Opinião

Diálogos com Miguel Godoy sobre seu "triângulo de fogo"

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7 de março de 2017, 6h40

Em sua tese de doutoramento, Devolver a Constituição ao povo: crítica à supremacia judicial e diálogos interinstitucionais, defendida em 2015 perante a Universidade Federa do Paraná, a ser publicada dia 8 de março pela editora Fórum, o jurista Miguel Gualano de Godoy apresenta uma proposta de diálogos interinstitucionais como alternativa à supremacia judicial e à tese da última palavra, apontando que os caminhos passam pelo fortalecimento da política democrática e seu elemento essencial: o povo. Ressalta a importância do chamado “constitucionalismo popular”.

Chamo de “triângulo de fogo” a proposta de Miguel Godoy para a (re)estruturação de diálogos interinstitucionais entre 1) o povo, 2) os Poderes e 3) as instituições, a partir de uma adequada abertura e utilização democraticamente orientada dos institutos dos amici curiae, e das “audiências públicas” pelo Supremo Tribunal Federal, mas não apenas.

Baseado em Roberto Gargarella, o autor observa que a crítica fundamental do “constitucionalismo popular” reside no “desacoplamento” entre Direito e povo, deixando clara sua opção metodológica: utilização das reflexões presentes nas várias matrizes teóricas do constitucionalismo popular, sem, no entanto, albergar a adoção de algumas de suas propostas normativas, como a extinção do controle de constitucionalidade das leis (Mark Tushnet), o impeachment de juízes (Larry Kramer) ou a primazia do parlamento sobre os demais Poderes (Jeremy Waldron).

Godoy faz crítica original ao “constitucionalismo popular”, quando aponta deficiências de todas as suas principais matrizes teóricas no que se refere à utilização do conceito-chave “povo”, optando por fazer uso da construção de Friedrich Müller para se afastar de uma concepção de povo “não como sujeito histórico fetichizado”, e sim como “uma categoria a ser sempre construída, redefinida, ressignificada, a partir das diversas demandas e conflitos existentes em uma sociedade”.

Nesse aspecto, sem dizê-lo expressamente, aproxima-se de um modelo muito mais aproximado da chamada “democracia monitória”, como tivemos oportunidade de ressaltar em outra oportunidade (Triângulo da Violência Argumentativa, civil procedure review, v. 5., n. 2, 2014), quando discorremos sobre a substituição da velha regra de “um homem, um voto, um representante”, pela premissa de “uma pessoa, muitos interesses, muitas vozes, votos múltiplos, representantes múltiplos”, que é o novo princípio da democracia monitória, um terceiro estágio mais avançado do que a democracia direta e da democracia representativa, conforme ressaltado por John Keane (Vida e Morte da Democracia, São Paulo: Edições 70, 2010).

Miguel Gualano joga luzes sobre a necessidade de desmistificação da gênese do judicial review no modelo norte-americano, a partir de releitura do caso Marbury vs. Madson (1803), sem desconsiderar a importância do debate Kelsen-Schmitt sobre “quem deve ser o guardião da constituição”, observando a necessidade do resgate da participação do povo (desde as características adotadas) no controle de constitucionalidade. A discussão proposta por Miguel Godoy é extremamente oportuna.

A esse propósito, é importante ressaltar a excelente reconstrução do nascimento do Controle Concentrado de Constitucionalidade no continente Europeu, ocorrido em Portugal em 1907, na densa pesquisa de António Araújo, então assessor no Tribunal Constitucional português, alegando que havia um indisfarçável elemento de malícia política de estabilização e controle do poder pela ditadura de Franco contra a desobediência de um Jjuiz de primeira instância:

“Em 1907 introduziu-se um sistema sui generis de controlo concentrado da constitucionalidade através do decreto de 1 de julho de 1907: Por paradoxal que pareça, foi um diploma destinado a impedir a apreciação judicial das leis que, primeiramente, introduziu no direito português uma forma de concentração de competência atinente à inconstitucionalidade: foi o decreto de 1 de Julho de 1907 (Diário do Governo, nº 152, de 12 de Julho), editado por causa de um juiz de primeira instância se ter negado a reconhecer força obrigatória à primeira medida da ditadura de João Franco. E a medida nele prevista consistiu em permitir a revisão pelo Supremo Tribunal de Justiça, reunido em tribunal pleno, por iniciativa obrigatória do Ministério Público e facultativa de qualquer das partes, das decisões que recusassem força legal aos decretos do poder executivo” (ARAÚJO, António. A construção da Justiça Constitucional portuguesa: o nascimento do Tribunal Constitucional. Análise Social, 4ª Série, Vol. 30, n. 134, 1995).

Isto é importante porque, como ressaltou José Afonso da Silva em um de seus mais importantes livros, o controle de constitucionalidade institucionalizado entre nós (controle abstrato de normas), em plena ditadura civil-militar, por meio da EC/16 de 1965, permitiu que o Supremo Tribunal Federal apoiasse profundamente o duplo centralismo ditatorial: federativo e orgânico (O Constitucionalismo Brasileiro: Evolução Institucional. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 151).

E isso pode ter feito com que bases importantes da interpretação constitucional, então realizadas (especialmente sobre aspectos federativos e a autoconstrução de aspectos do controle de constitucionalidade por parte da própria suprema corte brasileira) sejam ainda hoje perceptíveis como características institucionais aparentemente infensas a plenitude da participação popular no STF, mas esse aspecto invoca outra questão tormentosa: os limites, permeabilidades e possibilidade da penetração da “opinião pública” no Supremo, que, se consultar determinadas questões à população, pode trazer incômodas respostas sem muito colorido constitucional.

Evidentemente, o cerne de toda a discussão teórica proposta por Miguel Godoy invoca as noções da tensa relação entre constitucionalismo e democracia, especialmente a partir dos pensamentos de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella, mas uma teoria sobre a permeabilidade da opinião pública no Supremo Tribunal Federal ainda está por ser proposta e publicada, com as características que considerem não apenas os vícios e as virtudes dos atores institucionais, mas que considere a importação e a incorporação de ideias constitucionais no quadro da cultura social existente, além de uma permeabilidade da participação popular sobre o próprio conteúdo das decisões.

Afigurasse provocante pensar a participação popular em temas como “escolha”, “sabatina” e “aprovação” de novos membros da suprema corte, bem com sobre aspectos comportamentais dos juízes, potencialmente afetados pelos meios de transmissões dos julgamentos (TV e Rádio Justiça), nas ideias de Or Bassok, abordando o fato de que a “dificuldade contramajoritária” se dividiu em duas: a primeira, e mais tradicional, quando um juiz ou grupo de juízes declara inconstitucional uma norma aprovada pelo parlamento, e a segunda, recentemente observada, quando um juiz ou grupo de juízes declara inconstitucional uma norma aprovada pelo parlamento e apoiada pela “opinião pública” em pesquisas de opinião, trazendo a lume a clivagem entre casos acompanhados de perto pelos meios de comunicação e massiva cobertura da imprensa, e os “casos invisíveis”, como muitas vezes invisíveis são aqueles que pertencem ao “povo” (“The Two Countermajoritarian Dificulties”, Saint Louis University Law Review, v. XXXI, 2012; e, “The Supreme Court New Source of Legitimacy”, Journal of Constitutional Law, v. 16, 2013).

No limite, retirar uma invisibilidade de um local (povo no parlamento) e inseri-la em outro (invisibilidade na suprema corte) tem o potencial de tornar também aplicável àquilo que Gargarella, citando Adam Przeworski, menciona com frequência: a ideia dos votos como “pedras de papel” (Paper Stones), que pode facilmente ser adaptada a “amigos da corte” e “audiências públicas” de papel, fazendo com que pensemos não apenas a característica de desconsideração da vontade pelos representantes eleitos, mas também pelos representantes não eleitos. Pedras de papel não teriam o condão de se transformar em autofalantes e nem são garantias de que eles serão ouvidos.

O fato de suscitar todas essas reflexões torna imprescindível a leitura da tese de Miguel Godoy, assessor do ministro Edson Fachin no Supremo, para uma reflexão ampla sobre nossas práticas institucionais, algo que também será feito no Grupo de Pesquisa Cortes Constitucionais, Democracia e Isomorfimo, vinculado à pós-graduação em Direito do UniCEUB, em Brasília, para repensarmos a suprema corte brasileira a partir de um tese tão densa, provocante e bem escrita, e que produzirá debates e ensaios críticos, já tendo sido debatida em Harvard e na Universidade de Buenos Aires.

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