus-tratos e sequestros de crianças ou assassinatos não solucionados… Pegam assuntos atuais que dominam o noticiário e os encaixam numa série muito bem esculpida. Existe uma fórmula: tem de ser uma série, tem de haver um gancho, mas o estilo, o padrão, segue uma fórmula. E o problema é que, na indústria da televisão que eu conheço, antigamente os chefes eram muito poucos, e o pessoal de base — produtores, diretores e roteiristas — eram muito numerosos. Essa pirâmide se inverteu. Há uma quantidade aparentemente imensa de produtores, diretores de programação, editores de roteiro, chefes de canais, chefe disso, chefe daquilo, todos dizendo ao diretor e ao roteirista o que fazer. Todos têm uma opinião, e a originalidade fica sem espaço porque é como um cavalo projetado por um comitê. Ele vira um camelo. Eles espremem a originalidade, espremem a voz singular, e os roteiristas se tornam prisioneiros comportados, eles sabem como agradar a chefia. Então adotam a fórmula, mas a originalidade, a voz do roteirista, se perde ao ser forçada a se encaixar no padrão por pessoas que querem uma mercadoria.

Silio Boccanera — E quanto ao impacto de novas tecnologias como a internet? Você sente isso? Acha que há um impacto aí?
Ken Loach —
Sim. Sou da geração errada para entender isso, porque mal consigo ligar o telefone, mas acho que o impacto é fragmentar, é… O meu palpite — e não passa de um palpite, pois não fiz nenhuma pesquisa nem li nada —, mas meu palpite é que as coisas são reduzidas em escala no sentido de que a edição tem de ser rápida, tem de haver muito movimento, porque o botão do controle remoto… Se a pausa dura muito tempo, a pessoa muda para o próximo.

Silio Boccanera — Se não houver uma batida de carro logo…
Ken Loach —
Aumenta a pressão por gratificação instantânea, por choques constantes. Quando a língua é reduzida a textos, como tuítes e todas as outras coisas, a complexidade é reduzida a algumas frases de efeito. Quando as pessoas usam fones de ouvido o tempo todo, ficam isoladas, atomizadas, fragmentadas. Essa fragmentação, essa redução a pequenas porções de palavras, a abreviações, tudo está tendendo à fragmentação. As pessoas ficam trancadas em seu próprio mundo. Isso vai contra a compreensão coletiva.

Silio Boccanera — Como parte disso, não acha que cineastas como você a alguns outros, que tentam uma abordagem diferente, correm o risco de pregar aos convertidos porque os outros não veem seus filmes?
Ken Loach —
Nós só podemos ser fiéis ao material. Só podemos ser fiéis às situações que encontramos, ao nosso entendimento de como uma sociedade funciona, às consequências disso para as pessoas e confiar que, no final, se fizermos um bom trabalho, as pessoas vão se identificar. E isso parece acontecer. Outros podem tomar um caminho diferente e dizer que é preciso usar a linguagem atual para passar a mensagem, mas isso me parece que sempre destrói a mensagem. Se você quer mostrar o valor e a complexidade das pessoas e suas reações, se as fizer pular de um lado para o outro, você destrói isso.

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