Direito do Agronegócio

Funrural e as operações com cooperados em contratos de parceria

Autores

  • Fábio Pallaretti Calcini

    é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) professor da FGV-Direito SP e Ibet e sócio tributarista da Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

  • Rafael Nichele

    é advogado tributarista professor da pós-graduação em Direito Tributário da PUCRS mestre em Direito pela PUCRS e ex-juiz do Tribunal Administrativo de Recursos Fiscais (Tarf-RS).

10 de março de 2017, 8h05

Spacca
Nesta oportunidade, dedicaremos nosso estudo tributário à contribuição para a seguridade social exigida sobre a receita bruta, nos termos do artigo 25 da Lei 8.212/91, denominada em geral de Funrural.

Não trataremos da conhecida discussão a respeito da inconstitucionalidade de referida exação, mas, em verdade, de recente manifestação proferida pela Receita Federal, consistente na Solução de Consulta Cosit 11/2017, relativamente à base de cálculo do Funrural sobre a produção rural recebida por cooperativas de produtores rurais de seus cooperados, decorrente de contratos de parceria ou de integração rural.

Nesse sentido, a Solução de Consulta Cosit 11/2017:

“CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS PREVIDENCIÁRIAS

CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA SOBRE A RECEITA BRUTA DA COMERCIALIZAÇÃO DA PRODUÇÃO RURAL. COOPERATIVA DE PRODUTORES RURAIS. CARACTERIZAÇÃO DE CONTRATO DE PARCERIA OU DE INTEGRAÇÃO RURAL. IMPOSSIBILIDADE.

A entrega, pela cooperativa, de insumos ao cooperado e o recebimento, pela cooperativa, de toda produção rural do cooperado são consideradas relações jurídicas de natureza institucional da cooperativa, de modo que não cabe a caracterização do recebimento de parte da produção como sendo a título de participação da cooperativa em contrato de parceria ou integração rural, para efeito de afastar a incidência da contribuição sobre a receita bruta da comercialização da produção rural quanto à parte que caberia à cooperativa como fornecedora de insumos.

A cooperativa fica sub-rogada na obrigação da contribuição previdenciária a cargo do produtor rural pessoa física ou segurado especial, devendo recolher esta contribuição sobre o valor da receita bruta da comercialização de toda produção que lhe é entregue pelo cooperado, até o dia 20 do mês subsequente à operação de venda ou consignação

Dispositivos Legais: Lei nº 8.212, de 1991, art. 25, art. 30, incisos III e IV; Lei nº 4.504, de 1964, art. 96, §§1º e 5º; Lei nº 5.764, de 1971, art. 3º, 4º e 79; Lei nº 13.288, de 2016, art. 1º, parágrafo único; IN RFB nº 971, de 2009, art. 165, incisos XI a XIV e XXI; art.167, inciso III, art. 168 e art. 172, inciso I”.

Desse modo, entende a Receita Federal que, como a relação mantida entre cooperativa e seus cooperados implica em típicos atos cooperados, não seria possível a manutenção de parcerias rurais ou parcerias de integração rurais. Isso porque haveria distinção entre a relação que as cooperativas mantém com seus cooperados, típicos atos cooperados, e relações de parceria ou integração rural, sendo uma incompatível com a outra.

Consequentemente, seria impossível à cooperativa receber parte da produção rural do produtor cooperado como se fosse sua participação em contrato de parceria ou integração rural.

Daí ser peremptória a Receita Federal em sua conclusão na solução de consulta citada:

“19. Desta forma, a entrega, pela cooperativa, de aves, rações e medicamentos ao associado cooperado e o recebimento, pela cooperativa, da produção rural (ovos) do associado cooperado para venda no mercado, constituem relações jurídicas de natureza institucional da cooperativa — ato cooperativo — e não relação jurídica de natureza contratual, como é o caso do contrato de parceria ou integração rural.

20. Esta a razão pela qual não há amparo legal para a caracterização do recebimento de parte da produção como sendo a título de participação da cooperativa em contrato de parceria rural, ou de integração rural, para efeito de afastar a incidência da contribuição sobre a receita bruta da comercialização da produção rural, quanto à parte que supostamente caberia à cooperativa como parceiro que forneceu os insumos”.

Entendemos, no entanto, que essa interpretação da Receita Federal na Solução de Consulta Cosit 11/2017 não é a mais adequada, tendo nítida ilegalidade.

A primeira razão decorre do equivoco na interpretação firmada pela Receita Federal ao justificar sua conclusão, uma vez inexiste previsão legal que permita sustentar que cooperativas estejam proibidas de manter relações de parceria ou integração rural com seus cooperados.

Inclusive, importante lembrar do parágrafo único, do artigo 1º, da Lei 13.288/16, que não somente não contém o teor sustentado pela Receita como ainda dispõe em sentido diametralmente oposto, senão vejamos:

“Art. 1º Esta Lei dispõe sobre os contratos de integração vertical nas atividades agrossilvipastoris, estabelece obrigações e responsabilidades gerais para os produtores integrados e os integradores, institui mecanismos de transparência na relação contratual, cria fóruns nacionais de integração e as Comissões para Acompanhamento, Desenvolvimento e Conciliação da Integração – CADEC, ou similar, respeitando as estruturas já existentes.

Parágrafo único. A integração vertical entre cooperativas e seus associados ou entre cooperativas constitui ato cooperativo, regulado por legislação específica aplicável às sociedades cooperativas”.

Veja-se que tal dispositivo prevê justamente a possibilidade de haver uma integração vertical entre cooperativas e seus associados, destacando tão somente que, nessas situações, há disposições específicas típicas das atividades cooperativadas.

Reconhecer que tais relações contam com especificidades e regulações próprias de forma alguma significa dizer que está vedado às cooperativas manter relações de integração rural com seus cooperados.

Não fosse isso o suficiente, a criatividade da Receita foi tamanha que, ainda que suas premissas estivessem corretas, não seria possível sustentar suas conclusões.

Isso porque, ainda que houvesse a vedação legal de que cooperativas mantivessem relações de parceria ou de integração rural com seus cooperados, não seria possível enquadrar esses atos reconhecidamente cooperados como se simples comercialização fosse.

Com efeito, é pacífico o entendimento de que o ato cooperado, que é aquele praticado entre cooperativa e cooperado, não se constitui em ato de mercancia, nos termos do artigo 79 e parágrafo único, da Lei 5.764/71:

“Art. 79. Denominam-se atos cooperativos os praticados entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associados, para a consecução dos objetivos sociais.

Parágrafo único. O ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria”[1].

Logo, caso se quisesse concordar com a impossibilidade de cooperativas rurais manterem relações de parceria ou de integração com seus cooperados, absurdo que se cogita apenas para fins argumentativos, ainda assim não se teria a incidência do Funrural. Isso porque não há comercialização nos atos cooperados típicos.

Em não havendo comercialização, não se perfectibiliza o fato gerador previsto no artigo 25, da Lei 8.212/91, que dispõe o seguinte:

Art. 25. A contribuição do empregador rural pessoa física, em substituição à contribuição de que tratam os incisos I e II do art. 22, e a do segurado especial, referidos, respectivamente, na alínea a do inciso V e no inciso VII do art. 12 desta Lei, destinada à Seguridade Social, é de:

I – 2% da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção”.

O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), ao analisar a incidência do Funrural a partir da receita bruta proveniente da comercialização de sua produção, reconheceu pela impossibilidade da exigência de referida contribuição em hipótese semelhante:

“Tributação sobre a Receita. Pessoa jurídica rural — Integralização do capital social. Estoque. Produto rural

TRANSFERÊNCIA DE ESTOQUE PARA INTEGRALIZAÇÃO DE CAPITAL SOCIAL. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA SOBRE COMERCIALIZAÇÃO DA PRODUÇÃO RURAL. ATIPICIDADE DA CONDUTA NO CASO VERTENTE. (…) Se o objeto social da empresa é comercializar produção rural e não participarem sociedades, a integralização de ações em outra sociedade figura como meio para a realização do objeto social (ato societário) e não o próprio desenvolvimento do objeto social (empresa), razão pela qual a transferência de estoque figurou como um ato societário e não como a própria atividade empresarial. Nesse sentido, estabeleceu o STF que a incorporação de bens ao capital social é um ato típico, não equiparável a ato de comércio”[2].

Por sua vez, o Judiciário também já se posicionou que há efetiva comercialização quando do recebimento pelas cooperativas da produção recebida pelos seus cooperados. Logo, não há incidência do Funrural sobre tais operações, o que obviamente não afasta a incidência de tal tributo sobre a receita obtida pela própria cooperativa pela comercialização dos produtos por si mesma realizada.

Nesse sentido, jurisprudência Tribunal Regional Federal da 4ª Região:

“TRIBUTÁRIO. LEGITIMIDADE ATIVA. CONTRIBUIÇÃO INCIDENTE SOBRE A COMERCIALIZAÇÃO DA PRODUÇÃO RURAL DA PESSOA FÍSICA. EMPRESA ADQUIRENTE DA PRODUÇÃO RURAL. INEXIGIBILIDADE. CONTRIBUIÇÃO INCIDENTE SOBRE A COMERCIALIZAÇÃO DA PRODUÇÃO RURAL DA PESSOA JURÍDICA. INEXIGIBILIDADE. EFEITO REPRISTINATÓRIO. REPETIÇÃO DO INDÉBITO LIMITADA À DIFERENÇA. ATO COOPERADO E NÃO-COOPERADO. DISTINÇÃO. INCIDÊNCIA. (…) 7. Os atos cooperativos típicos são aqueles praticados entre a cooperativa e seus associados para a consecução dos objetivos sociais, segundo definido pelo artigo 79 da Lei nº 5.764/71. 8. Os atos não cooperativos, a contrário senso, são aqueles praticados com não associados, mas que guardam relação com os objetivos sociais da cooperativa. Na prática de tais atos a sociedade cooperativa atua como qualquer outra pessoa jurídica, devendo a receita gerada servir de base à tributação, consoante preconiza o art. 111 da Lei n.º 5.764/71. 9. A entrega da mercadoria pelo produtor rural à cooperativa, da qual é associado, não se confunde com a comercialização do produto por ela realizada, que constitui o fato gerador da contribuição previdenciária”[3].

A questão, a bem da verdade, é simples: como ato cooperado não se confunde com comercialização, não há a realização do fato gerador do Funrural previsto no artigo 25, da Lei 8.212/91.

Assim, pouco importaria se as cooperativas realmente estivessem “vedadas” de fazer parcerias e integrações rurais com seus cooperados, pois, ainda que isso fosse verdade, não haveria qualquer reflexo para fins de Funrural. Não havendo comercialização, tampouco há incidência do Funrural.

Em tais condições, é possível concluir no sentido de que a Solução de Consulta RFB Cosit 11/2017 é ilegal, pois:

  • não conta com amparo legal, vez que inexiste disposição na legislação tributária a impedir que cooperativas rurais mantenham contratos de parceria rural ou de integração rural com seus cooperados;
  • não seria possível tributar, a título de Funrural, o retorno da produção rural do produtor rural integrado à cooperativa, por ausência de fundamento legal;
  • que incontroversamente o retorno da produção rural do produtor rural integrado à cooperativa é um ato cooperado, de forma que não há a “comercialização” de produção rural, fato gerador eleito pelo artigo 25, da Lei 8.212/91;

[1] A respeito da tributação do ato cooperativo: CALCINI, Fábio Pallaretti. GUERRA, Gerson. “in” PIS/Cofins. Teoria e Prática. PEIXOTO, Marcelo Magalhães. BERGAMINI, Adolpho. 4ª Ed. São Paulo: MP/APET, 2017. p. 1481-1505. Tomo 5.
[2] Carf, 2ª Seção, Ac. 2302­003.339.
[3] TRF-4, APELREEX 5002422-42.2014.404.7203, 1ª Turma, relator Jorge Antonio Maurique, j. 29/5/2015.

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    é advogado tributarista, sócio do Brasil Salomão e Matthes Advocacia. É doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) e ex–membro do Carf.

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    é advogado tributarista, professor da pós-graduação em Direito Tributário da PUCRS, mestre em Direito pela PUCRS e ex-juiz do Tribunal Administrativo de Recursos Fiscais (Tarf-RS).

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