Diário de Classe

As palavras e o Direito — reflexões sobre um discurso de paraninfo

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11 de março de 2017, 8h10

Spacca

A coluna desta semana é sobre uma experiência pessoal. Recentemente, para ser mais preciso no segundo semestre do ano passado, fui escolhido para ser paraninfo da 83ª Turma de Direito da Universidade de Ribeirão Preto. Em meados de fevereiro de 2017, foi feita uma belíssima cerimônia de outorga de grau. O convite foi, para mim, uma total novidade e, como forma de homenagear meus afilhados e minhas afilhadas, resolvi publicá-lo neste "Diário de Classe". Ademais, não sei se terei outras oportunidades de ser agraciado com esse acontecimento. Mais um motivo, portanto, para compartilhar com meus queridos leitores e leitoras o conteúdo do discurso. Por fim, acredito que outras pessoas que estejam na mesma situação de meus formandos possam encontrar nesse texto algum sentido interessante.

Ei-lo:

Minhas queridas afilhadas e meus queridos afilhados,

Faltam-me palavras para descrever o quanto me senti honrado com o convite que me fizeram para paraninfá-los. Sei que esta frase, posta assim sem a delicadeza de uma justificação, pode, por um instante, decepcioná-los.

Consigo até imaginar o pensamento de vocês no momento em que a pronunciei:

 – Convidamos o professor Rafael para vir aqui nos dizer clichês e platitudes?

Evidentemente, não é disso que se trata. Todos vocês, queridos formandos, sabem o quanto sou avesso aos clichês e aos lugares comuns. Devo dizer, inclusive, que nutro, até, uma certa rabugice contra aquilo que se sedimenta no discurso e que as pessoas, depois, simplesmente repetem sem refletir muito sobre os motivos que as levaram a dizer “isto” ou “aquilo”.

Assim, é uma cortesia importante, neste momento, explicar-lhes o porquê de ter começado essa minha breve fala com uma frase aparentemente tão vulgarizada pelos discursos característicos das cerimônias de outorga de grau.

Na verdade, quero com ela revelar minha humildade perante o desconhecido. De fato, essa experiência – de ser escolhido paraninfo – é totalmente nova para mim. E aquilo que é novo sempre representa um desafio, porque não sabemos exatamente como nomeá-lo (ou seja: faltam palavras…)

Um filósofo Italiano, chamado Giorgio Agambem, afirma que experiências radicalmente novas, como essa que vocês me propiciaram, fazem-nos retornar à infância e aos momentos de descoberta da fala, da linguagem. E, certamente, a linguagem surge na falta… Na falta de não saber expressar um desejo, uma alegria, uma dor, uma paixão.  

A literatura é farta em exemplos que revelam o quanto de verdade há nisso que acabei de dizer. Gabriel García Márquez, em Cem Anos de Solidão, afirmava que em Macondo — aquele mundo em que se desenvolve o seu realismo mágico — as coisas eram tão novas que não tinham nome, de modo que, para mencioná-las, era preciso apontar com o dedo.

Já em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, vemos os meninos, filhos de Fabiano, depararem-se com a “secura” da linguagem; da experiência que se instala quando faltam palavras para nomear aquilo que eles estão vivenciando. Eu não teria talento suficiente para parafrasear esse gênio que foi Graciliano Ramos. Por isso, peço licença a vocês para ler um pequeno trecho no qual se encontra aquilo que quero lhes mostrar. Eis o contexto: Os meninos chegam pela primeira vez à cidade. Assustam-se e encantam-se com as coisas que ali encontram: todas absolutas novidades. E o novo precisa ser nomeado… Mas lhes falta a palavra.

A partir de agora, cito literalmente:

“[Os meninos] Agora olhavam as lojas, as toldas, a mesa do leilão. E conferenciavam pasmados. Tinham percebido que havia muitas pessoas no mundo. Ocupavam-se em descobrir uma enorme quantidade de objetos. Comunicaram baixinho um ao outro as surpresas que os enchiam. Impossível imaginar tantas maravilhas juntas. O menino mais novo teve uma dúvida e apresentou-a timidamente ao irmão. Seria que aquilo tinha sido feito por gente? O menino mais velho hesitou, espiou as lojas, as toldas iluminadas, as moças bem-vestidas. Encolheu os ombros. Talvez aquilo tivesse sido feito por gente. Nova dificuldade chegou-lhe ao espírito, soprou-a no ouvido do irmão. Provavelmente aquelas coisas tinham nomes. Sim, com certeza as preciosidades que se exibiam nos altares da igreja e nas prateleiras das lojas tinham nomes. Puseram-se a discutir a questão intricada. Como podiam os homens guardar tantas palavras? Era impossível, ninguém conservaria tão grande soma de conhecimentos. Livres dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas.”  

Vejam, então, que, para mim, dizer que faltam palavras para descrever um sentimento ou uma situação é reconhecer que desconheço algo. É reconhecer o quanto sou, e somos, finitos em nossa capacidade de conhecer as coisas e de mencioná-las. E, paradoxalmente, toda nossa vida é feita de palavras. Impossível não lembrar, aqui, de Millôr Fernandes, quando fazia a seguinte provocação: quando alguém lhes disser, “uma imagem vale mais do que mil palavras”, lance para esta pessoa um desafio: “Diga isso sem usar palavras!

Um outro exemplo: estamos todos aqui celebrando uma formatura do curso de Direito. Todos vocês da 83ª Turma do Curso de Direito da Unaerp são, agora, formados. Mas, o que é isso, ser formado em Direito? Ora, ser formado em Direito significa ter familiaridade com um certo tipo de linguagem. O Direito é, portanto, um jogo com palavras. Notem: a palavra ação, em linguagem comum, por ser substantivo abstrato derivado do verbo agir, tem conotação verbal, e significa simplesmente agir, praticar uma conduta; para o Direito Processual, todavia, ação é um substantivo que significa uma medida prevista em lei que permite ao pretenso titular de um direito subjetivo deduzir uma pretensão em juízo. Código, em linguagem comum, pode significar uma mensagem cifrada que só permite ser revelada mediante o uso da senha correta; para o Direito, contudo, código significa uma lei, geralmente extensa, dotada de sistematicidade interna. E por aí vai…

Logo, operar com o Direito significa participar de um jogo de linguagem. Mas não qualquer jogo; não uma espécie de vale-tudo ou um MMA Jurídico.

Esse jogo deve ser jogado em um contexto de sensibilidade moral. Desse modo, ser formado em Direito significa, também, desenvolver essa sensibilidade moral. Trata-se, na verdade, de algo que nos envolve; um ethos comum que estabelece os indícios formais de nosso convívio comunitário. E, para representá-la, usamos… Palavras: República — que nos lembra que somos (ou deveríamos ser) governados por leis, e não por homens; democracia — que nos lembra que todos os cidadãos, do mais pobre ao mais rico, do mais fraco ao mais forte, devem poder influenciar igualmente nos desígnios do governo e ser tratados com igualdade e respeito por quem atua em nome deste mesmo governo; liberdade — que nos lembra que o Estado deve intervir o mínimo possível nas escolhas pessoais de seus cidadãos e mostrar-se tolerante com relação às diferenças. Entre outras tantas…

Quem atua em juízo, em quaisquer dos papéis que caracterizam nosso sistema de Justiça, deve estar perenemente consciente de seu “dever de guarda” desses tesouros morais. Ainda que isso implique agir ao arrepio das massas; ir contra a corrente. Defender a integridade de alguém que foi difamado pela mídia; defender a presunção de inocência quando os incautos a confundem com impunidade. Para lembrar T. S. Eliot, em uma frase frequentemente utilizada pelo meu mestre Lenio Streck: “Em uma sociedade de fugitivos, quem anda na direção contrária parece estar fugindo”.

Dizer algo assim, nestes tempos bicudos que vivemos, pode soar piegas, utópico ou idealista demais. Na verdade, poderia aqui ser usado qualquer adjetivo que sirva para afirmar que aquilo que sabemos não vale de nada. Como já dissera, ironicamente, Machado de Assis, pela boca de seu Brás Cubas: “Em verdade eu vos digo que toda sabedoria humana não vale um par de botas curtas”.

Quem vive na lógica do noticiário haverá de dar razão a Machado. Corrupção sistêmica; colapso do sistema penitenciário e da segurança pública; manobras para retirar as contas dos partidos políticos da alçada do TSE etc. etc. etc. Eu poderia continuar listando uma série de eventos que estariam prontos para nos fazer crer que vivemos no reino do caos, e não sob o Império do Direito. Sem embargo, o remédio para não sucumbirmos em meio a este apocalipse midiático pode ser descrito a partir de uma outra dimensão do que significa ser formado em Direito: ter consciência histórica.

Em momentos de celebração como este que estamos vivendo, prefiro brindá-los com o otimismo a entorpecê-los com algum destes pessimismos acadêmicos do tipo total flex — servem para qualquer ocasião em que o orador queira parecer mais erudito. O pessimismo acadêmico sempre é o caminho mais fácil, assim como desconstruir é sempre mais fácil do que construir.

Por isso, gosto de caracterizar essa consciência histórica numa perspectiva mais construtiva do que destrutiva, lembrando um sociólogo alemão chamado Norbert Elias — que era judeu e viveu ao tempo do Holocausto — e, mesmo assim, escreveu um livro chamado O Processo Civilizador. Elias nos mostra que existe um sentido positivo na história, ainda que não nos seja permitido conhecer o seu fim; que, de algum modo, somos envolvidos por um processo cultural que nos faz melhores e nos distancia de nossa herança animal. E tudo isso não foi inventado por ele. Pelo contrário, encontra-se inscrito nos monumentos, nas construções, nos livros, em todas essas amarras nas quais a cultura encontra algum ponto de fixação e pode ser transmitida até nós pela tradição; na entrega de uma geração para outra desses verdadeiros tesouros da cultura. Vejam: antes do surgimento do Estado, as pessoas se matavam mais, o número de mortes por assassinato era simplesmente impronunciável; as pessoas comiam mal e praticavam péssimos hábitos de higiene (consequência direta disso: viviam menos); mesmo com a construção de alguns poucos Estados nacionais, a luta pela liberdade conviveu por longos anos com um espúrio regime escravagista; a democracia moderna e seu correlato conceito de cidadania conviveram por muito tempo com a total exclusão da mulher dos processos deliberativos públicos.

E no nosso contexto atual, o que temos? Em primeiro lugar, os Estados, que eram poucos, hoje ocupam quase que a totalidade do globo terrestre; ouso dizer-lhes que essa fórmula política, com todos os seus defeitos, diminuiu significativamente o número de assassinatos; a expectativa de vida aumentou exponencialmente; a escravidão foi banida das ordens jurídicas democráticas e reduzir alguém à condição análoga à de escravo é uma conduta tipificada como crime; as mulheres votam e possuem, nominalmente, os mesmos direitos que os homens.

Uma voz, contrariada, poderia redarguir lá do fundo deste centro de eventos: mas ainda há homicídios (e muitos; muito mais do que gostaríamos de lembrar!); as pessoas ainda morrem por causas banais; há desigualdade de raça e gênero, entre tantas outras coisas. E, ainda assim, Norbert Elias responderia: civilizar-se é um processo. Ou seja, ainda não acabou; está em andamento; temos que dele participar como parte ativa das transformações que desejamos (e que precisamos saber nomear). Ele não acontece por passe de mágica, ou por um ato de criação divina. Acontece porque todos nós, enquanto sociedade, decidimos ser melhores e aprendemos, diante da falta do nome, a encontrar um modo de dizer o que entendemos por bem, por um convívio melhor… E tudo isso começa com uma simples palavra.

Assim, ser formado em Direito significa, também, estar envolvido por um processo, que não termina com o bacharelado, mas continua perenemente, apenas mudando de fase e níveis de aperfeiçoamento, desenvolvendo-se nas três dimensões apresentadas, que são: 1) dominar sua linguagem (técnica); 2) desenvolver sensibilidade moral; e 3) apropriar-se da consciência histórica. É nesse caldo de cultura que se forja um jurista ou uma jurista. E o reino de cada jurista é feito de palavras.

Somos, enfim, quase como agricultores. Não cultivamos campos ou paragens, mas, sim, espaços de convívio; dimensões de comunidade. Não lançamos sementes ao solo, mas, sim, palavras às mentes e aos corações. Como disse Castro Alves, um poeta que, ao menos por um período de sua vida, também foi jurista: “Oh Bendito o que semeia/ Livros… Livros de mão cheia…/ E manda o povo pensar!/ O livro caindo n’alma/ É germe – que faz a palma/ É chuva – que faz o mar!”.

Sejam bons; sejam plenamente felizes; e nunca deixem de semear palavras!

*Texto alterado às 12h do dia 11/3/2017 para correção.

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